“Desafio Euphoria” demanda um olhar mais atento para os adolescentes 

Muitas séries voltadas para adolescentes abordam situações como suicídio, consumo de drogas, automutilação, entre diversos comportamentos inadequados. O fácil acesso a redes sociais multiplica informações e formas de agir que viralizam e, para se sentirem pertencentes ao grupo de iguais, os jovens acabam colocando-se em risco.

O “Desafio Euphoria” viralizou no TikTok e preocupa pais, médicos e profissionais da educação. Relacionado à série da HBO, o desafio consiste em raspar pó de corretivo e inalá-lo, simulando o uso de cocaína. A maior parte dos vídeos é gravada durante intervalos ou nos banheiros das escolas, porém, existem imagens colhidas dentro de salas de aula.

Não é de hoje que esses desafios são realizados ao redor do mundo. Em 2017, houve a Baleia Azul, um autoflagelo que consistia em desenhar o mamífero no antebraço com uma lâmina de barbear. No mesmo ano, a série 13 Reasons Why, da Netflix, foi associada ao aumento nos índices de suicídio entre crianças e adolescentes nos Estados Unidos. Outros países também registraram casos parecidos. 

Uma atenção especial por parte dos pais aos comportamentos dos filhos e discutir com eles o que acessam e qual entendimento sobre esses temas se faz necessário. Este é o verdadeiro desafio a ser vencido. 

Comportamento de experimentação

Faz parte da adolescência ter um comportamento de experimentação e repetição, muitas vezes imitando modelos e referências inadequadas. É um agir impulsivo sem muita noção de perigo. Este comportamento justamente remete aos usuários de drogas por aspiração à cocaína. É o que contextualiza o médico hebiatra e psiquiatra do Centro Psicossocial da Infância e Adolescência (CAPSi) e do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), João Quadros.

Esse tipo de comportamento pode ser em decorrência da ausência de figuras fortes de identificação, muitas vezes não encontradas dentro de casa. “Podem ser pais envolvidos com suas atividades e que terceirizam os cuidados aos professores. Mudanças repentinas de comportamentos devem ser identificadas precocemente”, reforça o médico.

Segundo Quadros, o adolescente, quando fica em um estado de “limbo”, ou seja, sem perspectivas, sem planos, sem incentivos, sem apoio, apresenta uma certa acomodação e desmotivação. “Aliado a isso, desenvolve um tipo de enamoramento com a morte em seu caráter de finitude”, complementa.

Problemas e riscos à saúde dos jovens

A inalação de partículas de diferentes naturezas pode vir a causar danos capazes de comprometer o adequado funcionamento da respiração. “Supõe-se que o dano ou a sua extensão possam ser maiores quanto maior for a dose ou a frequência de uso”, esclarece o professor do Departamento de Pediatria da Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Sérgio Amantéa.

No caso do “Desafio Euphoria”, conforme explica o professor, o corretivo é feito à base de água (função solvente), etanol (função secante) e contém substâncias tóxicas como o dióxido de titânio (cor branca das tintas), polímeros e dispersantes (manter consistência e homogeneização da mistura).

A ação química direta da inalação do corretivo pode comprometer mecanismos de defesa e predispor infecções locais (rinossinusites e pneumonias), além de sangramento e ressecamento da cavidade nasal. Também pode promover crises ou agravar processos inflamatórios relacionados a asma brônquica ou rinite alérgica. Outra situação agravante é estimular o consumo de drogas e substâncias ilícitas semelhantes ao sugerido no desafio.

Com relação às consequências permanentes pela inalação, não existem dados de longo prazo para estabelecer uma resposta segura. “Entretanto, a potencialidade do dano agudo existe, e algumas destas manifestações agudas podem cursar com sequelas, dependendo da intensidade do dano”, salienta. 

Estudo aponta necessidade de um programa curricular

Especialista em Relações Interpessoais na Escola e a Construção da Autonomia e Moral e doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Thais Bozza comenta que há duas formas de atuar com os jovens: preventiva e interventiva. 

Para prevenir, sugere criar um espaço curricular reflexivo para abordar a conveniência on-line. 

“Uma roda de conversa permite não expor alguém, proporciona um momento de reflexão. Faz com que se entenda qual a intenção, quem participa, qual razão, como as pessoas se sentem, as consequências, as responsabilidades do grupo em participar desse tipo de desafio. Realizar a reflexão dos conteúdos consumidos na internet, quais os influenciadores seguidos, o que eles têm e podem contribuir em suas vidas. Junto a isso, podem ser usados vídeos e materiais para complementar essa discussão, acompanhando de algum especialista, como um médico”, sugere.

Já quando existe a necessidade de intervenção diretamente com os alunos envolvidos em determinado desafio, é uma prática de gestão. “A recomendação é que seja não uma medida punitiva mas, sim, educativa. Não desconsidero a suspensão, mas não é o suficiente. É preciso refletir em grupo sobre as causas, pensar o que levou às consequências”, ressalta.

Para a especialista, uma maneira de inibir essas práticas negativas na escola é promovendo programa curricular para atuação reflexiva. Em seu estudo “Adolescentes e interações on-line [recurso eletrônico]: uma proposta de intervenção educativa visando a convivência ética virtual”, a pesquisadora conclui a relevância e a necessidade de a escola incluir a temática da convivência ética, na internet e fora dela como algo central em seus planos de ensino. 

“Nesse sentido, inferimos que as escolas devem desenvolver um programa nessa área, abarcando os pressupostos da Educação Midiática e os fundamentos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), assim como a temática da convivência ética por meio de um trabalho curricular e sistêmico; necessário para a formação de sujeitos respeitosos, justos, tolerantes, generosos, que pautem suas ações nestes e em outros valores morais, tanto nos ambientes virtuais quanto no meio físico”, indica. 

O levantamento organizou cinco módulos de trabalho para desenvolver as atividades que integram o programa: Imagem Virtual, Relacionamentos On-line, Comportamentos On-line, Riscos Virtuais e Uso Positivo. A proposta é uma metodologia específica para ministrar as aulas. São ciclos de construção coletiva do conhecimento, que têm como objetivo avançar no conhecimento de determinado tema, por meio de reflexões e coordenações de perspectivas e estabelecendo posicionamentos coletivos para representar um compromisso do grupo. 

“Como vimos, algumas temáticas ainda precisam ser aprofundadas e trabalhadas, como o uso positivo da internet e redes sociais virtuais, conteúdo que consideramos essencial, uma vez que pode ser um forte aliado no trabalho voltado para a redução do uso negativo. (…) Recomendamos fortemente o início deste trabalho nos anos iniciais do Ensino Fundamental II até o 3º ano do Ensino Médio, adequando o tema à faixa etária e organizando um currículo flexível para abordar os conteúdos”, descreve o estudo. 

Colégio adota ações práticas de prevenção

Com o foco no desenvolvimento humano dos alunos, o psicopedagogo e orientador educacional do Colégio Santa Dorotéia, Daniel Castilhos, comenta que, desde 2017, é realizado o Projeto de Vida e Atitude Empreendedora. “A iniciativa acontece semanalmente em alguma disciplina, religião e filosofia, por exemplo. O projeto é dividido em quatro eixos: inteligência emocional, mercado de trabalho, métodos de estudos e processo de aprendizado. É aplicado de acordo com o ciclo de vida dos jovens”, ressalta.

O psicopedagogo informa que a escola e os pais trabalham com um certo “delay” aos desafios como o “Euphoria”, porém, em decorrência de se repetirem, possuem ações preventivas. Uma forma adotada foi o envio de informativos semanais para esclarecer fenômenos como esse. “Realizamos sondagens com os alunos para entender quais são os impactos. Temos que entender que tem um efeito social, uma construção de identidade de crianças e adolescentes. A mídia se expandiu muito, tudo isso era concentrado em personagens de televisão. Agora, estão em redes sociais espalhadas pelo mundo”, analisa.

Castilhos alerta que o trabalho de desenvolvimento e acesso a conteúdos precisa ser feito ainda quando crianças. Personagens como Peppa Pig da Zoeira e Momo já causaram sensações ruins aos menores. “A série Round 6, que trouxe analogia a brincadeiras infantis, gerou impactos em crianças do colégio que tiveram acesso a esse conteúdo. Elas apresentaram um alto nível de ansiedade e pânico ao brincar de pega-pega, por exemplo. O que fizemos foi delimitar os tipos de brincadeiras”, recorda.

Orientar os pais, além de acompanhar e saber se o conteúdo acessado está adequado ao momento psíquico dos jovens para poder discernimento, são ações essenciais a serem realizadas. “Precisamos fazer com que os adolescentes compreendam o que é ficção e o que é real, ajudar nesse discernimento”, finaliza.

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