Learning by doing: o jeito de fazer educação bilíngue

Transformar o currículo para contar com mais de uma língua exige muito planejamento, mas o projeto se consolida conforme os profissionais aplicam, refletem e conversam sobre o processo

por: , Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com
imagem: Depositphotos

O aprendizado de um segundo idioma é requisito básico, há décadas, para qualquer carreira de sucesso. É por isso que muitas famílias escolhem instituições bilíngues para os alunos, afinal, quanto mais cedo o contato com qualquer língua, mais rápida e naturalmente ela é assimilada. Mas não basta aumentar a carga horária das aulas de idiomas estrangeiros. É preciso cumprir uma série de requisitos para oferecer, de fato, o ensino bilíngue. 

Esse regramento ganhou uma resolução do Conselho Estadual de Educação do Rio Grande do Sul (CEEd-RS), reconhecendo como escola bilíngue “o ambiente em que se falam duas ou mais línguas vivenciadas por meio de experiências culturais, em diferentes contextos de aprendizado e número diversificado de componentes curriculares, de forma que o(a) aluno(a) incorpore ao longo do tempo o novo código linguístico como se fosse sua língua nativa”. Na prática, quer dizer que os alunos devem ter contato com o idioma não apenas como conteúdo linguístico, mas também aplicado durante o ensino de outras habilidades e competências. As línguas são usadas como meio de instrução para o desenvolvimento do plano curricular.

Para a assessora pedagógica em educação bilíngue Rita Ladeia, trata-se de um processo de educação por meio do qual os estudantes desenvolvem vários repertórios: de língua, de conhecimentos acadêmicos, socioemocionais, de processos cognitivos – tudo por meio de pelo menos duas línguas. “É um processo que visa entender as línguas como ferramentas que nos fortalecem, ampliam nosso horizonte de mundo, nosso entendimento de cultura, de sociedade, desse mundo múltiplo em que vivemos”, sintetiza.

Percebe-se, pela definição de Ladeia, que o ensino bilíngue enseja um processo de aprendizagem diversificado, potencializando diversas competências. Mas, para isso, é fundamental contar com um processo bem estruturado. 

Implantação 

O currículo da educação bilíngue deve ser integrado e conduzido com as duas línguas, abordando de maneiras diferentes temas curriculares que façam parte das escolhas de cada escola – sem repeti-los em uma ou outra língua. Devem ser atividades complementares. 

“Nenhuma escola se torna bilíngue da noite para o dia”, alerta a especialista em educação bilíngue e bilinguismo Luciana Brentano. Antes de mais nada, segundo ela, os gestores precisam pensar na formação dos professores. “Não adianta só contratar professor de Inglês. Precisa ensinar conteúdos por meio da língua. No curso de Letras com habilitação em Inglês se aprende a dar aula do idioma, mas não dos conteúdos usando a língua inglesa”, pondera.

Rita Ladeia concorda. “Não temos, no Brasil, uma graduação que nos prepare para sermos professores de educação bilíngue. Discutimos, por exemplo, a alfabetização – mas não como alfabetizar uma criança em processo de biletramento, que é a aquisição do mundo da leitura e da escrita em mais de uma língua”, exemplifica. Já que a universidade ainda não contempla essa formação, as escolas precisam oferecer. É primordial investir na formação dos profissionais, ainda muito escassos no país.

Também é importante que os professores do segundo idioma sejam fluentes ou, pelo menos, com um alto nível de proficiência. Já os que lecionam na língua materna não precisam, mas também é recomendado que tenham conhecimento razoável, já que a língua vai circular muito pelos corredores. Gestores e funcionários também podem aprender para estabelecer uma comunicação mais ampla com os alunos e garantir uma experiência completa.

É preciso levar em consideração a carga horária para o ensino bilíngue, tendo em vista que o terceiro parágrafo do artigo 32 da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) determina que o ensino fundamental regular deve ser ministrado em Língua Portuguesa. As escolas que desenvolvem o currículo bilíngue devem cumprir a carga horária mínima de Língua Portuguesa, que é de 800 horas, acrescida com a carga horária que contemple a necessidade do ensino em línguas estrangeiras adotadas. Além disso, para ser definida (e divulgada) como uma escola bilíngue, precisa de autorização do CEEd-RS.

Planejamento é ouro

O currículo integrado parte de um estudo minucioso do que a escola já aplica, desdobrando as áreas e temas para que sejam explorados – não necessariamente todos. A exploração na outra língua precisa englobar o mesmo tema, de preferência simultaneamente, mas sem repetição. “Não é tradução, não é fazer a mesma coisa, isso é muito importante na construção do currículo integrado”, ressalta Ladeia.

Para que o processo de transformação em escola bilíngue tenha êxito, ele precisa andar de maneira constante, mas gradual. Todos os professores precisam se entender como bilíngues, ainda que só trabalhem no idioma de origem – afinal, fazem parte da mesma engrenagem. 

Essa consciência ajuda na integração, que se consolida por meio de encontros e conversas. Um cronograma de reuniões periódicas também é investimento na formação do projeto e dos profissionais, trazendo os parceiros que lecionam em Português e os dos outros idiomas para discutir conteúdo, objetivos e procedimentos.

Uma metodologia muito apropriada para integrar o ensino em dois idiomas é a de projetos, que pressupõe interação entre as disciplinas. Todos os professores, de todos os componentes, trabalham juntos em atividades interdisciplinares para que as competências sejam desenvolvidas.

O que prevê o MEC

Tramita no Ministério da Educação (MEC) um documento que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue. Aprovado em julho de 2020 e aguardando homologação, o texto traz elementos importantes. Primeiro, pede formação em Ensino Superior, com licenciatura – atendendo à Lei de Diretrizes e Bases.

O regramento proposto abre possibilidade para que professores com licenciatura em qualquer área do conhecimento atuem na segunda língua de instrução. Mas estabelece uma série de requisitos. Todos, inclusive os formados em Letras ou Pedagogia, precisam de pelo menos 120 horas de curso de extensão com foco em currículos bilíngues. Esses cursos contemplam teoria de aprendizagem, metodologias ativas, leitura e escrita, tudo com foco no bilinguismo. Por isso a necessidade de, além da licenciatura, contar com formação específica.

Um aspecto chama atenção no texto: o professor precisaria comprovar fluência e proficiência no segundo idioma por meio do que se chama de matriz europeia ou marco comum europeu, o CEFR (Quadro Comum de Referência Europeia). “Esse documento surgiu nos anos 1980 com objetivo bem menor do que ocupa hoje. Pretendia apenas aferir fluência e proficiência em trabalhadores europeus, naquele início de globalização, para o mundo do trabalho. Mas ganhou repercussão muito grande no mundo”, explica Ladeia.

A proposta pede a comprovação por qualquer exame internacional desenvolvido à luz dessa matriz. Um professor, para lecionar matemática, comprova licenciatura em matemática. Para lecionar em currículo bilíngue precisaria atestar a proficiência, a licenciatura e ainda uma extensão ou pós-graduação de pelo menos 120 horas e enfoque em educação bilíngue.

Formação demanda tempo e investimento

Embora o regramento do ensino bilíngue esteja apenas aguardando homologação no MEC, algumas instituições correm risco de serem pegas desprevenidas quando o texto entrar em vigor. “O investimento mais desafiador é o da formação linguística do professor. Se ele já tem inglês de nível avançado, isso fica muito fácil porque é só pagar a certificação. Mas e se a língua adicional dele não for suficiente para prestar uma certificação internacional?”, questiona Rita Ladeia. 

A especialista ressalta que alguns professores aprendem e se tornam fluentes de forma rápida, mas outros nem tanto. “Isso não tem prazo, cada um desenvolve em um tempo, é diferente do curso de 120 horas que tem dia para começar e terminar”, compara.

O cenário hoje é diversificado. Algumas escolas já matricularam todos os professores em formação bilíngue, mesmo aqueles que lecionam em Língua Portuguesa. Outras colaboram financeiramente para que os educadores se especializem e um terceiro grupo ainda não começou nenhum tipo de movimentação. 

“Se você tem um professor que interessa manter, que faz bem o trabalho, é importante investir nele. O mercado não está cheio de professor para a gente dispensar um e contratar outro, mas cada escola reage de um jeito”, alerta Ladeia.

Integração de novos alunos

Para não comprometer a captação de alunos nas séries mais avançadas, por receio de não conseguir lidar com mais de um idioma, as escolas precisam estar preparadas para fazer esse acolhimento. Deve ser explicado para a família que os assuntos trabalhados em sala de aula não são repetidos, mas são trabalhados por meio de atividades complementares, ajudando na compreensão tanto do componente curricular, quanto do idioma.

O primeiro elemento para receber esse aluno é o professor acreditar que aquele aluno não tem apenas a língua como recurso, mas carrega uma experiência vasta e um repertório próprio. 

A segunda coisa é tranquilizar a criança e a família. Dizer que faz parte do processo não entender quase nada no começo, mas vai passar. Dia a dia o aluno vai entender cada vez mais, até que a compreensão já não seja um problema, depois responda com naturalidade, até que domine o idioma.

O terceiro aspecto é olhar para o aluno, no preparo das atividades, analisando que tipo de ajuda ele precisa, que palavras ele vai entender na atividade proposta. O professor tem obrigação de ajudar, mas os colegas também são muito importantes nesse acolhimento. Eles costumam ter estratégias próprias e interagir de um jeito solidário, desde que a escola saiba fazer esse trabalho de acolhimento.

“Uma prática que eu uso muito em todas as escolas em que presto assessoria: quando chega uma criança nova, peço que o coordenador interrompa alguma aula do segundo idioma para perguntar se ela está entendendo. Na sequência, peça para crianças que já passaram por isso contarem como foi, porque a criança precisa entender que outras já viveram aquilo”, conta Ladeia.

Um trabalho gradual e pensado minuciosamente

No Rio Grande do Sul, apesar da presença marcante de imigrantes alemães e italianos, por exemplo, a grande maioria das instituições que oferecem o ensino bilíngue optam pelo Inglês como segundo idioma. A resposta costuma estar na compreensão, por parte dos estudantes e familiares, de que se trata de um idioma globalizado.

Foi o caso da unidade Oswaldo Cruz da Instituição Evangélica de Novo Hamburgo (IENH), que iniciou o processo de adaptação do currículo em 2005. Anos antes, a equipe da escola começou o trabalho de pesquisa sobre a modalidade, inclusive visitando instituições em São Paulo, onde a prática já estava consolidada. A experiência serviu como base para trilhar o caminho, já que simplesmente importar um currículo não seria viável – cada escola tem suas particularidades e respeitar isso é importante até mesmo para não perder a identidade. 

Unidade Oswaldo Cruz da IENH iniciou o processo de adaptação do currículo em 2005
Foto: Assessoria de comunicação e marketing da IENH

No primeiro ano foram criadas duas turmas piloto e a experiência logo caiu no gosto das famílias. “Na época, como o bilíngue tem um preço diferenciado, foi oferecido como um diferencial. As famílias escolhiam entre o currículo bilíngue e o tradicional. Com o passar dos anos o tradicional perdeu força, não tínhamos mais pessoas interessadas, então houve a migração para uma escola bilíngue”, relata a coordenadora pedagógica e assessora do currículo bilíngue da unidade Oswaldo Cruz, Cristiane Ely Lemke.

Trabalhando na IENH desde 2006, Cristiane acompanhou o projeto praticamente desde o começo. Ela observa que o currículo foi passando por atualizações ao longo desse tempo, mas sem perder a ideia de trabalhar língua e conteúdo por meio da vivência. “Estive na implantação como professora de língua inglesa. Tínhamos muitas reuniões de estudo, entre os professores que estavam trabalhando no bilíngue, para que fôssemos nos aprimorando. Aprendemos fazendo, learn by doing, educação bilíngue é assim”, defende. Outra prática que ajudou no começo foi a duplicidade: duas professoras dentro da sala de aula. Isso ainda é mantido na educação infantil, alternando o foco nas diferentes línguas. 

Para trabalhar os conteúdos em língua inglesa, a IENH se associou a um currículo da Universidade de Cambridge, da Inglaterra. Os componentes de Matemática e Ciências, ou Science e Math, são desenvolvidos tal e qual o que é praticado lá. 

“Fazemos um estudo para não repetir o conteúdo. Tem coisas do currículo de Cambridge que nem aparecem no brasileiro, então vamos complementando. Por isso é importante o planejamento em conjunto. A professora de Ciências senta com a de Science para trabalhar de forma rica e não repetitiva. O objetivo é abordar por outro ângulo, de uma maneira mais lúdica, às vezes mais prática”, detalha Cristiane.

Quando os alunos vão para as séries finais, passam por check points, que são exames de Cambridge em Math e Science. A prova vem da Inglaterra e tem um momento específico para essa avaliação, que é feita em relação aos conteúdos e não do idioma. Esse conhecimento ajuda aqueles que querem se candidatar para cursar o Ensino Superior em outros países.
Para que todo o ambiente escolar seja cada vez mais bilíngue, a escola reforça a sinalização em língua inglesa e criou, agora, um programa de incentivo com ajuda de custo para que os funcionários façam aulas do idioma. Entre os alunos, a vivência é garantida por meio de imersões não apenas dentro da instituição, mas também em outros ambientes. As experiências vão de coisas simples, como combinar com o garçom para falar em inglês no restaurante, até o deslocamento para atividades mais completas. No sexto ano, por exemplo, as turmas fazem uma viagem para São Paulo, onde participam de um english camp de quatro dias.

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