Monja Coen: ‘um ser em seu eixo de equilíbrio transforma todos à sua volta’
Missionária zen-budista fala sobre a importância do autoconhecimento no processo educacional e explica como os educadores podem se preparar para construir um ambiente acolhedor
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Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com
Publicado em 19/09/22 às 07:00 - Atualizado em 19/09/2022 às 07:00
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André Spinola e Castro / Divulgação
Fundadora da Comunidade Zen Budista Zendo Brasil, criada há mais de 20 anos, Monja Coen Roshi é missionária oficial da tradição zen-budista Soto Zenshu, do Japão. A prática da meditação e do autoconhecimento, aliada ao talento para se comunicar, a tornaram uma referência no país.
Mais do que difundir as práticas do budismo, Monja Coen consegue estabelecer relações entre a espiritualidade que estuda pelo mundo há algumas décadas com o dia a dia da sociedade. E foi com essa capacidade que ela recebeu a equipe de reportagem do Educação em Pauta em uma de suas passagens pelo Rio Grande do Sul.
Confira a entrevista (abaixo, em vídeo) em que ela fala sobre a importância do processo de autoconhecimento para a construção de um ambiente de ensino propositivo e libertador. Afinal, como ela faz questão de frisar, estamos preparando seres humanos.
A pandemia foi algo inédito para a nossa geração. O isolamento traz um encontro com a gente mesmo, o que às vezes é complicado. Que reflexos a senhora tem visto neste sentido? O que tem ouvido das pessoas – e o que diz a elas?
Quando ficamos quietos e fechados em casa, depois voltamos a estar juntos e em movimento, tem uma alegria e ao mesmo tempo uma irritabilidade. Dá para perceber as pessoas um pouco mais nervosas – ou será que já eram assim e nós é que desacostumamos? Ficamos acostumados a ficar mais em casa, mais quietos. E de repente você vê na rua, o trânsito parece estar mais agitado, as pessoas mais nervosas, é o que eu tenho notado e algumas pessoas têm me falado.
Se há momentos de depressão, de tristeza, por estarem sozinhos, também existe um outro momento de medo de voltar a estar junto. Mesmo que seja confortável e bom, nos acostumamos a ficar quietinhos em casa e, de repente, é preciso sair, voltar para o trabalho, Os professores têm que dar aula presencialmente de novo. As crianças estão muito irritadiças, vários professores me falam sobre isso.
Então, nós estamos vivendo um momento de transição bem forte. Foi uma coisa muito rara o que aconteceu conosco e acho importante até lembrar do presidente de Portugal, que era um professor, que no começo da pandemia disse “não se lastimem, estamos vivendo uma experiência única, que talvez jamais se repita, e que é uma experiência de aprendizado e crescimento”. E este pós-pandemia também é de aprendizado e crescimento.
Como é que nós voltamos a dar aulas presenciais e como é que nós vamos às aulas presenciais? A questão da imunidade também diminuiu, porque na hora em que a criança e os adolescentes ficaram fechadinhos em casa, deixaram de ter contato com vírus – não só o coronavírus – e a gente perdeu um pouco de resistência física, mesmo. Então, temos um trabalhinho aí pela frente. De voltar a entrar em contato, a reaprender, socializar, agora não mais o “eu” sozinho, mas “nós”.
Algumas pessoas entraram em processo de autoconhecimento bem interessante, outros não gostaram do que viram, porque a gente não é só luz: a gente é luz e sombra. Entramos em contato com as nossas insatisfações e temos que aprender a lidar com isso.
Eu acredito muito que esse processo de meditação, de autoconhecimento, é essencial para a educação e a formação do ser humano. Em qualquer idade. Não é uma coisa para adultos, não. É uma coisa para a gente começar a ensinar os pequenininhos. “O que você está sentindo? Nenhum sentimento é feio ou indecoroso, mas o que você faz com ele? Como você usa o que sente ou percebe, na sua vida?”
Tem um padre beneditido, Laurence Freeman, que vem ao Brasil de tempos em tempos e sugere que a gente tenha práticas meditativas em todos os níveis escolares. Chegou na sala de aula, respira. Não é uma coisa muito profunda, mas respiração consciente, presença pura, para estar inteiro no que se está fazendo. Ajuda, inclusive, na capacidade de absorver melhor o conhecimento.
Muitas vezes o professor tem acesso a um conteúdo, mas não consegue levar para a realidade do seu dia a dia. Como os educadores e gestores podem trazer essas práticas para as escolas? E como trabalhar isso com crianças e adolescentes?
É uma questão de observar a si mesmo. O que eu estou sentindo? Nomear os sentimentos. O que é isso: raiva, amor, tristeza, desejo, aversão? Tudo isso faz parte. Você reconhece o que sente, mas escolhe a resposta que dá. A maioria de nós não escolhe resposta, a gente vai no automático. Brigou comigo, eu brigo de volta; me xingou, eu xingo também. E de repente você se pergunta por que isso aconteceu e se é possível dar uma resposta diferente, quebrar círculos viciosos de relacionamentos, de afetos e desafetos. Mas é treinamento. Se a gente treina músculos, a gente também treina conexões neurais.
A gente apenas age e reage, mas é preciso refletir?
Isso. Responder, em vez de apenas reagir. E para a criança começar é uma coisa simples. Você dá um gole de água e pergunta onde ela está agora: na garganta, descendo no esôfago, chegou no estômago… É estar presente onde você está, em vez de ficar pensando no que está acontecendo. Às vezes, só de ouvir [o ambiente ao redor]: foi passarinho? Carro? Porta? Gente falando? Você desenvolve essa capacidade de estar presente e deixar os sentidos alertas. Se fizer isso por cinco minutos, há mudança. É incrível, parece mágica. E a respiração consciente.
O professor pode ter o desejo de trazer essa experiência para a sala de aula, mas ele tem 15 turmas, 400 avaliações, aulas para organizar. Como se preparar antes de entrar em sala de aula e oferecer isso aos alunos?
Pois é. É bom que antes de chegar à sala de aula, ele respire. Encontre seu eixo de equilíbrio. Não é só passar conhecimento, nós estamos formando seres humanos. Isso é um educador. Só passar conteúdo não vale nada. Já se foi o tempo da decoreba. A nossa educação está mudando e todos percebemos que é um tempo importante de educar seres humanos capazes de encontrar as informações que querem, onde quer que seja. O professor não é mais aquele que só passa informação, mas aquele que forma.
O ensino não é só concordar com o professor. Vamos dialogar, aprender a conversar. É lindo o que pode ser feito no processo educacional neste mundo em que estamos agora, com a tecnologia. Tem algumas escolas, acho que é na Noruega, em que os alunos recebem um aparelho de tecnologia, cada. E não é para brincar, mas para estudar, aprender a usar a tecnologia para desenvolver suas habilidades, e não apenas colocar coisas engraçadas, bonitinhas.
É o papel do educador, cada vez mais, como um mediador, curador de conteúdo. E que exercícios esse professor pode fazer para chegarem na sala de aula em condições de promover esse ambiente?
Primeiro, a gente tem que saber que a função do educador agora é diferente da que era no passado. Muitos tiveram uma formação muito anterior ao que estamos vivendo agora. E a pandemia mexeu em todos nós – e nos educadores também. Assim como tiveram que aprender a usar as redes sociais e foi difícil, cansativo, ficaram chateados. Foi complicado, né?
Agora, temos que aprender a ser diferentes e nos conhecer. E perceber que você pode entrar em sala de aula com respiração consciente, que faz dois minutos antes, não precisa ficar uma hora meditando. É como um carro: tem que passar pelo ponto morto para mudar de marcha. A gente entra nesse eixo de equilíbrio, para depois ir.
Em um ambiente onde circulam tantas pessoas com objetivos, rotinas e faixas etárias diferentes, qual o reflexo desse tipo de iniciativa?
Cada um que entra em seu eixo de equilíbrio é um ser que começa a transformar tudo à sua volta. Porque você não está lutando contra alguém, mas acolhendo e transformando. O mundo é transformação e movimento e nós estamos nesse processo, mas quando você conhece os seus estados emocionais, pode lidar com eles de uma forma melhor. Não é controlar. Eu não preciso controlar o que sinto, mas reconhecer e pensar como usar isso para o bem coletivo.
Cada um de nós que encontra seu eixo de equilíbrio, acaba favorecendo o eixo de equilíbrio dos outros. Cada um que sai desse lugar, provoca que os outros também saiam. É visível quando uma pessoa que está desequilibrada chega em um lugar. O corpo fala, quebra a harmonia. E aí, para todo mundo quebrar junto é muito fácil. Na hora que alguma coisa tira do eixo, volta logo para não criar muita desarmonia.
A gente fala em transformar a escola em um ambiente acolhedor e propositivo, mas do portão para fora o mundo às vezes não está pronto para isso. Como preparar o aluno para contribuir com seu autoconhecimento em um mundo que não está levando isso em consideração?
[Ensinando a] não admitir nenhuma forma de abuso. E, se houver abuso, poder falar com quem tenha condições de mudar isso. Não é chorar em um canto, ficar triste ou dizer “estou aqui para apanhar”. Existe abuso, discriminação de todos os tipos e a gente deve reconhecer que isso não pode acontecer. Se você é criança ou adolescente, muitas vezes não é capaz de interferir e acabar com um ato de violência, mas pode testemunhar e evitar que se repita. Existe um processo de escolhas no mundo para que sejamos arautos e elementos de não violência.
Das coisas que o mundo está mostrando agora, que não víamos antes, precisamos refletir sobre o que pode ser acolhido e o que não pode. E dar limites. Educar é isso, que a gente tenha o livre arbítrio. Eu vi um neurocientista falando que só temos 5% de livre arbítrio, os outros 95% na tomada de decisões vêm da genética e das experiências que nos marcaram na vida.
Devemos saber que temos o livre arbítrio. Por mais que minha família tenha me educado assim, que amigos tenham mostrado valores não muito corretos, tenho 5% que posso escolher um caminho de fé, verdade, autoconhecimento, espiritualidade, filosofia de entendimento da existência. Isso é o mais importante em uma sala de aula: investigar quem somos nós, por que estamos aqui. Não é dar a direção de uma determinada religião ou filosofia, mas apresentar diferentes olhares para a realidade.
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