O maior perigo para as escolas é perder relevância, alerta Andreas Schleicher

Um dos criadores do PISA, o diretor da OCDE conversou com a Educação em Pauta direto de Paris, por vídeo. Falou do que está por vir no teste e, ainda, sobre a realidade brasileira

por: Carlos Guilherme Ferreira | carlos.ferreira@padrinhoconteudo.com
imagem: Divulgação

“Como os professores podem ajudar os alunos a descobrirem as suas paixões?”

Paradoxalmente, esta é uma entrevista que começa com uma questão do próprio entrevistado. E quem nos convida a uma reflexão é o alemão Andreas Schleicher, um dos criadores do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), a principal avaliação de aprendizagem no mundo – e que mede conhecimentos em matemática, leitura e ciências, aplicados à vida real, dos alunos de 15 anos. 

Diretor da área de Educação e Habilidades da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Schleicher há muito deixou os bancos escolares – está com 57 anos –, mas eles não saíram do seu espectro de preocupação. Nem tanto com o que está acima ou à frente deles, como os equipamentos tecnológicos, mas em relação a quem frequenta, de fato, a sala de aula. 

Alunos e professores, garante, precisam cocriar. É assim que Schleicher, um físico com formação em matemática e estatística, responde à própria pergunta, a da abertura desta reportagem: trata-se de “ajudá-los (alunos) a saber no que eles realmente se tornaram bons”. Se isso não acontecer, alerta, as escolas correm risco de perder a relevância.

O diretor da OCDE conversou com a Educação em Pauta direto de Paris, por vídeo. Falou do que está por vir no Pisa e, ainda, sobre a realidade brasileira. Confira a entrevista a seguir:

Educação em Pauta – O Pisa será aplicado novamente em 2022, com atraso devido à pandemia. Na sua opinião, o quão ruim ela foi para os estudantes mundo afora? Fale sobre a desigualdade educacional entre países e regiões.

Andreas Schleicher – Se pegarmos um país como o Brasil, a Covid-19 levou a um longo fechamento das escolas. Obviamente foi um impacto nas oportunidades para as pessoas jovens aprenderem. Provavelmente os estudantes com recursos encontraram boas alternativas, digitais, com suporte dos pais. E estudantes com menor estrutura pagaram um preço muito alto. Dessa maneira, podemos dizer que os estudantes sofreram as consequências das decisões políticas para conter a pandemia, e isso realmente foi muito injusto com as próximas gerações. Mas acho que é muito visível. E tivemos países que conseguiram lidar bem com a pandemia e não tiveram tantos fechamentos de escolas, com impacto menor. De maneira geral, veremos uma amplificação das desigualdades. 

Quais países se saíram melhor na pandemia, em educação?

Recentemente voltei da Coreia do Sul e eles fizeram um trabalho sensacional, porque têm boas políticas de rastreamento (do vírus). Sabiam onde o vírus estava e podiam fechar uma escola, mas não o sistema. Na Europa, podemos olhar para a França, capaz de manter as escolas abertas. Mesmo com o número alto (de casos), o sistema escolar não foi tão afetado. Podemos olhar para vários países, como Estônia ou Cingapura, com boas alternativas digitais, professores usando a tecnologia mesmo com as escolas fechadas. Acho também que locais no Brasil fizeram um bom trabalho. Se olharmos para o Rio de Janeiro, eles foram bem em gerenciar o fechamento das escolas e nas alternativas digitais.

O senhor acredita que os reflexos da sala de aula digital adotada na pandemia, forçadamente, podem aparecer nos próximos resultados do Pisa?

Todas as experiências dos jovens vão aparecer de um jeito ou de outro nos resultados do Pisa, e acredito que falei do impacto negativo, mas há alguns lados positivos. Estudantes aprenderam como aprender, como estabelecer seus objetivos de aprendizagem. Isso é algo bom. Quando penso nos estudantes nas salas de aula brasileiras, é algo como o professor fala e o aluno ouve. Mas a sala de aula digital fez dos estudantes donos do progresso de aprendizagem. Eles tiveram que decidir quando aprender, o quê, motivaram-se a si mesmos. E os professores brasileiros, subitamente, não foram apenas instrutores, mas tiveram de se tornar bons orientadores, bons facilitadores. Acredito que no longo prazo talvez a pandemia tenha introduzido algumas transições na educação que ajudarão os estudantes a aprenderem melhor, professores a ensinarem melhor e as escolas se tornarem mais efetivas. Talvez possamos aprender com a pandemia de uma maneira positiva.

Estamos cientes, pelos resultados do Pisa, de que os estudantes têm problemas com leitura e compreensão. Também sofrem para distinguir um fato de uma opinião. Em um mundo on-line, repleto de fake news, como aperfeiçoar a capacidade de leitura dos jovens?

Precisamos entender que a ideia de leitura mudou fundamentalmente. Quando começamos, em 2001, a leitura era ainda extrair conhecimento de livros cuidadosamente curados. Quando não se sabia uma resposta, podia-se olhar em uma enciclopédia e confiar que seria verdadeira. Hoje, os jovens entram no Google e encontram milhares de respostas para suas questões, e ninguém irá lhes dizer qual é correta, qual é incorreta. Alfabetização não é mais apenas extrair informação, lê-la e interpretá-la. Transformou-se na habilidade de construir conhecimento. E não acho que as escolas brasileiras tenham realmente conseguido conduzir essa transição. Leitura ainda é ensinada como decodificar palavras e interpretá-las. Ainda não é ensinada como uma habilidade para triangular diferentes perspectivas, ver a floresta entre as árvores, ver a natureza de um argumento. Acho que esse tipo de alfabetização ainda precisa ser introduzida no Brasil, porque quando olho para os resultados do Pisa, a vasta maioria dos brasileiros de 15 anos de idade não consegue distinguir fato de opinião. É apenas a superfície. Acredito que sua capacidade para navegar ambiguidade, gerenciar a complexidade, viver com pontos de vista conflitantes, não é sempre sobre o que é certo ou errado, mas sobre compreender diferentes argumentos, perspectivas. Não acho que isso já chegou às salas de aula brasileiras.

Agora o Pisa irá medir o pensamento criativo. Como isso irá acontecer e por que vocês tomaram esse caminho?

No mundo em que vivemos, o tipo de coisas que são fáceis de ensinar e de testar também o são para digitalizar, automatizar.

“Somos muito bons em educar robôs de segunda classe. Pessoas são boas em repetir o que dizemos. O que nos faz humanos em um mundo de inteligência artificial?”

Temos de perguntar a nós mesmos. É o cognitivo, o social, as habilidade emocionais que realmente ajudam a imaginar, construir, criar. Isso é realmente essencial. Você pode viver consigo mesmo, com pessoas diferentes, com o planeta? Inovação não é mais o que você sabe em um campo específico de conhecimento. É saber  conectar os pontos quando a próxima ideia surgir. Então, pensamento criativo é um ingrediente muito importante. Quando testamos conhecimento criativo, não queremos saber se um estudante é capaz da resposta certa ou errada, mas se ele pode partir para um pensamento divergente, se pode interpretar a originalidade dos pontos de vista. É o desafio da formação, porque o que fazemos tipicamente num teste é saber se o estudante encontra a resposta que nós tivemos quando construímos a prova. Mas estamos procurando por estudantes com perspectivas, ideias, capacidade de imaginar, construir e criar.

Novamente sobre pensamento criativo: podemos considerá-lo tão ou mais importante do que matemática, leitura e conhecimento científico? Quero dizer que um estudante pode ser apenas regular com matemática ou leitura, mas um tanto genial em áreas que não demandam diretamente esses campos – como pintura, arte, design. O que você pensa a respeito?

Não é necessariamente uma contradição. O que penso é que às vezes ensinamos matemática e ciência como religião. Agora fazemos as pessoas acreditarem em ideias e conceitos e as fazemos repeti-los. Isso é muito triste. Matemática é criatividade. É sobre usar as ferramentas da linguagem formal, imaginar novas realidades, um mundo que não se pode ver. Pense em um vírus como o coronavírus: ele segue uma função exponencial. Algo que podemos descrever pela matemática, que escapa à nossa intuição. Somos criados em um mundo linear, o tempo é linear. Eu acredito que o que não devemos fazer é ensinar nas escolas de um jeito muito chato, mas para desenvolver capacidades na matemática, ciência. A longo prazo, essas capacidades nos fazem humanos e nos distinguem da inteligência artificial. Precisamos prestar muito mais atenção nisso. O maior perigo para as escolas não é a alta ineficiência, contra o que gastamos muito dinheiro, mas perder a relevância. De novo, a tecnologia se tornou muito mais esperta que os humanos. Nosso sistema educacional prepara os jovens geralmente para o nosso passado, não para os seus futuros.

E teremos mudanças significativas no Pisa no futuro, em como o teste é aplicado ou nos campos do conhecimento que ele cobre? O que está por vir?

Absolutamente. Agora estamos trabalhando na avaliação do aprendizado no mundo digital, que não é apenas usar a tecnologia, mas elevá-la a novos caminhos de aprendizado. Estamos tentando integrar aprendizagem e avaliação de maneiras significativas. É tentar fazer do Pisa uma ferramenta para nos ajudar a pensar a respeito em um futuro no qual a tecnologia pode fazer muitas coisas, se a usarmos como humanos. Vejo o futuro dos testes dando acesso aos jovens a todos os tipos de ferramentas. Queremos olhar para a capacidade de pensar como um cientista, um filósofo, como um matemático, não apenas para replicar conhecimento passado.

E qual a previsão para isso?

No próximo ciclo, em 2025, o aprendizado no mundo digital será parte do Pisa. Também gostaria de dizer que, em áreas tradicionais como matemática e ciências, estamos procurando um novo viés. Pense na matemática: a trigonometria se tornou menos importante em sua vida. Pensamento computacional virou muito importante. Talvez álgebra (tenha perdido força), mas probabilística (cresceu). Não estamos apenas adicionando, mas redefinindo as áreas do Pisa.

E a tecnologia cresceu muito nos últimos anos, de diferentes maneiras, o que significa que muitas habilidades podem não mais ser necessárias. Como os estudantes podem se preparar para um cenário de mudanças muito rápidas?

Estou menos preocupado com tecnologia. Acho que as pessoas são capazes de se adaptar às novas tecnologias, como vimos na pandemia. O que me preocupa mais são as habilidades humanas, distinguir fato de opinião, (compreender) ambiguidade, combinar e resolver tensões e dilemas. Questionar-se a si próprio. A tecnologia coloca todos juntos, gente que pensa como você, anda como você… separada de opiniões divergentes. A questão realmente é, para os humanos: você consegue se envolver com outras perspectivas? Ver o mundo por diferentes vieses? Esses são os desafios que vejo. Se focarmos em ferramentas, temos o risco de educar para nosso presente, não para o futuro.

O Pisa é um teste, claro, o que não deixa de ser uma maneira de medir o andamento do desenvolvimento de um estudante. Mas os testes ainda são a melhor maneira para garantir que alguém realmente aprendeu? Em um sentido de que o aluno não apenas se preparou, simplesmente, para conseguir uma boa nota.

Não é fácil aprender diretamente da avaliação do Pisa. Novamente: o Pisa não coloca muita ênfase em pontos específicos como o conhecimento que pode ser aprendido em poucos dias, mas sim para se você consegue pensar como um cientista. Não apenas o que você sabe em física e química, mas se consegue elaborar um experimento. Então, é um teste muito robusto que olha para a aprendizagem acumulada, não para o curto prazo. Duas semanas de estudos não dão nenhuma vantagem no Pisa. Porque ele olha para as suas capacidades e habilidades não alinhadas.

O que o senhor acha da ideia de os professores receberem aumento de salário com base nas avaliações de seus alunos? Isso é correto, pode afetar a aprendizagem dos estudantes para o bem ou para o mal?

Creio que é bom ligar o salário dos professores ao trabalho. Frequentemente não fazemos isso, não olhamos muito para o que estão fazendo. Acho que devemos respeitá-los e recompensá-los, mas não tenho certeza de que podemos fazer isso de um jeito simples, linkando com o desempenho da classe. Porque… e no caso de um professor que realmente ajudou uma família não-engajada a retomar a educação? E outro que fala com os pais e tenta ajudá-los? E o que é mentor de outros professores, para que se tornem melhores profissionais? Devemos contemplar o espectro completo de atividades dos professores e recompensá-los mas, sim, sou muito a favor de diferenciar salários. Não é tão simples, e olhar apenas para os resultados da classe é muito estreito.

O governo brasileiro implementou a BNCC, que pretende garantir que todo estudante tenha um nível semelhante de aprendizagem. Na sua opinião, como isso pode impactar na qualidade da educação no médio e longo prazos?

A BNCC é um passo muito importante para o sistema educacional. Se um sistema não sabe o que quer atingir, o que é importante, não chegará a lugar algum. Você não pode apenas defini-lo por um exame, como era feito no passado no Brasil. Eu realmente acredito que uma base comum curricular é o pilar para uma boa educação. Uma BNCC pega muitas das ideias do Pisa, não apenas no conhecimento, pois olha para as habilidades, a capacidade dos jovens. Pode dar uma base para o sucesso. Traz mais claridade aos professores: “por que estou aqui?”, “o que estou tentando fazer?”… Essas questões devem ser respondidas por todos os sistemas educacionais.

Temos uma boa ideia, mas é preciso implementá-la. Aqui no Brasil, nos últimos três anos, tivemos três ministros diferentes da Educação e problemas quanto ao Enem. O senhor acompanha o que acontece aqui? Qual a sua opinião?  

Sim, eu sigo os acontecimentos e tem sido muito problemático. Um sistema educacional não deveria depender tanto da política e dos políticos, mas de professores muito fortes, comprometidos com seus alunos, grandes lideranças nas escolas, professores que desenvolveram talento humano. Isso é o que mais falta no Brasil, e creio que a BNCC dá uma base para isso. E agora o Brasil precisa investir em seus professores para garantir que eles não apenas estão implementando um currículo, mas conquistando a propriedade de sua profissão. Quanto mais robusta é a profissão da educação, menos risco há de políticas colocarem o sistema em direções diferentes. A questão não é o que se pretende, mas o que realmente acontece nas salas de aula. 

O discurso de o aluno assumir um protagonismo é muito comum aqui no Brasil, entre especialistas em educação. Nesse cenário, onde estão os professores? Eles precisam se aperfeiçoar para dar conta das necessidades de seus alunos?

Sim, devemos pensar mais em cocriação na educação, não no estudante como um consumidor, o professor como um prestador de serviços e nos pais como clientes. Não é uma perspectiva que ajuda muito. Devemos pensar mais em algo na linha “como os professores podem ajudar os alunos a descobrirem as suas paixões?” Ajudá-los a saber no que eles realmente se tornaram bons. E os professores devem conhecer seus estudantes, interessar-se por suas ideias, suas vidas. É daí que vem a boa educação. Professores e estudantes devem se ver mais como cocriadores. 

E isso está ligado ao pensamento criativo, como o senhor comentou.

Sim. Pensamento criativo não é requisito apenas no lado de quem aprende. Como um aluno, se você não ver seu professor ser criativo, ter uma mente aberta, você não se tornará um pensador criativo por si só. 

O Pisa mostrou que as salas de aula brasileiras estão abaixo da média da OCDE em pontos como bullying, indisciplina e solidão. Como mudar esse cenário? 

É uma questão interessante. O que quero dizer é que para ampliar o caminho, há uma questão sobre a qualidade da relação entre professores e estudantes. Não é apenas autoridade, tomar medidas disciplinares. São parte da equação. A grande questão é se os estudantes sentem que os professores realmente os entendem e os apoiam. Entusiasmam-se com o que fazem e se estarão lá quando os alunos precisarem. Onde há uma relação muito próxima entre aluno e professor, a disciplina é muito boa. Se olharmos para países onde isso é forte, os professores gastam boa parte do tempo fora da sala de aula, individualmente com estudantes, seus pais. Viram amigos, mentores. Respeito é um ingrediente muito importante.

Alguns pesquisadores brasileiros mostraram que a desigualdade entre escola pública e privada aumentou durante a pandemia. Como reverter esse processo?

Muitas escolas privadas fizeram muito melhor do que o setor público ao manter os serviços abertos. É uma grande lição para o sistema público brasileiro. A pandemia pode terminar logo, mas o futuro pode surpreender. E parece que as escolas públicas não foram suficientemente resilientes e capazes de se adaptar. Mas, de maneira geral, quando se desconta o contexto social, a vantagem da escola privada por ter mais alunos com melhores condições financeiras, na verdade a diferença de desempenho no Brasil não é tão grande. Mas concordo com você: nessa crise as escolas privadas foram mais ágeis, rápidas, desejosas de lidar com a pandemia.

E quais países o senhor consideraria como exemplos para o Brasil? Que realizaram importantes mudanças em políticas educacionais e que agora podem ser notadas nos resultados do Pisa?

Se ficarmos nas Américas, países como Colômbia e Peru foram muito bem. Começaram em condições muito difíceis e conseguiram realmente mudar de direção. A Colômbia veio de uma guerra civil e construiu um bom sistema de escolas públicas. Se quisermos olhar mais longe, temos um país como o Vietnã, que mostrou ao Brasil que se pode ir do fim do espectro a uma posição muito robusta. Ele agora tem uma performance tão boa quanto os sistemas europeus. E apesar do fato de o país permanecer pobre. Depende do seu nível de ambição, do quão longe você gostaria de mirar. Mas gostaria de dizer uma coisa, pense em uma região como a da Amazônia: há 10 anos, quem olharia para ela como um bom exemplo de educação? Hoje, fizeram progressos sensacionais. O Estado do Ceará, relativamente um dos mais pobres… e o que ele conquistou em conectar escolas de alta e baixa performances e mover o sistema para a frente?

Então, creio que no Brasil às vezes se usa muito tempo para colocar novas ideias de cima para baixo no sistema, e muito pouco tempo para realmente encontrar as boas iniciativas, descobrir maneiras de escalá-las, espraiá-las, compartilhá-las Brasil afora.

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