“A maioria dos problemas entre adultos e crianças está no convívio”
Em entrevista, o psicanalista Julio Cesar Walz reflete sobre as relações de cuidado, tema central de seu livro “Cuidar não é educar”
Muitas vezes, as relações entre adultos e crianças apresentam atritos. Muitas são as estratégias para driblar esses conflitos ou, pelo menos, tirar deles algum aprendizado para que não se repitam no futuro.
Sempre interessado em trocar com quem cuida e se interessa pela infância, o psicanalista Julio Cesar Walz lançou, no início do mês passado, o livro “Cuidar não é educar”. Dividido em oito capítulos, a publicação busca ajudar pais, cuidadores e professores a desenvolverem uma relação mais respeitosa com as crianças.
Doutor em Ciências Médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Walz também já publicou “Aprendendo a Lidar Com os Medos: A Arte de Cuidar das Crianças” e é co-autor da obra “O Sentimento de Culpa”. Em entrevista ao Educação em Pauta, o psicanalista, que acaba de lançar um podcast derivado do livro, fala sobre o que o motivou a escrever sobre este tema e traz reflexões sobre como é possível transformar as relações entre adultos e crianças por meio do respeito e do diálogo. Confira:
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Educação em Pauta – Como surgiu a ideia para o livro “Cuidar não é educar”?
Julio Cesar Walz – Ele foi se construindo ao longo de mais de 30 anos de experiência clínica, da experiência de ser pai de dois filhos – agora já adultos –, assessorias em instituições que atendem crianças, acompanhamento de crianças em situação de vulnerabilidade, acompanhamento de pessoas usuários de drogas e álcool, além da docência universitária.
Essa breve história me fez construir um desejo de conversar com aqueles que cuidam e se interessam pela infância. Não quero ensinar, mas chamar a atenção para que reflexões possam ser processadas antes e depois dos impasses. Afinal, nesses momentos ficamos muito atrapalhados, desnorteados, impulsivos ou sem saber bem o que fazer. Por isso, pensar antes e depois pode dar alguma pista na hora do sentimento de sem saída que surge quando somos necessários na vida de alguém.
O livro mostra que existem duas posturas distintas em relação à infância. Uma de respeito e solidariedade com o crescimento, o aprendizado e as atrapalhações inerentes ao viver (quem não se atrapalha?). Essa é a postura do CUIDADO. A outra postura é a de alguém que sabe (acha que sabe) sobre alguém que não sabe (também acha). Onde a solidariedade com o aprendizado e as dificuldades inerentes a ele deixam de ser o farol do convívio e passam a ser criticados, direta ou indiretamente. Essa postura eu chamo de EDUCAR.
Um segundo aspecto do livro é: a maioria dos problemas entre adultos e crianças ou pessoas de mais idade com pessoas de menos idade está no convívio ou no vínculo. E tento apontar que é sempre mais útil e razoável resolver os problemas de relação do que tentar achar causas externas ao vínculo. Ou seja, quando um sabe sobre o outro, perde-se a capacidade de conversar e interagir. E o que surge é a certeza do que eu sei sobre o outro, e o outro, não sabe. Ou o não-diálogo. Essa postura emocional eu digo com toda certeza: não ajuda em nada. Apesar de parecer que sim. Vínculos reais e verdadeiros permitem a busca de soluções reais para quase todos os impasses, com a chance de um aprendizado com a experiência, acontecer da melhor maneira.
Terceiro aspecto é que no convívio entre pessoas de mais idade e menos idade também existe tensão, e muita. Ocorrem incertezas, disputas, inveja, negligência ou mesmo crueldade com o outro. Às vezes isso tudo pode ser muito sutil, outras aparece de forma escancarada.
Enfim, o livro busca encorajar as pessoas de mais idade a aceitarem ou buscarem a verdade das emoções que estão circulando e quando houver o predomínio da ilusão de poder, que ela possa ser deixada de lado para a busca de soluções reais e efetivas através do vínculo, ou seja, do que está se passando entre eles.
Além do livro, estreamos, no dia 12 de outubro, Dia da criança, o podcast Cuidar Não É Educar, em todas as plataformas digitais.
Educação em Pauta – Na apresentação do livro, feita pelo psicanalista Celso Gutfreind, a publicação é apresentada como mais que um manual para quem está acompanhando o desenvolvimento de uma criança. Qual é, na sua visão como psicanalista, o principal desafio para pais e cuidadores na primeira infância?
Julio Cesar Walz – Antes de mais nada quero agradecer ao Celso pela generosa e dedicada apresentação do livro. Sem palavras. Para mim, o principal desafio é manter-se vivo, expressão que peguei emprestada do psicanalista Donald Winnicott. O que isso quer dizer? Família é convívio, um lugar de turbulências emocionais onde cada um dos atores tem vida própria, interesses próprios, desejos próprios de crescimento e aprimoramento. Então na posição de cuidadores, a tarefa emocional é manter-se interessado (vivo) para com aquele que é cuidado. Aliás, manter-se vivo é também um autocuidado. Porque diante do desenvolvimento e anos de convívio ocorrem muitos desencontros, rancores, rusgas. E a posição emocional de manter-se vivo é receber sempre de novo a alegria do crescimento como um estímulo para a vida. Quem não passou noites em claro com filhos doentes? Às vezes há exaustão e preocupação. Aí, quando amanhece, seu filho(a) acorda e dá um sorriso, então nos sentimos preenchidos e capazes de seguir o dia como se nada tivesse acontecido. Essa postura emocional é o grande desafio. Isso é manter-se vivo. Conseguir receber sempre de novo e alimentar-se da alegria da vida que vem se desenvolvendo, apesar de todas as dificuldades que sempre surgem.
Educação em Pauta – Seu livro tem sido bastante utilizado e citado por educadores. Como esse processo de escuta mais atenta para crianças e adolescentes pode colaborar para o desenvolvimento escolar?
Julio Cesar Walz – A escuta, para mim, é respeitar o outro como indivíduo, mesmo que possa estar atrapalhando em algum momento do seu desenvolvimento. Respeitar uma criança é respeitar a vida. A vida como processo de expansão e aprimoramento das características pessoais. Escutar quer dizer que eu não posso saber sem interagir, sem diálogo. Sempre que eu suponho algo sobre o outro ou sobre os fatos eu deixo de interagir e passo a viver apenas do que eu penso. Quando eu vivo do que eu penso eu não interajo, mas acho que sim. O que é muito fascinante, porque o meu pensamento me oferece a certeza de que eu sei. Escutar é vínculo real. Lembremos: é muito difícil conseguirmos realmente conversar e confiar em outra pessoa. Certa vez perguntaram para Espinoza (1632-1677) o que era importante para um ser humano. A resposta: “Um outro ser humano sem preconceitos”.
Educação em Pauta – No livro, você afirma que a convivência com crianças desperta memórias da nossa própria infância. De que forma nosso desenvolvimento afeta a maneira como nos relacionamos com os pequenos, sejam eles filhos(as) ou alunos(as)?
Julio Cesar Walz – Somos seres de memória. Os fatos já passaram. Mas persistem pela memória. E essas podem ser rancorosas ou amorosas. Mas temos uma predileção pela rancorosa. Isso é um fato. Se eu me mantiver rancoroso ou cheio de razão em relação ao meu passado, por mais terrível que tenha sido, ficará mais difícil conseguir me relacionar amorosamente com o presente, porque o rancor sempre será cruel, cheio de razão e carregado de vitimismo. O passado do rancor nunca deixará de ser passado e, portanto, viver o presente, se tornará quase impossível, ao menos do ponto de vista emocional. Tem um poema do Fernando Pessoa muito bonito sobre isso:
“A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei de encontrá-lo? Quem errou
A vida tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.”
Me encontrar com quem eu deixei de ser é a arte do viver. E talvez uma bela chance de me tornar responsável por mim.
Educação em Pauta – A adolescência também costuma ser uma fase bastante desafiadora para cuidadores e educadores. Nesta fase da vida, que pontos devem ser observados com mais atenção para se ter um relacionamento mais saudável?
Julio Cesar Walz – Se pudesse, trocaria a palavra saudável por um relacionamento mais respeitoso. Todo e qualquer relacionamento gera tensão. Por isso, para que um relacionamento valha a pena ele precisa ser respeitoso. Talvez o respeitoso nesse contexto seja sinônimo de saudável, mas prefiro respeitoso porque fica claro que nessa palavra precisamos agir em favor. Depende da gente. Se eu enxergar no outro um “inimigo” será muito difícil o respeito.
Sobre a adolescência, lembrei da frase do Hesíodo, do séc. VIII a.C.: “Não vejo esperança para o futuro do nosso povo se ele depender da frívola mocidade de hoje, pois todos os jovens são, por certo, indizivelmente frívolos… Quando eu era menino, ensinavam-nos a ser discretos e a respeitar os mais velhos, mas os moços de hoje são excessivamente sabidos e não toleram restrições”. Então, já temos descrita essa frase há mais de 2800 anos e a maneira como as pessoas de mais idade enxergam os adolescentes. Esse período da vida é muito difícil para todos, na média. Então, de posse dessa observação, é difícil para todos, mais cuidado precisamos ter. Cuidado aqui quer dizer manter-se vivo, interessado.
O que acho que podemos destacar, entre tantas coisas, claro, resumo em dois aspectos. O primeiro, não enxergar o futuro ou defini-lo em nossa cabeça a partir do que ocorre hoje. Hoje é hoje. Não temos bola de cristal nem curso de vidente. Hoje somos convocados a estarmos juntos daqueles que estão atrapalhados (como se os adultos não estivessem) e ao mesmo tempo, cheios de vida e querendo mudar o mundo e se afastar dos seus pais. Se não fossem os novos, tenham a certeza, a mesmice seria a característica da vida. Os jovens tiram os de mais idade do lugar comum e os incitam a buscarem coisas novas também. Isso pode ofender os de mais idade.
A segunda questão eu chamaria de ver e aceitar o “des-envolvimento”. O livro tem um capítulo especial sobre isso. Vida é desenvolvimento e “des-envolvimento” simultaneamente. A gente cresce, se aprimora, aprende e evolui. A cada movimento de desenvolvimento ocorre simultaneamente um “des-envolvimento”. Quando aprendo a caminhar, não preciso mais ser levado no colo. Me “des-envolvo” do colo. Quando aprendo a ler e escrever, não preciso que os outros leiam para mim. Uma das características da emoção decorrente do “des-envolvimento” é o sentimento de ser um criminoso, estar fazendo tudo errado ou até mesmo matando seus pais. Podemos chamar essa emoção de sentimento de culpa. Vemos claramente isso na adolescência. Um constrangimento total em tudo que sentem e fazem. E uma raiva de tudo que escutam. Os cuidadores precisam identificar essa emoção e não a atacar pura e simplesmente. Volto a lembrar: essa é a fase que tende a ser a mais difícil do desenvolvimento e do “des-envolvimento” para todos os atores. TODOS.
Educação em Pauta – A psicanálise pode ser uma forma de melhorar os relacionamentos entre adultos e crianças? Como o processo terapêutico pode ser introduzido nas famílias?
Julio Cesar Walz – A psicanálise pode melhorar o “sentimento de sem saída” de uma pessoa. A psicanálise “cura” a neurose, não a vida. A vida precisa ser vivida e aprendida a ser vivida. E faz parte da vida aprender com a experiência. Mas uma mente que se sente sem saída, não se relaciona com a vida, mas apenas ou exclusivamente com seus pensamentos. Nessa posição tem imensas dificuldades em aprender, aceitar que não sabe e que precisa ser responsável por si. Isso podendo ser minimamente resolvido, e a pessoa aceitando a aprender com a experiência, pode, se for do seu interesse, melhorar relacionamentos. Desde que ela goste de se relacionar ou de pessoas.
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