O Cérebro Conectado: como as telas estão transformando nossa mente
Dificuldade de concentração, prejuízos à memória e problemas relativos à socialização estão entre os sinais de que a relação com o digital não vai bem
Quando se fala que o uso prolongado e contínuo de dispositivos eletrônicos e, principalmente, das mídias sociais prejudica o raciocínio, não é exagero. O efeito é perceptível nos adultos e ainda mais perigoso entre crianças e adolescentes, que estão em fase de desenvolvimento. A falta de estímulos nesse período pode ser determinante para a capacidade de aprendizagem pelo resto da vida.
Ao nascer, todos dispomos de um aparato biológico que está pronto para ser desenvolvido. Esse desenvolvimento se dá por meio da interação com o meio. No entanto, a conectividade cerebral – ou seja, a consolidação das ligações entre os neurônios – depende da qualidade da interação que se tem com o meio físico.
Nessa fase, devem ser consolidados aspectos como linguagem, atenção e habilidades de autorregulação. “Quando a gente olha para esses três domínios, vê que a interação com o ambiente é fundamental. Nenhuma delas vai se desenvolver se a interação face a face, individualizada e com os grupos, não acontecer”, aponta a professora do Departamento de Psicologia da Universidade de São Paulo no campus Ribeirão Preto Andréia Schmidt, que estuda o efeito da exposição a telas por crianças pré-escolares.
É por isso, segundo ela, que as associações científicas e de pediatria ao redor do mundo recomendam que as crianças não tenham acesso a tela nenhuma até os dois anos de idade. Essa conta inclui dispositivos como televisão, tablet, smartphones e computadores, enfim, toda sorte de equipamentos de interação passiva. Significa que, quando se está diante da tela, o espectador apenas assiste, ouve, mas não interage – e a mera exposição a esse estímulo é insuficiente para desenvolver os três domínios referidos antes.
Além disso, a exposição passiva, na maior parte das vezes, é solitária. A criança fica na frente da tela sozinha e o maior motivo disso é que os pais precisam fazer outra coisa. “Temos aqui a tempestade perfeita”, lamenta Andréia, reforçando que é nesses dois primeiros anos que o aparato biológico precisa ser estimulado por meio das relações interpessoais e presenciais, formando a base do que a criança vai precisar nos anos posteriores.
O período deve ser preenchido com muita exposição a linguagens, interação, feedbacks, para que o indivíduo aprenda a falar e compreender, a desenvolver os estágios iniciais da atenção e para que aprenda a lidar com as suas emoções e com as emoções decorrentes da interação. Tudo isso vai ficando prejudicado se a criança fica restrita à interação passiva das telas.
Rede neural
“As sinapses são construídas à medida que temos oportunidade de alcançar conhecimentos diferenciados”, comenta o membro do Departamento Científico de Neurologia da Sociedade Brasileira de Pediatria Eduardo Jorge Custódio da Silva. É durante a infância que as sinapses se desenvolvem e vão se intercomunicando, até a adolescência.
Nessa etapa, ocorre a chamada poda sináptica, quando se começa a perder as sinapses. A questão é que se a pessoa fica bitolada em um tipo de conhecimento, esse processo é acelerado e o desenvolvimento cognitivo, alterado. Esse comportamento explica a popularização do termo “brain rot” (algo como “cérebro apodrecido”, em inglês), que faz referência à atrofia da capacidade cognitiva – ocorrida principalmente em função do consumo de informação rasa e do demasiado tempo de interação passiva, em todas as idades.
“O uso excessivo de qualquer coisa prejudica o desenvolvimento de outras coisas. Telas e mídias sociais não oferecem à criança a possibilidade de desenvolver relações sociais, brincar, jogar bola. Ela só vê o mundo em 2D e desenvolve conexões, sinapses baseadas nisso. Graças a Deus tem a lei, agora, para não ter celular na escola, senão nem mesmo no recreio elas teriam vivências”, acredita Custódio.
Quando a criança ou adolescente faz uso excessivo dos eletrônicos, não desenvolve adequadamente o seu traquejo social e vê o mundo em comparação (como o estilo de vida dos influencers digitais ou mesmo das pessoas com quem convive). Isso pode levar, por exemplo, à depressão – pois o jovem acha que sua vida é pior do que a dos outros. “A depressão mantida desencadeia uma dificuldade maior de adquirir conhecimento, assim como o estresse crônico também prejudica”, alerta o médico.
Para Custódio, ainda é precoce arriscar algum palpite sobre o que vai acontecer com a população daqui para a frente. Como essa revolução digital tem cerca de duas décadas, ainda não se tem um recorte histórico e pesquisas com amostragem suficiente para saber. Do ponto de vista funcional, no entanto, já se percebe alterações como a dificuldade de atenção e de concentração.
“Está se criando o termo TDA [Transtorno de Déficit de Atenção] Digital, ou Síndrome de Amnésia do Google. Não se decora mais nada. A minha geração tinha de saber as coisas, agora o conhecimento está na palma da mão, o que por um lado é bom”, pondera Custódio. Ao mesmo tempo, a criança ou adolescente que cresce sem qualquer frustração, com o mundo na mão, como ele define, acaba desenvolvendo quadros de ansiedade, depressão e estresse crônico, além de pouca resiliência.
Que tela é essa
Não se trata apenas de qualidade, tampouco de quantidade: é preciso ter atenção ao tempo e, também, ao conteúdo que é consumido, de forma equilibrada. O pesquisador Fabrício Bruno Cardoso, membro do Conselho Técnico Profissional da Sociedade Brasileira de Neuropsicopedagogia, defende que, antes de mais nada, se questione que tela é oferecida ao estudante. Depois, que se observe o tempo de exposição.
“A gente precisa entender que o problema é o uso de mídia social, vídeos curtos, que não ativam padrões cognitivos, que a gente não precisa fazer um processo cognitivo para entender. Precisamos ter essa ideia de qual é a tela”, explica. Ele lembra que alguns desenhos infantis trabalham a cognição, atribuindo o prejuízo ao uso de mídias que não façam isso – a interação passiva a que Andréia se refere.
A seguir, é importante observar o tempo de tela. Para as crianças maiores de dois anos, até cerca de 10 anos, Fabrício recomenda o limite diário de uma hora de exposição, especialmente às mídias sociais. No caso de videogames, com supervisão de adultos em relação ao conteúdo dos jogos, essa exposição pode ser maior. “Testes que avaliam o desenvolvimento cognitivo do indivíduo não apontaram impacto dos games, mas em socialização e humor sim”, pontua, frisando que o mais importante é o controle e o acompanhamento dos responsáveis.
Controle emocional
A falta de autorregulação nos primeiros anos de desenvolvimento leva a uma série de questões que vão aparecer ao longo do crescimento. A ausência de controle inibitório, um dos grandes efeitos do uso das telas, facilita o surgimento de vícios, como o da tecnologia propriamente dita, mas também outros.
Fabrício explica que as funções executivas podem ser classificadas de diversas maneiras, uma delas é entre quentes (cognição social, emocional, comportamental) ou frias (concentração, organização). Nessa perspectiva, o controle inibitório se enquadra como uma função executiva quente, e aí entra o controle dessas emoções e sentimentos.
A psiquiatra americana Anna Lembke é uma das referências mundiais sobre o efeito da tecnologia no comportamento humano. Especialista em dependência química, ela vem se dedicando a compreender as chamadas “drogas digitais”. No livro intitulado “Nação Dopamina”, a pesquisadora defende que o smartphone fornece esse neurotransmissor de prazer no sistema de recompensa do cérebro, ativando os mesmos circuitos de drogas convencionais, como o álcool.
A solução, como em qualquer vício, consiste na abstinência. Neste caso, estaria no afastamento de todo tipo de dispositivo que acelere a liberação da dopamina, até ter condições de fazer uso adequado. Lembke explica, de forma bastante didática, como o organismo busca, constantemente, o equilíbrio entre o prazer e a dor – e como isso está relacionado à dependência da dopamina proporcionada pelas drogas e pelo mundo digital.
Confira no vídeo abaixo, em sua participação no Fronteiras do Pensamento:
Nesse contexto, Andréia comenta que é na primeira infância que se deve aprender a lidar com as emoções. “Se estou com raiva, não posso sair gritando e batendo em todo mundo”, exemplifica. Esse controle vem das relações interpessoais, com as reconciliações e a inibição de atitudes impulsivas. Quando a criança não interage, não aprende a lidar com as emoções. O tempo de tela rouba o tempo de interação social.
“Outro fenômeno é quando os pais utilizam a tela para acalmar a criança. Se faz birra, os pais não dão o tempo para ela conseguir se organizar emocionalmente e lidar com a frustração. Eles interrompem a frustração dando uma tela e distraindo. A criança que está acostumada a receber a tela para se acalmar vai ter menos oportunidades para desenvolver esse controle das emoções, gerenciar raiva, frustração”, alerta.
Dificuldade de aprendizagem
Entre os sintomas mais visíveis desse impacto estão a falta de atenção, a dificuldade de fazer a leitura de um texto completo ou de começar e se manter em uma mesma tarefa. Nos anos iniciais, segundo Andréia, a alfabetização também é prejudicada. A dificuldade advém do déficit de aprendizagem do vocabulário e da consciência fonológica.
“A gente fica com a ideia de que tem de fazer um ensino muito atrativo, dinâmico, mas esquece que talvez o melhor que a escola tenha a oferecer seja exatamente aprender a se aprofundar. A tecnologia inunda a gente com coisas rasas. A escola precisa ajudar a se aprofundar nas temáticas, por meio da interação. Aprender a observar, refletir sobre um texto”, acredita Andréia.
A ideia é que o conhecimento seja despertado como algo de verdade, relacionado à própria vida do estudante – mas não no nível informativo, como uma pergunta ao Google, e sim aprendendo a pensar sobre o que está acontecendo. Segundo a pesquisadora, mais do que nunca, vai ser papel da escola oferecer isso para as crianças, já que a vida fora dela não vai fazê-lo.
“A escola jamais vai conseguir ganhar a competição da atenção, inclusive porque não pode ser esse o objetivo da escola. Tem que ser dar ferramentas para ela fazer mais e diferente daquilo que o digital já oferece”, conclui.
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