Ensinamentos deixados nas escolas após a enchente de maio
Colégios se transformaram em espaços de reconstrução, bem como ampliaram iniciativas relacionadas ao meio ambiente e acolhimento
As enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em maio de 2024 não deixaram apenas marcas nas cidades: elas também transformaram profundamente a vida dentro das escolas.
Esse impacto foi tão intenso que deu origem ao documentário Além das Águas: a Força da Educação Gaúcha, uma produção do Sinepe/RS, com direção de Róger Riehs. O filme eterniza a coragem, a resiliência e a união de 34 instituições de ensino que, mesmo em meio à destruição, escolheram semear esperança, reconstrução e novos começos.
Agora, um ano depois, começam a florescer os frutos dessa travessia. Mais do que cicatrizes, a enchente deixou aprendizados que mudaram para sempre a forma como as escolas enxergam a educação, o cuidado com o meio ambiente e a formação de cidadãos conscientes e solidários.
O portal Educação em Pauta conversou com porta-vozes de instituições de ensino que, em meio ao caos, encontraram um novo propósito: transformar a dor em força e fazer da tragédia um poderoso agente de transformação para o futuro.
No Instituto São Francisco Santa Família, em Porto Alegre, a enchente teve impactos significativos. A água invadiu os espaços da escola, alcançando 1,70 metro de altura e destruindo salas de aula, mobiliário, equipamentos e parte do ginásio. No entanto, entre perdas e reconstruções, surgiram aprendizados profundos que marcaram a trajetória de alunos, professores e famílias.
A estrutura física da escola sofreu grandes danos: quatro salas de aula, a área administrativa, o ginásio e boa parte do piso térreo precisaram ser refeitos. Foram perdidos móveis, computadores e documentos importantes. Apesar de possuir seguro, a instituição não conseguiu acioná-lo, pois a cobertura não incluía situações de calamidade pública. A recuperação foi viabilizada com recursos próprios, utilizando o fundo de reserva, sem repasses extras nas mensalidades.
Professores e colaboradores, muitos deles também atingidos pela enchente, com perdas materiais e danos em suas casas, foram peças-chave nesse processo de reconstrução emocional. Mesmo sofrendo, colocaram-se à frente do acolhimento dos estudantes, oferecendo a eles exemplos vivos de resiliência e esperança. Sabiam que, naquele momento, representavam um porto seguro para os alunos.
O evento também acendeu a necessidade de reforçar a conscientização ambiental na escola. “A abordagem, porém, foi feita com cuidado, para não associar diretamente as causas ambientais ao trauma da enchente e evitar sentimentos de culpa nos pequenos”, comenta o diretor pedagógico Gerson Luis Pessi.
Cada faixa etária respondeu à tragédia de forma única, exigindo do corpo docente uma adaptação cuidadosa do trabalho pedagógico. Entre os alunos da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, os sentimentos de medo e insegurança eram visíveis. Um episódio marcante aconteceu no fim de março de 2025, quando um vendaval desencadeou um choro entre as crianças que estavam presentes em sala de aula, um reflexo claro do trauma vivido no passado recente.
Os educadores atuaram com escuta ativa, acolhimento e muita sensibilidade, utilizando também a literatura como ferramenta de cura emocional. Um livro bastante usado foi o A Rua da Esperança, de Janie Mansour, doado à escola pela autora, que trouxe uma narrativa acolhedora sobre resiliência comunitária, ressignificando o medo em esperança.
Leituras direcionadas ao meio ambiente e à solidariedade foram estimuladas pelo colégio | Crédito: Divulgação
Entre os adolescentes do Ensino Médio, o acolhimento assumiu outro formato: rodas de conversa, debates e reflexões sobre empatia e amadurecimento. Uma turma do segundo ano, hoje no terceiro, que antes da enchente enfrentava conflitos interpessoais, protagonizou uma verdadeira transformação. “Metade desses alunos foi diretamente atingida. Isso mudou profundamente a forma como eles se relacionam. Houve mais compreensão, mais solidariedade, mais humanidade”, relata Pessi.
Mais relacionado ao meio ambiente, assuntos como separação do lixo, impacto dos resíduos urbanos e energia solar (já utilizada na escola) foram incorporados às atividades. No Ensino Médio, o itinerário formativo em sustentabilidade foi intensificado com debates sobre mudanças climáticas e ações preventivas para a preservação do meio ambiente.
Hoje, a escola ostenta não apenas uma pintura nova e pisos restaurados, mas, sobretudo, uma atmosfera de gratidão e superação. O que se renovou ali vai além da estética, foi o espírito de pertencimento e de coragem diante da adversidade. “Quando as pessoas se unem por uma causa, tudo é possível. O que vivemos prova que, juntos, podemos superar até as maiores enchentes, inclusive aquelas que invadem a alma”, conclui.
O cuidado com o meio ambiente sempre esteve no DNA do Colégio Bom Jesus São Miguel, em Arroio do Meio. Para a gestora da unidade, Maria Cristina Gabriel Gonzatti, essa preocupação, já enraizada na cultura da escola, ganhou ainda mais força após a enchente, que devastou o município.
A enchente atingiu duramente o colégio, provocando grandes perdas materiais, entre elas a destruição da biblioteca, que abrigava mais de 10 mil livros. Mas, em meio ao cenário de destruição, floresceu uma poderosa rede de apoio. “Foi emocionante ver como somos cercados por amigos. Todos se mobilizaram para limpar, reorganizar e reerguer a escola”, lembra Maria Cristina.
Apesar de possuir seguro, a maioria das despesas não foi coberta. O suporte veio da força coletiva da Rede Bom Jesus, que reúne 37 unidades, por meio de doações de livros, materiais de higiene e apoio logístico.
Graças ao esforço conjunto, as salas de aula foram reformadas, os espaços repaginados e o colégio pôde retomar suas atividades em um ambiente renovado e acolhedor. Para a comunidade escolar, a reconstrução física trouxe também uma transformação emocional e social: um fortalecimento dos vínculos e da responsabilidade compartilhada.
O envolvimento com causas ambientais se aprofundou a partir da experiência direta com os danos provocados pela enchente e da percepção dos impactos da produção excessiva de resíduos. Os estudantes passaram a demonstrar ainda mais sensibilidade ecológica, trazendo questionamentos, angústias e propostas para a escola. “É um aprendizado constante, que vai muito além da sala de aula”, afirma a gestora.
No ano passado, o colégio avançou ainda mais nesse compromisso ao alinhar suas práticas aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), da Unesco. Um dos projetos de destaque foi a criação de um ecoponto para coleta de resíduos plásticos, em parceria com a empresa Girando Sol. Após palestras de sensibilização, alunos do 9º ano se tornaram multiplicadores da causa, incentivando colegas de todas as idades a participarem da iniciativa.
A escola estruturou um espaço específico para receber embalagens plásticas, como garrafas PET e frascos de detergente, e organizou toda a logística de recolhimento. “É gratificante ver desde os pequenos chegando com sacolas cheias de material reciclável”, comenta Maria Cristina.
Com grande adesão da comunidade escolar, ecoponto foi instalado dentro da estrutura da escola | Crédito: Divulgação
Além disso, o Bom Jesus São Miguel mantém campanhas como a arrecadação de tampinhas plásticas, cuja venda é revertida para a Liga Feminina de Combate ao Câncer. Outra iniciativa inspiradora foi desenvolvida pelos alunos do Ensino Médio: um projeto de pesquisa sobre estratégias de prevenção a enchentes adotadas em outros países. Motivados pela experiência da enchente de setembro de 2023, eles investigaram soluções urbanísticas e apresentaram o trabalho na Associação Comercial, Industrial e de Serviços de Arroio do Meio (Acisam), promovendo importantes reflexões sobre ocupação de áreas de risco.
Hoje, a preservação ambiental permeia todas as áreas do conhecimento. Em matemática, por exemplo, os professores discutem o consumo de energia elétrica e a viabilidade da energia solar, analisando custos e benefícios de cada fonte. Essa abordagem transversal reforça nos alunos a consciência crítica e prática sobre sustentabilidade.
No colégio, a reconstrução foi muito além das paredes: fortaleceu laços humanos e consolidou valores que moldarão as futuras gerações. “O verdadeiro legado é o espírito de solidariedade, resiliência e cuidado com a vida e com a natureza, missão que carregamos com orgulho”, celebra a gestora.
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Comitê dedicado às causas ambientais
No Colégio Nossa Senhora de Fátima, em Santa Maria, a preocupação com o meio ambiente ganhou impulso a partir de 2023. Isso foi possível pelas formações continuadas dos educadores, com destaque para o estudo da Encíclica Laudato Si’ e do Pacto Educativo Global, ambos propostos pelo Papa Francisco. Foi dessa mobilização que nasceu o Comitê Escolar Ambiental, criado para integrar a sustentabilidade de maneira efetiva ao cotidiano escolar.
A iniciativa surgiu com o objetivo de construir uma agenda ambiental participativa, envolvendo toda a comunidade educativa em práticas sustentáveis contínuas e integradas, sempre com uma abordagem humanista, democrática e interdisciplinar, em consonância com a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA).
No entanto, a tragédia ambiental de maio de 2024 reforçou ainda mais a urgência dessa pauta. Em Santa Maria, bairros inteiros ficaram dias sem abastecimento de água, o que levou o Comitê a organizar campanhas de conscientização sobre o uso responsável dos recursos hídricos e rodas de conversa sobre as mudanças climáticas e seus impactos. A vivência concreta da escassez despertou nos estudantes e em suas famílias uma reflexão profunda sobre a responsabilidade coletiva no cuidado com o planeta.
A participação no comitê é voluntária, conforme explica a gerente de Marketing do colégio, Simone Santana. Os educadores são convidados pelas coordenações pedagógicas com base em seu interesse e disposição para colaborar nas ações. Já os estudantes passam por entrevistas conduzidas pelo Núcleo de Gestão e Coordenações Pedagógicas, que avaliam o interesse genuíno, o comprometimento escolar e o comportamento colaborativo. A ideia é formar um grupo diverso, engajado e representativo, capaz de impulsionar as iniciativas com entusiasmo e responsabilidade.
Entre os projetos já realizados estão o boletim Fatnews, com edições digitais e impressas que divulgam as ações do Comitê, o plantio de árvores em áreas do colégio e da cidade, o Pedágio Ecológico, no qual alunos distribuem mudas em recipientes recicláveis. Também foi promovida a criação da Horta Solidária, com parte da produção destinada a instituições e famílias em vulnerabilidade, e a implantação de Pontos de Coleta para tampinhas, lacres e cartelas de medicamentos, posteriormente encaminhados para projetos de reciclagem sem fins lucrativos.
Horta Solidária destina parte da produção à instituições e famílias em situação de vulnerabilidade | Crédito: Divulgação
A orientadora educacional Danieli Wayss Messerschmidt destaca o alto nível de engajamento dos estudantes. Eles participam ativamente, mobilizam colegas e familiares e, frequentemente, lideram novas ações com criatividade e responsabilidade. “O brilho nos olhos ao plantar uma árvore ou ao montar a Horta Solidária mostra que o projeto vai muito além da teoria, ele inspira ação concreta”, comenta Danieli.
O impacto já é visível: os estudantes passaram a cuidar melhor dos espaços comuns, reduzir resíduos em sala de aula e incentivar práticas sustentáveis no dia a dia escolar. O que antes era trabalhado de forma pontual agora se tornou um compromisso contínuo, com efeitos que ultrapassam os muros da escola e chegam à comunidade local.
Para 2025, o Comitê Ambiental prepara novos passos. A partir de maio, serão realizados encontros de formação para aprofundar os conhecimentos dos participantes e planejar as próximas ações. Entre as novidades, está a Campanha de Observação do Espaço Escolar, que irá mapear pontos de melhoria na escola e na comunidade, propondo soluções práticas e sustentáveis.
Dessas observações nascerão projetos transformadores, como oficinas de produção de papel reciclado a partir de resíduos coletados nas salas de aula. Além disso, o colégio planeja fortalecer a vivência interdisciplinar com a participação em eventos externos e saídas de campo para espaços de referência em educação ambiental, conectando teoria e prática de maneira alinhada à Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Nessa escola, a educação ambiental deixou de ser apenas um conteúdo curricular para se tornar um compromisso coletivo. “Assim é capaz de inspirar atitudes, gerar transformação e plantar sementes de um futuro mais sustentável”, celebra Simone.
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