Educação e humanização em um mesmo processo

Neste artigo, o educador Cesar Nunes propõe uma leitura ética sobre tecnologia e ensino e defende valores para uma convivência plural

imagem: Freepik

Cesar Nunes, licenciado em Filosofia, História e Pedagogia. É Mestre em Filosofia da Educação e Doutor em Filosofia e História da Educação. Atualmente é professor Titular da Faculdade de Educação da Unicamp na área de Filosofia da Educação, coordenador da linha de Pesquisa Filosofia e História da Educação e do Grupo de Estudos PAIDEIA. É Professor Visitante Colaborador na Universidade de Coimbra sobre Direitos Humanos. Escreveu 39 livros, além de dezenas de artigos científicos. É palestrante e conferencista.

O tema deste artigo tem sido recorrente em minhas preocupações e reflexões: a relação entre educação e escola, a necessidade constante de práticas de humanização e o impacto das novas tecnologias em nossa vida cotidiana e nas relações educacionais. Em resumo, este é um texto sobre Educação, Tecnologias e Humanização.

Lembrei-me do cantor e compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues, que cantava que “o pensamento parece uma coisa à toa, mas como a gente voa quando começa a pensar”. Tenho comigo que ele usou a expressão “à toa” somente para construir uma rima rica, pois certamente sabia que o pensamento não é uma realidade secundária, mas uma das distinções radicais da condição humana – só que isso é outra história.

Em um sentido antropológico-histórico, tenho defendido que “educar” e “humanizar” são fenômenos integrados, referem-se, cada um a seu modo, à definição e à explicitação de um mesmo processo dinâmico – a constituição histórica da condição humana – a partir da produção social da escola. Somos seres históricos, constituídos pela prática social da humanidade, singularmente delineados por meio da produção cumulativa e da reprodução acumulada das descobertas e das invenções engendradas através dos tempos e dos lugares pelos grupos humanos.

Somos também seres culturais, isto é, constituídos pela cultura, não nascemos prontos, somos feitos seres humanos, nos fazemos pessoas, pela transmissão/engendramento da cultura. A escola é uma instituição socialmente encarregada da transmissão transgeracional da cultura, de uma geração para outra, por meio da prática social da educação. Disso decorre a importância estrutural da educação e da escola no processo de constituição do ser humano, no processo de humanização.

Tecnologias entre fazer e pensar

Tenho buscado recompor um sentido mais coerente e muito mais amplo do conceito comum de tecnologia. Hoje vejo que esse conceito está carregado de imprecisões históricas e até mesmo semiológicas e etimológicas. A palavra grega tekne tem o sentido de fazer, de operar, de agir, e o complemento deriva de logos, logia, como um conceito que significa pensar, entender, refletir. Assim, o substantivo tecnologia teria, em si mesmo, em sua origem, um sentido dialético e integral, unindo o saber fazer e o pensar sobre o que se faz.

A palavra tekne foi adensada de sentido acentuando a acepção de artefato, de materialidade, até mesmo reunindo saberes sobre o manejo, o jeito de operar ou de fazer algo, consubstanciada no conceito usual de técnica. Subtraiu-se a relação com o pensar, decorrente do sufixo logia. Reduziu-se, por assim dizer, ao determinismo da operacionalidade. Ser técnico acabou por expressar, ainda que em um sentido comum, a dimensão do fazer, do manejar, do prático, do artefato, do útil e pragmático, despido de referenciais teóricos, reflexivos e conceituais. Mas, repito, isso é um desvirtuamento do alcance original do termo.

As ciências humanas e sociais comprovam que a caminhada histórica da humanidade exigiu muito esforço coletivo, grupal e singular. Isso para identificar símbolos e apropriar-se da compreensão de processos da natureza, do sol e da lua, da abóbada celeste e das estrelas. O intuito é reconhecer e significar os dias e as noites, para estabelecer a compreensão dos ciclos do tempo e das estações, para fazer as correlações entre a luz solar, as chuvas, o cheiro das flores e o gosto das frutas. A seleção onívora de tudo que era bom e o que poderia ser nocivo, as plantas e os animais, o dinamismo das águas e das temperaturas, as fases lunares e os rios e mares – tudo isso aparentemente simples. Mas que custou muito, muitíssimo, para que os grupos humanos definissem um conceito de Tempo (cronos) e de Lugar (topos), ajustados à duração e à dinâmica de uma vida humana, integrados à totalidade dos processos biológicos e naturais.

Assim, os saberes que se constituíram em marcas e símbolos desse longo percurso são genuinamente as primeiras tecnologias sociais e humanas. Nessa arqueologia semiológica, a História é excelente e matricial tecnologia. A Geografia é tecnologia social. A Linguagem, marca ontológica do ser humano, o trabalho de gerenciar o fogo, cozer, criar artefatos, cortar coisas para proteger o corpo, para fazer a casa (oikia), cobrir-se, guardar alimentos, para transportar coisas. Quanta e quanta tecnologia há nas tarefas que hoje parecem simples e desprovidas de saberes, na produção transgeracional da condição humana, singular e coletiva.

A acentuação da criação de artefatos para a provisão da vida humana deu-se, pioneiramente, na complexa Revolução Industrial Inglesa (1780), e multiplicou-se com seu lastro global, movido pela expansão da sociedade moderna. Não temos tempo para ampliar esse marco. Mas, nada se compara ao processo, derivado da mesma matriz, que se deu com a produção dos computadores e com a criação das redes mundiais de transmissão e dados.

Inteligência artificial e os novos desafios éticos

As duas décadas finais do século 20 viram o nascer das grandes invenções tecnológicas de manejo, produção e transmissão de dados. Mas ainda não tínhamos noção do que seria o que hoje ficou convencionado denominar como IA (Inteligência Artificial), em uma fase na qual computadores inteligentes e potentes, plataformas e aplicativos de inconcebível capacidade, fazem coisas que causam admiração e algum receio pelos desdobramentos que podem ter.

Não tenho medo das tecnologias, ainda que no sentido restrito desse conceito, e nem da IA. Minha preocupação é com a formação de uma geração que tenha critérios éticos e estéticos para realizar a apropriação das tecnologias, e em como ajudar esses novos sujeitos a colocá-las a serviço de causas coletivas e grupais, com autonomia e compromisso social e político. Reconstituir o conceito de Tecnologias, no sentido de teoria e práticas das criações e produções humanas, com a acentuação da ontológica responsabilidade humana sobre a sustentabilidade, a justiça social e os necessários processos de inclusão. Deliberar pela potencialidade das tecnologias disponíveis, alinhadas ao propósito de produzir, no mundo da produção econômica, de maneira qualificada e sustentável. Isso para que todos possam alimentar-se com dignidade, para que o trabalho seja uma mediação humanizada e digna, na intencionalidade de gerar uma qualidade de vida socialmente justa e equilibrada. Muitas dessas intenções podem parecer ingênuas, mas são nossas únicas possibilidades de construir um mundo novo.

Urgência da dignidade e da fraternidade

Resta-nos ainda pensar: estamos vivendo um momento de exceção, há hoje uma cultura da violência e do ódio mais intensa do que em outras épocas? Ou estaríamos somente tendo condições de maior visibilidade, pela sociedade de alta tecnologia de informação. Dessa dimensão agressiva das sociedades, de modo que acabamos sendo bombardeados todos os dias por todos os acontecimentos de destaque no mundo, prevalecendo sempre aqueles que guardam algum vínculo com a guerra, com a violência e com a degradação do mundo, das pessoas, da natureza e da sociedade?

Precisamos pensar seriamente se temos constituído uma cultura do altruísmo, da humanização das coisas, da exaltação da não violência e da atitude coletiva da tolerância. Já vivemos tempos distintos e épocas diversas nas quais essas palavras tinham maior adesão, ressonâncias e forças persuasivas.

Há diversas possibilidades para pensar essa dimensão. Alguns a responderão buscando as possíveis causas da agudização da atual cultura da intolerância, facilmente passível de ser identificada na contraditória divisão de riquezas do nosso mundo. Outros encontrarão razões na suposta natureza humana, tal como dizia o filósofo Thomas Hobbes: o homem é o lobo do homem, assumindo a premissa de que somos naturalmente voltados para a guerra, para o enfrentamento conflitivo e para a maldade.

Nem preciso citar o contraponto de Jean-Jacques Rousseau, que defendia que o homem nasce bom, e a sociedade, para ele, seria o espaço e a instituição que o depravaria e o brutalizaria. Não temos mais essas pretensões deterministas de achar que o ser humano seja bom ou seja mau por sua natureza, por uma determinista causalidade ontológica, engendrada no âmago da condição humana. Nosso pensamento é histórico: ou desenvolvemos as potencialidades humanas boas ou propositivas ou desenvolvemos uma cultura de dominação e de violência de todos contra todos.

Ética como base para um novo mundo possível

Todas essas respostas podem ser evocadas, mas ainda são parciais e insuficientes. Mas, para além dessas considerações deterministas e na intenção de justificar ou de compreender as causas de nossa cultura belicosa e violenta, no mundo de hoje, necessitamos de pessoas e de ideais que superem esses lugares comuns e que estabeleçam novas coordenadas éticas e políticas para a condição humana de nosso tempo. Esse horizonte ético e político principia-se com o reconhecimento da dignidade da pessoa humana. A dignidade de toda pessoa é o fundamento de toda sociedade e a base de toda política que se disponha a justificar-se como tal.

Aristóteles definia a Ética e a Política como as denominadas duas ciências práticas, engendradas pela sociedade e pelos grupos humanos, na direção de organizar a vida doméstica e particular (Ética) e a vida coletiva e pública (Política). Não há como constituir valores para referendar a vida moral e política sem essa dimensão ética. Aqui a palavra Ética assume o sentido de “valores que sustentam a vida particular”. E a política seria a dimensão de organizar a felicidade e o bem-estar comum, de todos, o justo equilíbrio da coletividade. Essa seria a principal prova de nossa humanidade: somos humanos quando reconhecemo-nos como seres humanos que geram valores para as condutas de todos, quando realizamos a vida prudente e equilibrada, quando praticamos a temperança e vivenciamos a prática da tolerância recíproca.

Estamos novamente diante da Esfinge: “decifra-me ou eu te devorarei”! A nossa única possibilidade de decifrar a vida, coletiva e grupal, pessoal e subjetiva, consiste em superar, ou buscar superar, a cultura da barbárie e da selvageria. Buscar constituir valores que adensem sentidos para nossa vida e para nossa realidade vivencial, nosso entorno, nossas vivências e nossos interlocutores. 

Praticar a solidariedade é uma decisão de foro ético, respeitar as opiniões dos outros é outra decisão ética. Reconhecer as diferenças, respeitar as outras formas de ver o mundo e de viver a vida são decisões políticas de alta sensibilidade. Essa é a tarefa primordial posta para nossos dias: projetar no mundo características humanas de dignidade, de respeito à diversidade, de pluralismo, de temperança, de tolerância e de fraternidade. Para a natureza ter olhos de preservação e de sustentabilidade, para os animais, as práticas de cuidado e de acolhimento, para os demais seres humanos, as premissas da aceitação, do cuidado de si e dos outros, da diversidade e da liberdade de toda pessoa.

Temos que ser no mundo a mudança que sonhamos para o mesmo mundo – nos ensinava Mahatma Gandhi. Nestes tempos sombrios e intolerantes, pratiquemos a virtude da fraternidade e a promoção da dignidade humana. A cultura do amor, como fundamento da humanização, nunca foi tão necessária como tem sido hoje.

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