Construindo uma cultura antirracista a partir da sala de aula

Professores apontam caminhos para trabalhar questões étnico-raciais com estudantes, fomentando a luta contra o preconceito de forma lúdica, eficiente e transformadora

por: Jean Peixoto | jean@padrinhoconteudo.com
imagem: Gemini

Marco da luta por igualdade racial, o Dia da Consciência Negra é celebrado em 20 de novembro em homenagem a Zumbi dos Palmares, líder do maior quilombo da América Latina, que foi capturado e morto neste dia em 1695. A data, que promove a valorização da história e da cultura do povo negro, foi escolhida como alternativa ao 13 de maio, que remonta à Lei Áurea, questionando a ideia de uma “liberdade concedida” e enfatizando a luta contínua contra o racismo e a desigualdade. A data foi oficialmente instituída pela Lei nº 12.519, em 2011, e se tornou feriado nacional em 2023.

A professora Johanna Ermacovitch Coelho, membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da Unisinos, reitera que abordar a igualdade racial em sala de aula é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa. Ela pontua que essa abordagem ajuda a fortalecer a autoestima e a construção de uma identidade positiva de crianças negras e indígenas, confrontando representatividades negativas e estereótipos relacionados a pessoas negras. Além disso, ela frisa que o tema é positivo para todos os estudantes.

“A educação das relações étnico-raciais é sobre valorização das culturas negras e indígenas, mas ela também envolve pessoas brancas. Trabalhar esse tema ajuda a formar uma geração mais consciente, mais justa, mais crítica, que seja capaz de reconhecer e combater o racismo em suas diversas formas. É importante deixar sempre um canal de diálogo aberto sobre preconceito, porque isso prepara os jovens para caminhar em uma sociedade que ainda é desigual e ainda luta pela equidade”, diz a professora.

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Johanna sublinha que o racismo não é um assunto transversal. Ela pontua que raça e etnia são questões estruturantes da sociedade que impactam diretamente nas vidas das pessoas em questões como saúde, educação e segurança. Desse modo, ela ressalta que é importante abordar a temática étnico-racial de forma séria e contínua no ambiente escolar, para além do 20 de novembro.

“É importante que se integre essa temática a todo o currículo e às práticas escolares. Isso envolve uma revisão curricular, ou seja, inserir a história e a cultura afro-brasileira e também indígena, que é o que diz a Lei 10.639, de 2003, atualizada pela 11.645, de 2008. Incluir essa temática em todas as disciplinas e sempre destacar o protagonismo e as contribuições, tanto dos povos africanos quanto dos povos indígenas, na história, nas ciências, na arte, na literatura e, como a gente diz, fazer uma leitura contracolonial. Por exemplo, trabalhar mitologia africana, não só mitologia grega. O letramento racial também é muito importante, e é importante que isso não caia num senso comum”, diz a professora.

Preparo do corpo do docente

A pesquisadora da Unisinos afirma que preparar o corpo docente é a base para o sucesso de qualquer estratégia de abordagem das questões étnico-raciais em sala de aula. Johanna Ermacovitch Coelho listou três pilares para o sucesso desse preparo.

  1. Formação crítica: os currículos devem abordar a negação do racismo estimular o auto questionamento e o reconhecimento do próprio lugar de fala

  2. Conteúdos específicos: oferecer conhecimentos sólidos sobre a história de África, das culturas afro-brasileiras e indígenas. A base para se trabalhar essa temática em sala de aula deve ser as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que constam no portal do governo federal

  3. Práticas pedagógicas antirracistas: capacitar os professores para revisar os seus materiais. Por exemplo, se um material de apoio contém uma foto em que apareça um grupo composto somente por pessoas brancas, o professor deve se questionar se aquela imagem representa, de fato, a diversidade racial presente na sociedade brasileira. Se for possível, o ideal é substituí-la por outra imagem em que apareçam também pessoas negras. O planejamento das aulas tem que ter a intenção de ser antirracista no dia a dia.


Literatura pela igualdade

No mês da Consciência Negra, os alunos do Ensino Médio e do Fundamental II do Colégio Nossa Senhora da Glória, de Porto Alegre, lançaram um livro coletivo com redações escritas pelos estudantes sobre igualdade racial. A iniciativa nasceu nas aulas de redação do professor Lucas de Melo Bonez, que propôs a escrita de contos tratando sobre o racismo e a história do movimento negro no Brasil, estimulando reflexões e construções literárias sobre o tema.

“A ideia foi compor histórias que evocassem situações raciais e que os personagens pudessem resolver os problemas, encontrando uma forma para que o preconceito fosse diminuído”, explica o professor.

Bonez conta que todos os alunos participaram de debates sobre racismo, sociedade e empatia, adequados à faixa etária de 11 a 12 anos. Ele frisa que o projeto buscou aliar educação moral, social e escrita criativa para formar jovens mais conscientes e críticos. O professor enfatiza que o projeto gerou debates relevantes e produtivos, contribuindo tanto para a formação social quanto para o aperfeiçoamento da escrita. O objetivo era que os textos refletissem situações do cotidiano, e não apenas seguissem regras formais de narrativa.

Intitulado “Histórias de Consciência”, o livro começou a ser produzido em julho e foi desenvolvido ao longo de quatro semanas. O lançamento ocorreu no dia 8 de novembro, durante a mostra cultural promovida pela escola. A coletânea é composta por 28 textos produzidos por mais de 60 alunos, a maioria em duplas.

A escola tem que ser um grande vetor de construção de cidadania. Precisamos compreender que uma sociedade é composta por muita diversidade. E compreender que cada cultura, cada cor, cada gênero tem as suas características, as suas qualidades, viabiliza com que nós todos consigamos entender que não existe superioridade, inferioridade em torno disso, e que a sociedade precisa ter um olhar mais atento para essa equidade necessária. Para que todo mundo consiga vivenciar socialmente as suas relações de maneira mais efetiva”, sublinha o professor. 

O lançamento com sessão de autógrafos do livro “Histórias de Consciência” ocorreu no dia 8 de novembro no Colégio Nossa Senhora da Glória | Crédito: Colégio Nossa Senhora da Glória / Divulgação

Construção contínua

Desde 2023, o Colégio Marista Rosário, de Porto Alegre, conta com o Grupo de Articulação da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER), que debate temas relacionados à igualdade racial com alunos e funcionários. O professor Rodrigo Fagundes explica que o grupo é formado por representantes de diversos setores da escola, como tesouraria, biblioteca e informática, além de professores, educadores e monitores de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio.

Professor Rodrigo Fagundes em atividade do Grupo de Articulação da Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) no Rosário | Crédito: Arquivo Pessoal

O grupo organiza atividades mensais com diferentes segmentos escolares, visando a integrar todos os anos em ações relacionadas à temática étnico-racial. Essas atividades variam entre saraus, mostras, oficinas, paradas pedagógicas e cine-debates. O professor, que é responsável pelas aulas de Geografia dos anos finais, relata suas experiências com turmas do 9º ao 6º ano, que incluem debates a partir de filmes como Estrelas Além do Tempo e Negação do Brasil, que abordam temas como racismo e representatividade negra.

O professor explica que a escola opta por não concentrar as atividades apenas em novembro, mês da Consciência Negra, para evitar o caráter protocolar e superficial dessas ações. Em vez disso, o Colégio Marista Rosário realiza e divulga atividades ao longo de todo o ano, demonstrando o compromisso permanente com o tema.

Publicações no Instagram da escola reforçam essa continuidade, com registros de atividades desde a Educação Infantil até o Ensino Médio. A intenção é mostrar que o trabalho não depende de uma data específica, mas é parte constante do projeto pedagógico. O grupo tem dois objetivos principais:

  • Valorizar a produção e as contribuições históricas e culturais dos povos não brancos (negros, indígenas, ciganos e outros), destacando sua importância na construção do conhecimento e da sociedade. O professor cita o uso do livro História Preta das Coisas: 50 Invenções Científico-Tecnológicas de Pessoas Negras, de Bárbara Carine Soares Pinheiro, para ilustrar invenções e criações de origem negra

  • Preparar os estudantes para a convivência em uma sociedade plural, mostrando que o mundo real é diverso e que a educação deve refletir essa realidade.


“Aqui no Rio Grande do Sul, muito se fala sobre o que foi construído por alemães e italianos, e isso apaga até os brancos que vieram antes, como açorianos, além de indígenas, e negros. Por isso, precisamos estudar também o legado, a construção, a contribuição dos não brancos e preparar esses estudantes para viver em sociedade”, reitera o professor.

Obras para pensar sobre o racismo

Estrelas Além do Tempo (2016): A história real de matemáticas negras na NASA, cuja inteligência foi crucial na Corrida Espacial. Elas superaram o racismo e o sexismo em uma jornada inspiradora

Doze Anos de Escravidão (2013): Baseado na história real de Solomon Northup, um homem negro livre que é sequestrado e vendido como escravo. Um retrato visceral e inesquecível da brutalidade da escravidão

Sankofa: A África que Te Habita (2020): Série documental que segue uma expedição ao continente africano, refazendo as rotas da escravidão. Uma jornada poética e essencial para resgatar a memória e a ancestralidade

Menino 23: Infâncias Perdidas no Brasil (2016): Documentário investiga a chocante história real de meninos negros levados de um orfanato para uma fazenda nazista no Brasil dos anos 1930, onde foram submetidos a trabalho escravo

Doutor Gama (2021): Narra a trajetória de Luiz Gama, um ex-escravo que se tornou um proeminente advogado e abolicionista, lutando pela liberdade de centenas de escravizados.

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