Alfabetização e autismo: a importância da parceria entre escola e família
Doutora em Educação Especial, Camila Graciella Santos Gomes traça um olhar para crianças e adolescentes com autismo e o quanto elas podem se desenvolver por meio do ensino
Há mais de 20 anos trabalhando com autismo, a psicóloga e doutora em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Camila Graciella Santos Gomes, reforça que muita coisa mudou durante esse período. Anteriormente, havia pouca informação, poucas pessoas diagnosticadas e a prevalência era muito menor do que temos hoje em dia.
No Brasil, ainda não existem dados de prevalência. A título de dimensão, nos Estados Unidos, de acordo com o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), existe um caso do transtorno a cada 36 pessoas.
Na visão de Camila, por mais que os acessos às informações e às pessoas diagnosticadas tenham evoluído, além de maiores recursos para tratamento e escolarização, ainda há muito a se fazer.
Por isso, em alusão ao Dia Mundial de Conscientização do Autismo, celebrado anualmente em 2 de abril, o Educação em Pauta realizou uma entrevista exclusiva com a especialista.
Camila também é professora da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais e membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia sobre Comportamento, Cognição e Ensino (MCTI/CNPq/FAPESP/CAPES).
É autora dos livros “Ensino de Leitura para Pessoas com Autismo“, “Ensino de Habilidades Básicas para Pessoas com Autismo” e “Ensino de Habilidades de Autocuidados para Pessoas com Autismo“.
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Educação em Pauta – Em relação à parte comportamental, existem diferenças entre crianças e adolescentes autistas?
Camila Graciella Santos Gomes – Sim, tem muitas diferenças e as demandas são diferentes tanto na infância como na adolescência. Quando se aborda o autismo, estamos falando de uma população muito variada. Dentro do espectro, há pessoas com um comprometimento muito significativo, que não falam, baixa compreensão, dificuldades em questões de autonomia, independência e muitos problemas de comportamento. Em outro extremo, podemos ter um perfil com um nível de suporte menor. Pode haver uma criança que fala, que acompanha o conteúdo e com problemas de comportamento não tão severos. Logo, é difícil traçar um perfil de diferença comportamental entre crianças e adolescentes.
Na infância o foco é no ganho de desenvolvimento em todos os aspectos sociais, cognitivos e de linguagem. Já na adolescência, se prepara para a vida adulta, na empregabilidade, isso considerando o perfil do adolescente.
O autismo é multidisciplinar, não tem uma profissão específica que vai dar conta de todas as demandas. Precisa realmente ter uma equipe muito boa envolvida. É necessário ensinar a habilidade adequada, porque se não ensinar nada, a criança só fica com aquele repertório de comportamento inadequado. É ficar atento ao comportamento para prevenir problemas. É tentar sempre recompensar o bom comportamento. Todo mundo tem que fazer um pedacinho e a escola não pode ficar sozinha, jogar a responsabilidade para o professor. Agora, uma criança bem assistida, bem medicada, que faz terapias no contraturno, tem tudo para ter sucesso no ambiente escolar.
Educação em Pauta – E seria o caso de criar regras dependendo de cada caso do estudante?
Camila Graciella Santos Gomes – É difícil a gente ter regras específicas para o manejo de todos os comportamentos. Acredito que é difícil avaliar cada criança, porque cada aluno com autismo é diferente. É avaliar o seu histórico, o perfil da família, para que a escola consiga traçar uma intervenção direcionada para aquele aluno específico. A criança com autismo, que não tem tratamento adequado, vai ter problema na escola.
As crianças que atendi há 20 anos são adultas agora. Tenho muitos pacientes que atendi pequeninos e que estão no curso superior. O que deu certo foi o tratamento, a gente conseguiu seguir com esse aluno até o segundo grau e pensar em sua ocupação. É claro que nem todas as pessoas com autismo vão chegar a um curso superior, mas o importante é proporcionar que cheguem à vida adulta com uma qualidade de vida e, quem sabe, com uma certa autonomia para conseguir fazer coisas básicas.
Educação em Pauta – Aliás, a autonomia do aluno na aprendizagem é algo sempre muito debatido. No caso dos autistas, como é possível atingir isso?
Camila Graciella Santos Gomes – Quando pensamos em sucesso, é quando um adulto que chega com independência e autonomia vai trabalhar ou até fazer coisas de casa. Por exemplo: um perfil de um nível de suporte 3, um adulto com autismo não-falante, pode ter qualidade de vida autônoma. Talvez ele não vá ter um emprego fora de casa, mas pode funcionar bem dentro de casa. Mas o que caminha bem no tratamento do autismo? É o diagnóstico precoce, quanto mais cedo, melhor, pois terá a intervenção interdisciplinar precoce e adequada. É possível alfabetizar uma criança com autismo? Claro que é. É possível uma pessoa com autismo chegar até o segundo grau? Sim, mas com adaptações.
Para as crianças típicas, a gente ensina tudo, mas, quando se tem um aluno com autismo, ele já tem dificuldade. Então, se focar em ensinar tudo, ele não vai aprender, porque o autismo traz dificuldades de aprendizagem. Mas se focar no básico, que é a leitura, a escrita e a matemática, esse aluno vai chegar no segundo grau com algum repertório para trabalhar para um curso técnico superior, para ele ganhar autonomia.
Educação em Pauta – Em um dos seus livros, você aborda justamente o ensino de habilidades básicas. Pode explicar um pouco mais como estimular isso?
Camila Graciella Santos Gomes – Quando começa a intervenção em um paciente com autismo, a gente quer que aquela pessoa com autismo fale, escreva e interaja socialmente, bem como seja alfabetizado. Só que isso tudo requer interação e alfabetização, isso tudo, são habilidades complexas. Só dá para chegar em habilidade complexa se a pessoa com autismo aprender habilidades muito básicas e isso é igual a um bebê. A gente não pode exigir que corra, se ele não aprender a andar primeiro. Então, habilidade básica é um conjunto de habilidades iniciais.
Muitas crianças com autismo não possuem autocuidado, que é banho, escovação, alimentação, vestir e tirar a roupa para dar autonomia. Ter um tipo de habilidade básica, trabalhando o autocuidado, aí a criança avança em uma habilidade básica, pois está desenvolvendo a comunicação. A partir daí a gente pensa na alfabetização. A habilidade básica é esse conjunto de atividades iniciais que vão dar base para a criança aprender habilidades mais complexas.
Educação em Pauta – Outro livro de sua autoria aborda o ensino de leitura no autismo. Poderia também abrir um pouco mais esse tema?
Camila Graciella Santos Gomes – Alfabetizar uma criança com autismo dá muitas possibilidades na vida. A leitura dá poder para a gente. Todo lugar que a gente vai tem coisas escritas, a nossa comunicação envolve muito a escrita. No WhatsApp, lemos e escrevemos. Você vai na rua, lê o que está escrito em um restaurante. Então, a leitura dá poder e dá acesso ao ambiente, aumenta a compreensão. Ensinar a leitura para uma criança com autismo é muito desejável, porque aumenta a compreensão das coisas. Por outro lado, a leitura aumenta a chance da criança permanecer na escola e seguir até o final, porque tudo na escola depende de leitura. A matemática depende de leitura, a ciência também, enfim todo o conteúdo escolar. Uma criança com autismo alfabetizada aumenta a chance de seguir na escola até o segundo grau. Quando uma criança com autismo não avança no processo de alfabetização, a escola vai ter que fazer muitas adaptações para que ela se mantenha. Por exemplo, um rapaz de 12 anos de idade com transtorno que não sabe ler, tem pouca coisa para fazer de conteúdo pedagógico. A escola vai ter que adaptar tudo para ele. Aos 12 anos, o conteúdo de leitura é enorme. Então, alfabetizar uma criança com autismo melhora muito a qualidade de vida, a autonomia, a compreensão e também permite que essa criança siga na escola até o final.
O processo de alfabetização é um processo longo para qualquer criança. Se a gente pensar na criança típica, o processo de alfabetização começa lá na educação infantil e segue até os 9 ou 10 anos, lendo e compreendendo sozinha. Então, para as crianças com autismo, o processo é lento. A minha recomendação é sempre começar um pouquinho mais cedo, por volta de 4 anos e meio ou 5 anos, porque aí dá tempo de alfabetizar devagar. A alfabetização é um processo complexo, a gente vai trabalhando um pedacinho de cada vez. Começa, por exemplo, com vogais, encontro vocálico, ensino de sílaba simples e complexa, leitura oral e assim sucessivamente. É um processo complexo, mas é bem viável.
Educação em Pauta – E a parceria entre família e escola, como pode ser desenvolvida?
Camila Graciella Santos Gomes – É muito importante a junção de família e escola, porque tem os dois lados. Uma família que tem uma criança com autismo é vulnerável. Exige cuidado, pois é um aluno diferente. Ter um filho com autismo não é uma tarefa fácil, é muito pesado, porque é muita terapia, muito sofrimento para o diagnóstico e, às vezes, as mães e os pais passam por vários profissionais para receber o diagnóstico.
Por outro lado, para a escola também não é um trabalho fácil. É um aluno diferente que exige um planejamento em conjunto, então essa parceria entre família e escola é necessária para dar certo. É muito importante a escola ter essa sensibilidade para acolher essa família, que é vulnerável. A família precisa entender que a escola não tem função de tratamento, a sua função é educacional e cada escola tem um jeito de ensinar.
É muito comum, especialmente no início de semestre, a criança estar a uma semana na escola e a família já estar ansiosa. A professora está conhecendo o filho, é preciso dar um tempo para essa profissional. É importante esse ritmo entre família e escola ser equilibrado. Se todo mundo conversar na mesma língua, quando essa parceria acontece, tudo funciona muito bem.
Educação em Pauta – Algo que faz a diferença é a boa interação entre as crianças atípicas e típicas. Como é possível desenvolver esse ambiente favorável?
Camila Graciella Santos Gomes – A vida é assim, a gente sai na rua, encontra com pessoas diferentes, com necessidades diferentes. Precisamos aprender a lidar com as diferenças e o melhor lugar para a criança aprender é na escola. Um aluno que tem necessidades diferentes, seja criança com autismo ou outros diagnósticos, vejo como algo positivo, pensando no aprendizado social, afetivo das crianças típicas.
É muito importante que a escola tenha uma cultura de aceitação também. O professor cria na turma uma cultura de respeito. Eu vejo uma boa aceitação das crianças. Claro que vai chegando a adolescência, começam a ter mais complexidades. Então, é muito mais fácil pensar na inclusão social dos pequenos do que na adolescência.
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