“As crianças precisam ser autoras da sua própria aprendizagem”

Referência na Europa, Pedro Sales Luís Rosário faz uma análise da autorregulação da aprendizagem no Brasil e traz exemplos de como é feito esse trabalho em Portugal

por: Eduardo Wolff | eduardo@padrinhoconteudo.com
imagem: Colégio Santa Inês / Divulgação

Fracassos e sucessos fazem parte da vida de qualquer pessoa. Na vida escolar, não é diferente, já que também é um ambiente propício para que aconteçam essas primeiras experiências. Por meio de estratégias de aprendizagem, é possível que as crianças possam compreender e lidar com derrotas e vitórias.

Em passagem pelo Brasil, o professor catedrático da Universidade do Minho, de Portugal, o português Pedro Sales Luís Rosário é diretor do programa de doutoramento em psicologia aplicada. A sua docência está centrada na área da psicologia da motivação, da educação e da instrução.

Muito cordial e comunicativo, atendeu a reportagem do Educação em Pauta na sala e-class, o espaço maker do Colégio Santa Inês, em Porto Alegre. Quando vem à capital gaúcha, costuma ficar hospedado nas dependências do colégio. Há alguns anos ele possui uma parceria com o Santa Inês em projetos relacionados à autorregulação da aprendizagem e às questões socioemocionais.  

Educação em Pauta – A sua linha de investigação se concentra no estudo do impacto das dimensões cognitivo-motivacionais, emocionais e sociais no sucesso escolar dos alunos. Poderia nos esclarecer o seu enfoque na análise da autorregulação da aprendizagem?

Pedro Sales Luís Rosário – A minha área é o aprender. A sua pergunta é como aprendemos e, sobretudo, como não aprendemos. Por que algumas crianças chegam com tanto entusiasmo e vão se esmaecendo ao longo da escolaridade? Isso não é problema só do Brasil, nem de Portugal, mas sim mundial. Essa é uma má notícia. Se fosse apenas de um país, era um problema localizado e possível de perceber em outro o que melhorar.

No fundo, é como se fosse sugando o desejo de aprender, em uma curva descendente. Inicia com os primeiros ciclos, ainda bem pequenos, no Fundamental I, e depois que conhecem melhor a escola, mais ambientados, começam nos últimos anos do Ensino Médio a quererem ir para universidade. Alguns voltam a recarregar suas pilhas e a avançar os estudos, mas não são todos.

Existe uma explicação de desenvolvimento ligada à consciência e à dispersão, seja pelos celulares, Instagram, Facebook, etc. Mas isso não pode arcar com toda a responsabilidade. No entanto, há uma parte muito interessante sendo estudada na academia que tem a ver com aborrecimento, tanto de alunos como de professores. Pode ser relacionado às suas carreiras, suas expectativas que são difíceis, suas possibilidades de entrar em uma universidade, e se questionam “por que trabalhar tanto?”.

Às vezes, as aulas não são interessantes, são lentas, como se fossem os passos de um astronauta caminhando na Lua. Além disso, como alguns estudantes costumam brincar, parece chinês, ou seja, são complexas de se entender.

O modo como os alunos se envolvem no processo de aprendizagem significa que todos estejam presente: a escola e a família, que aliás tem estado bastante ausente, preocupada em ganhar dinheiro para o seu sustento, mas tem descuidado o aspecto educativo. Existem familiares surpresos com crianças de 9 ou 10 anos, por exemplo, com dificuldade de leitura. Na verdade, elas têm tido dificuldades ao longo da sua aprendizagem, que não foram conversadas.

Estudamos todas essas problemáticas, as dimensões da vida escolar, um olhar para a aprendizagem, não só da parte cognitiva dos alunos, mas como pensar melhor e como usar as melhores estratégias. Também na perspectiva de como ajudar as famílias a serem mais efetivas na educação dos seus filhos, mais cuidados nos temas de casa e ativar os valores de aprendizagem. Pensando nos professores, na dimensão da escola, em como ter as melhores competências de aprendizagem. O educador que não se atualiza constantemente não terá a agilidade suficiente para estar em sala de aula ajudando os alunos.

No sexto ano da escola, as crianças tipicamente têm 11 anos, mas o professor, que começou a dar aulas não terá sempre 27 anos. Ele vai envelhecer e terá 30, 35, 45 anos, mas as crianças desta série continuam com a mesma idade. O educador vai se afastando e isso é interessante de se pensar. É um distanciamento cada vez maior. Há três anos, o TikTok não era quase comentado e essa dinâmica é impressionante. Portanto, os professores precisam estar atentos às novas tecnologias, ao conjunto dos fenômenos mundiais. 

O que fazemos (na universidade) é trabalhar com todos os parceiros para tentar encontrar uma linha que ajude a ajudar as crianças, os professores e os familiares a auto avaliar os seus comportamentos.

Educação em Pauta – E quais são os pontos-chaves para o sucesso do aluno?

Pedro Sales Luís Rosário – Olhar nos processos de autoavaliação das duas faces da mesma moeda, sendo que uma é a vontade e a outra o conhecimento. Essas duas faces estão juntas, não é possível cortar uma moeda. Se temos muita vontade e pouca cognição, isso é uma má notícia e vice-versa. Portanto, temos que equilibrar esses dois componentes para ajudar as crianças a avançarem, ou seja, trabalhar o seu desejo de aprender, com as suas competências de maneira autônoma.

O que todos querem é que as crianças sejam autônomas, mas a autonomia não se compra em um supermercado. Ela é forjada a partir de uma experiência de desenvolvimento, com possibilidades de escolhas. Se uma criança recebe um pouco de dinheiro, vai poder optar por gastar tudo em balinhas ou guardar para comprar um ingresso de cinema ou dar um presente de aniversário para o seu avô. Ter essa liberdade é muito importante, a criança precisa gerir isso. Esse controle é um fato muito importante e a escola proporcionar pequenos atos de escolha é a autorregulação. 

Temos um projeto para promover com crianças do Fundamental I que é “Travessuras do Amarelo”, uma história que conta a aventura do Amarelo, que fugiu do arco-íris, e as outras cores estão atrás dele. Mostra que todos são importantes e não podemos deixar ninguém para trás, nos completamos. 

Esse é um projeto que trabalhamos com os professores, que eles tenham mais autonomia, competências e estratégias em relação à autorregulação que possam ajudar as crianças.

Quando as crianças lêem e pensam sobre a história, se tornam autoras, é a parte importante. Não podem ser passivas, e sim autoras da sua própria aprendizagem. Essa é a grande mudança na escola. É preciso construir, se empenhar, entender e dar significado.

>> Confira o vídeo sobre as Travessuras do Amarelo:

Educação em Pauta – Virando o “outro lado da moeda”, quais são os fatores que contribuem para o fracasso do estudante?

Pedro Sales Luís Rosário –  Quando começam os sinais de insucesso, é preciso  não deixar que se aumente. É o mesmo quando se está com um peso a mais: são feitos exercícios e uma dieta equilibrada para que não aconteça o sobrepeso, pois as consequências serão complicadas de se lidar. É o mesmo na aprendizagem. É preciso instruir os pequenos o mais rápido possível, seja da primeira e segunda séries, para que não haja lacunas. Se os alunos não aprenderem bem as regras de cálculos e de interpretação de texto, logo no início existirá uma falha gigante.

A primeira situação a se fazer é impedir que ocorra esse progresso. A segunda é a oportunidade de recuperação constante que a escola pode proporcionar ao estudante. É como no futebol, comecei mal, mas posso recuperar, posso virar essa partida. Para isso, tenho que ter a chance de ajustar as minhas dificuldades. Não adianta exigir saltar de um obstáculo de 1m80cm se sou pequeno. Existem desafios para crianças que são grandes e quando são proporcionais vão alcançar a experiência do sucesso, as empurrando para novos desafios; bem como o insucesso, limitando-as cada vez mais. É a voracidade que faz gostar mais, querer mais, como também saber menos, querer menos.

Educação em Pauta – Você é um dos autores do programa de promoção de autorregulação da aprendizagem “Cartas do Gervásio ao seu umbigo”. Poderia nos dar mais detalhes sobre essa iniciativa?

Pedro Sales Luís Rosário – São narrativas para discutir com estudantes do último ano do Ensino Médio e do primeiro ano da universidade. O Gervásio (personagem principal) escreve cartas para o seu amigo, o Umbigo, que é simpático e elegante, e que responde às suas dúvidas. Essa meta cognitiva que escrevo para o outro e repenso, é importante. 

Na Europa, houve uma grande mudança no ensino. Atualmente, são três anos de licenciatura e, para trabalhar na área, é preciso completar um mestrado de dois anos. A outra alteração foi que a carga horária presencial é baixa, porque a ideia é aumentar o trabalho autônomo, mas os alunos não estavam preparados para isso, porque tipicamente a educação básica, mais do que educar, o manda estudar. Os estudantes entram na universidade e têm que ser autônomos, exigem que leiam 400 páginas e que resolvam esse problema. Isso é um salto brusco.

Para facilitar esse salto, construímos esse programa. Essas cartas de lamentações são, no fundo, um manual de estratégias de aprendizagem, com o Umbigo sendo uma ajuda, um bom caminho. 

Além de Portugal e Espanha, esses mecanismos da autorregulação têm sido trabalhados no Brasil via Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), com alunos e professores do Ensino Superior.

Educação em Pauta – Cada país tem um método de ensino diferente. Quais são as estratégias que você observa em Portugal, que avalia que podem contribuir para a educação brasileira?

Pedro Sales Luís Rosário – Essa ideia de proatividade de parte dos alunos é algo interessante. Um ensino menos guiado e mais construído por eles. O professor precisa ser mais estimulador da aprendizagem e o estudante mais ativo, isso é autorregulação. O educador pode ajudar, confiando mais neles, dando mais liberdade. 

Em Portugal, existe uma maior preocupação por parte das universidades com as escolas, que podem usar ferramentas como as “Travessuras do Amarelo”. Não há nada mais prático que uma boa teoria. 

Fazemos estratégias de aprendizagem na escola, mas por trás de claros fundamentos teóricos sólidos, de modo que os professores sabem explicar aos pais o que fazemos, porque isso responde a um conjunto de investigações.

Esses processos estão fundamentados na literatura, que defende que é importante os alunos usarem a autorregulação da sua aprendizagem e, quando fazem, têm sucesso na vida escolar e pessoal, pois podem organizar suas ambições e alcançar seus objetivos.

Educação em Pauta – Você participou de um webinar sobre os desafios de aprender e ensinar em tempo de pandemia. Na sua visão, quais foram os impactos no sucesso ou fracasso dos alunos?

Pedro Sales Luís Rosário – Sempre que temos um acontecimento qualquer, existe uma tristeza muito grande. Há pessoas que vão chorar e outras enriquecem, porque começaram a vender lenços de papel para que outros os comprem. 

Na pandemia houve situações muito desorganizadas, com trabalhos cansativos, mas também situações muito boas, como as oportunidades com o EaD para pessoas que tinham dificuldades para estudar, pois viviam longe das instituições. 

Existe sim uma consequência da pandemia que foi a desorganização emocional, uma apatia tanto em crianças como em adultos. Para os pequenos foi muito difícil não encontrar os amigos, gastar energia e ficar horas e horas atrás de um computador. Isso deixou marcas importantes.

Vai ser necessário um cuidado especial da comunidade, dos pais e dos professores para que todos lutem no mesmo sentido. É importante construir percursos de bem-estar, que, neste momento, ainda não existem. 

A confiança foi abalada, muitos projetos pessoais ficaram completamente parados. Aquilo que se dava como certo, deixou de ser, o que causa uma insegurança, uma perturbação. E se vir outra pandemia, como vai ser? Isso desorganiza. Claro que um conjunto de pessoas consegue verbalizar, mas as crianças não conseguem, ficam perturbadas, zangadas e o comportamento pode ser violento ou desorganizado. Esse é o trabalho com os educadores que iremos fazer, de harmonia para construirmos um bem-estar.

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