Como entender e acolher os afetados pelas enchentes
Psicólogo e psicanalista Julio Cesar Walz aponta possíveis comportamentos de alunos, professores e funcionários e como ajudá-los nesse momento
Muitas famílias estão sofrendo diante das enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul nas últimas semanas. Diversas pessoas perderam seus bens e passaram por traumas, o que afetou a saúde mental. De acordo com o psicólogo e psicanalista Julio Cesar Walz, em modo geral, quando se perde algo importante, se perde a capacidade de pensar e raciocinar. As pessoas podem ser tomadas pela raiva, pelo desespero, pela vontade de morrer ou até mesmo de agredir. Podem ficar profundamente apáticas ou extremamente raivosas e, consequentemente, perder a capacidade do autocuidado.
Ainda, segundo o especialista, estas são reações naturais que podem ser em maior ou menor potência, de acordo com a personalidade ou mesmo o tamanho do desastre ou da perda. Perder ou terminar é a experiência emocional mais dolorosa na vida, pois mexe “desde a unha do pé até o último fio de cabelo”.
Para ele, o momento agora exige não ter pressa em resolver tudo ao mesmo tempo. “Esse seria um conselho que, para quem está vivendo tudo isso, parece inimaginável, mas é o melhor. Para isso, ajudaria uma rede de apoio aumentada”, sinaliza.
Walz é doutor em Ciências Médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor dos livros “Cuidar não é educar” e “Aprendendo a lidar com os medos: a arte de cuidar das crianças” e co-autor da obra “O sentimento de culpa”. Também participa do podcast Cuidar não é educar, no canal da Rádio Mínima, no YouTube.
Em uma entrevista exclusiva para o Educação em Pauta, o especialista aprofunda mais sobre este momento delicado que vivem pessoas da comunidade escolar que foram impactadas diretamente ou indiretamente pela tragédia e traz alguns ensinamentos que ajudam a entender e a acolher os afetados pelas enchentes no ambiente escolar.
Educação em Pauta – Geralmente, como crianças e adolescentes lidam com esse tipo de situação? Costumam ter maior resiliência e capacidade de adaptação que os adultos?
Julio Cesar Walz – Queria chamar a atenção para um aspecto que precisamos considerar, especialmente falando em crianças e adolescentes e tentar responder essa pergunta de forma indireta. Mal saímos de uma pandemia e já entramos em uma grave crise ecológica, que culminou na grande enchente de 2024 no Rio Grande do Sul. Antes desta grande enchente, outras regiões viveram enchentes devastadoras em menos de um ano (somente na região do Vale Taquari foram três). Ou seja, em quatro anos, fomos marcados por uma sensação muito forte de perda total de controle com ameaça crônica e real à vida e com a sensação de destruição total. O medo do predador ficou ativado por longos anos e segue. Mesmo que a vida tenha voltado ao normal, digamos assim, mas, esse medo do predador, foi ativado em muito nos últimos anos.
O sentimento de desamparo e de trauma ou de perturbação emocional é evidente em todo o tecido social, mesmo que não apareça claramente. Muitas sofrem em silêncio, ou não dormem bem, outras ansiosas falam e falam e falam, outras tornaram-se mais agressivas e reativas, outras com dificuldades de aprendizagem e concentração. Outras conseguem brincar e achar formas de sobreviver ludicamente. Enfim, quem convive com as crianças sabe que muitas estão “demasiadamente assustadas com a vida”, vide diagnósticos de ansiedade aumentado. Mesmo que isso apareça de forma velada.
Quando essa sensação de susto não é acolhida, ou é tratada como ‘frescura’ pelo adulto, para onde todo esse desamparo vai? Vai para o pensamento ruminativo, vai para a busca de sentido dentro apenas dela mesma com um sentimento crônico de sem saída. As crianças precisam de adultos e da escola, nessa hora, para que possam dar uma vazão das suas experiências de desamparo, medo e perdas. Caso contrário, o sentimento de desorganização segue coletivamente e não encontra um ponto social para organizar o desamparo dentro da “cabeça”. Ou encontrar algo novamente e que possa construir e entrar no lugar do que foi perdido. Sem o encontro da fala e da escuta, isso fica mais difícil, ainda mais quando isso passa a ser de toda a população.
As crianças que não viveram diretamente as enchentes, viveram as notícias, os pavores vindos nas telas ou dos pais assustados vendo as notícias, cuja sensação de perigo muitas vezes é potencializada. Chega a chuva e muitas já entram em angústia. É preciso narrar o que restou, o vazio e/ou o medo. Preencher esse vazio com uma fala acolhedora. Justamente para que o pensamento ruminativo não cresça.
Educação em Pauta – O que é melhor: falar de maneira natural sobre a tragédia ou ser positivo sobre o futuro dizendo “vai ficar tudo bem”?
Julio Cesar Walz – A melhor maneira é conversar. Existe uma diferença entre falar para e conversar com. Trato disso no episódio 16, da primeira temporada, do podcast ‘Cuidar não é educar’. É importante destacar que as crianças suportam a verdade melhor que os adultos, isso é fato. Esclarecer é aliviar e dá forma às perguntas delas. As crianças sentem quando nossas respostas são evasivas ou tapa furos. Se dizemos que vai ficar tudo bem, mas nossa emoção não é compatível com a resposta, elas sabem que estamos mentindo. O que não ajuda. Ela poderá aceitar a resposta para não chatear o adulto, mas vai seguir perguntando ou pesquisando.
Assim, conversar com a criança é também ouvir dela o que a aflige de fato, se é porque perdeu a casa, o brinquedo, o caderno ou o animal de estimação. Ou seja, saber e ajudar ela a dizer o que a incomoda e, a partir daí, realizarmos alguma intervenção de fala real e próxima do sofrimento dela. Muitas vezes, as dúvidas dela são pequenas e com a nossa angústia aumentamos o tamanho do problema dela.
Escute e veja o que realmente incomoda ela. Não crie respostas irreais nem interpretações da sua imaginação. E não se sinta sem saída com as perguntas. Converse. As respostas podem vir ou esperar um pouco. As crianças sabem conversar, do jeito delas, claro.
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Educação em Pauta – Como deve ser a preparação para receber esses estudantes no retorno às aulas?
Julio Cesar Walz – Nesse momento, todos estão afetados, todos. Os adultos, as crianças, o patrimônio, a esperança e a raiva, mas nós somos os adultos. A nós cabe proteger, com o que temos e podemos. Mantermo-nos vivos, apesar do que ocorreu. Então, se fosse possível, cada escola, antes de receber os alunos, os professores e funcionários, crie grupos menores de conversa. Muitos professores não conseguem ou conseguem ir às escolas para ajudar na limpeza, bloqueados pelo pavor ou de não quererem ver sua escola “machucada”.
A primeira preparação que imagino ser prioritária está em que a escola e professores possam ter seu momento de apoio interno, sem cobranças ou competição de quem fez e quem não fez. Abraçarem-se mutuamente e encontrarem, mesmo nas diferenças, esse ponto comum: o contato com a solidariedade e proteção da vida. Isso pode ajudar no recebimento das crianças. Como disse o filósofo Baruch Espinoza, ao ser perguntado “O que é melhor para um ser humano?”, respondeu: “um outro ser humano sem preconceitos”. Logo, ressalto: receber bem as crianças é uma atitude de saúde pública.
Educação em Pauta – Como pode ser realizado esse espaço de escuta na escola?
Julio Cesar Walz – Eu digo que esse assunto é um tema de saúde pública. Todos fomos afetados de uma forma ou outra. Essa catástrofe aumenta o nosso medo do predador, emoção básica e primitiva, porque não se trata apenas do que perdeu, se trata do medo de ser destruído. Esse medo precisa ser mediado, falado, para que, sendo expulso pela linguagem, não opere em nossa cognição e distorça nossas percepções por muito tempo. Projetos de vida, de arte, literatura, discussões de livros, construções de narrativas de como foi vivido esse período. Fotos, reconstruir cadernos perdidos, armazenar memórias vividas. Tudo isso ajuda, pois todos irão perceber que estão no mesmo barco.
Um exemplo imaginativo de como não ficar preso e sozinho no próprio pensamento: se estou em uma caverna com fome e sede e acho que lá fora tem um predador que vai me devorar. Caso eu tenha certeza, ficarei preso em meu próprio pensamento. Nesse procedimento mental, eu não sairei de jeito nenhum ou, caso saia, o farei de forma atabalhoada. Caso eu imagine que ele esteja lá, mas não tenho certeza, posso jogar uma pedrinha primeiro, depois uma maior. Caso ele não reaja ou apareça, eu vou descobrir que o que pensei não é real e posso sair procurar água e comida com cuidado. Essa é a tarefa da fala. Ajudar a desaprisionar os pensamentos ou a certeza neles para descobrir que o que eu estou pensando não é necessariamente um circuito fechado e posso explorar soluções para tentar viver. Todos viveram a enchente de alguma forma. O silêncio não pode ocorrer.
Educação em Pauta – Pode haver mudança de comportamento e dificuldade no aprendizado? Como administrar isso?
Julio Cesar Walz – O medo crônico pode sim afetar comportamento e aprendizado. Isso depende, claro, de variáveis que podem ser desde a personalidade como o que foi vivido. Por exemplo, as crianças menores, digamos abaixo de cinco anos, podem ter jogos ou conversas repetitivas sobre o ocorrido, ataques de raiva espontâneas, choros, regressões (como xixi na cama), sentimento de posse ou medo de separação aumentada. No caso de crianças maiores, seriam coisas parecidas, mas mais elaboradas. Claramente, podem se sentir raivosas e agressivas, culpadas pelo ocorrido, demonstrar ansiedade, tristeza e apatia. Enfim, quem convive com elas irá perceber que estão diferentes. E se for percebido que “estão diferentes” e porque estão afetadas, não é uma doença, isso é importante, mas podemos pensar em uma “estagnação”. E como administrar? Precisamos entender que apesar das escolas ficarem fechadas por uma, duas ou três semanas (ou mais), quando retornarmos, não podemos ir a toque de caixa e tentar recuperar o tempo acadêmico perdido a qualquer custo.
As emoções estão em frangalhos, mas podem ser recolhidas coletivamente com projetos de vida e de fala. Não que a escola toda precise se dedicar a isso. Imagino que alguns setores, momentos, aulas, professores escolhidos ou disciplinas, mas não podemos correr. Todos sabemos que quando estamos tristes por perda ou medo, puxar a pessoa a qualquer custo terá uma relação inversa à dela. Dosar e avaliar a dose é prudente.
Quero chamar a atenção para um aspecto: muitas crianças passam a odiar a natureza ou Deus pela sua “crueldade”. Esse aspecto também precisamos pensar, o ódio decorrente como defesa. Ele, o ódio, precisa ser falado, vivido para não se tornar um ódio real. Mas para isso, não precisamos nos assustar com a fala do ódio nem censurar. Ele saindo e acolhido, sem julgamentos, tende a interferir menos na vida. O ódio é uma das emoções que mais distorce a nossa cognição, portanto o ódio e a raiva precisam ser falados.
Existem crianças que irão rejeitar o falar: “não quero falar sobre isso”. Ótimo, ainda bem que ela disse isso. A raiva saiu indiretamente. Aí podemos ler alguma história relacionada à enchente ou à chuva. Ela tende a entrar na história e se aliviar. O que não podemos é aceitar ou ficar aliviados que ela não quer falar. Não forçar, mas saber que podemos falar indiretamente.
Educação em Pauta – Como trabalhar o sentimento de vergonha diante do fato de que a criança ou o adolescente recebe doações de colegas ou de outras pessoas?
Julio Cesar Walz – Sabe que o ser humano é estranho. Quer atenção e carinho e quando recebe acaba se ofendendo ou tendo vergonha. Devemos considerar que quem recebe está num estado de necessidade muito diferente daquele que doa. E muitas vezes sente vergonha de precisar, ou sente-se inferior, ou está competindo. Os doadores também podem se sentir superiores ou debochar dos que recebem.
Sabemos que as crianças e os adolescentes são cruéis uns com os outros. Por isso, se for percebido que a criança e o adolescente sente vergonha da situação, ouvir é melhor que interpretar ou julgar. Conversar e tentar descobrir o real motivo da vergonha específica. Considero essa atitude a mais saudável para todos. Tentar não dizer que não precisa e não deve sentir isso. Porque ela sente, portanto é um fato e, sendo assim, cabe acolher essa sensação e ajudar a criança a verbalizar sua emoção mais verdadeira sobre o assunto.
Educação em Pauta – Diante deste contexto, muitos pais afetados pela tragédia podem estar sem estrutura emocional para dar um suporte aos filhos. Eles podem sinalizar isso à escola e pedir auxílio à criança no ambiente escolar?
Julio Cesar Walz – Imagino que muitas vezes não conseguimos identificar que não estamos bem emocionalmente. Essa seria a atitude mais importante que é a primeira a ser adotada e dizer para si mesmo: “eu não estou bem”. Não importa a causa. Mesmo que seja real e/ou oriunda da catástrofe, porque o que eu posso resolver realmente agora é o “não estou bem”.
Reconhecer a agir no autocuidado é um ato extraordinário de grandeza pessoal. Isso inclui não sentir vergonha de estar triste ou abatido. Quando reconhecemos nossa instabilidade, podemos agir com cuidado e com respeito à vida e a buscar soluções reais e que possam nos ajudar efetivamente. A partir daí, tendemos a não sobrecarregar nossos filhos, por exemplo, com nossa angústia. Ou não os usar para ficarmos bem.
Nesse sentido, dividir a tarefa de cuidar, e pedir ajuda ou um olhar amoroso sobre o filho/a seria uma atitude efetiva junto à escola. Porque nela, no caso da catástrofe atual, essas emoções são coletivas. Todos estão vivendo, diretamente e indiretamente. Portanto, dividiremos o peso da dor da perda e do medo. E lá, tenho certeza, as crianças orientadas nesta tarefa, irão se ajudar e muito.
Educação em Pauta – Também se torna indispensável a atenção em relação aos professores e funcionários, pois muitos foram afetados. Quais são iniciativas de acolhimento que os gestores escolares podem realizar?
Julio Cesar Walz – Eu conheço muitos projetos em escolas, especialmente as do Vale do Taquari, sendo que um deles ocorre no Colégio Evangélico Alberto Torres (CEAT). Todos envolvem tempo de fala e escuta, alguma ajuda real, quando necessário, e os professores perceberem que a sua escola é a sua casa. A solidariedade humana é fundamental e isso precisa vir dos professores também.
Educação em Pauta – Diversas instituições de ensino precisarão ser reconstruídas para voltar a atender plenamente os estudantes. Qual é a orientação que você dá aos líderes diante de todo esse processo?
Julio Cesar Walz – Essa pergunta é difícil, para ser honesto. Onde achar forças para recomeçar, reagir? A experiência diz que é melhor com pessoas próximas, apoios. Buscar e engajar famílias com projetos transparentes também é um bom caminho. Ninguém constrói nada sozinho, mas precisa ter força interna, coragem e capacidade de mobilização, isso sim.
Educação em Pauta – Em relação às ações de médio e longo prazos, quais você recomendaria aos gestores escolares para auxiliar a comunidade escolar a enfrentar essa situação difícil?
Julio Cesar Walz – Não sabemos bem que efeitos a médio e longo prazo essa catástrofe e o acúmulo do medo do predador podem gerar em uma população, ou especificamente em nosso contexto, mas tenho certeza de que medidas reais de acolhimento do medo sentido é fundamental. Seja as de proteção à vida, bem como as emoções. Se elas não forem cuidadas, serão as dificuldades no aprendizado e para a vida. Mas cabe dizer: não compete à escola.
Certamente, haverá muitos locais de ajuda às crianças, mas saibamos, a escola é o maior ponto de encontro coletivo de crianças. Todas vão para a escola com seus medos, pavores e curiosidades. Nesse contexto de catástrofe, é uma experiência coletiva de perda e medo.
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