É natural que diante de situações como a enchente que atingiu o Rio Grande do Sul – a maior catástrofe climática da história do Estado – as pessoas se sintam angustiadas, ansiosas e estressadas. Mais do que isso: é possível que muitas estejam estafadas diante de uma tragédia que já dura quase dois meses.
O desgaste causado pelo sucessivo contato com histórias dramáticas e a empatia pelo sofrimento do outro levam ao efeito chamado de fadiga da compaixão. Ele consiste, ao mesmo tempo, no estresse do sistema nervoso e na consequente vontade de cortar a relação com os dramas ao redor.
– Por causa da compaixão excessiva, você sobrecarrega o sistema emocional. Isso cria o overload desse sistema e faz com que a pessoa vá para o cateto oposto, ou seja, ela não consegue mais empatizar – resume a psicanalista Alessandra Gonzaga, doutora em Gestão de Pessoas e especialista em inteligência emocional.
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Ela explica que isso causa sentimentos negativos, além de uma sensação muito grande de exaustão física e cognitiva. Sinais como dificuldade de raciocínio, desorientação espacial ou temporal e o estado que os cientistas chamam de numbness, popularmente chamado de “fora do ar”, podem ser indicativos de que a fadiga da compaixão bateu à porta.
Em entrevista ao Educação em Pauta, Alessandra, que também é mestre em psicologia clínica, detalha o conceito e mostra que, afinal de contas, a escuta terapêutica exige tanto preparo técnico quanto tarefas como resgate de flagelados e pilotagem de barcos – por isso não deve ser praticada por qualquer pessoa. Confira:
Educação em Pauta – O que é a fadiga da compaixão?
Alessandra Gonzaga – Ela foi identificada, primeiro, em profissionais da área da saúde, no período da pandemia. Naquele momento, o pessoal percebeu que a partir de determinado ponto a pessoa não se solidariza mais com o sofrimento humano – justamente como consequência de vivenciar e acompanhar muito sofrimento.
Na nossa realidade de agora, isso significa que qualquer pessoa que esteja fazendo algum tipo de atendimento às vítimas da enchente está vivenciando muito sofrimento, em doses cavalares, em pouco espaço de tempo, e isso vai criando essa espécie de numbness, tira a pessoa do ar.
Isso se intensifica à medida que tem menos administração do que se está fazendo. Por exemplo: a pessoa que sai de uma jornada de trabalho e vai para um albergue, tende a dormir mal, comer mal e ouvir histórias de horror todos os dias.
Educação em Pauta – Como surgiu o interesse pelo tema?
Alessandra Gonzaga – Na segunda ou terceira semana de maio, fiquei fora do ar. Acordava sem saber direito que dia era. E tem a ver com isso. A desorientação espacial e temporal, esse sentimento de angústia. Ainda por cima, a rede social potencializa esse tipo de efeito de contágio emocional, você passa a ser contaminado pelo excesso de exposição ao sofrimento.
O problema é que o nosso cérebro foi treinado evolutivamente para identificar e valorizar o sofrimento, por dois motivos: um mais compassivo, de se compadecer da pessoa que perde a casa; e o outro é a defesa, a preocupação em garantir o sustento de nossa família e a manutenção do mundo como conhecemos. Muito se falou, nesses tempos, sobre furacões, inundações, incêndios e outros fenômenos em diversos países.
A pessoa vê essas imagens enquanto a amígdala cerebral, que é a área de ativação de sobrevivência, já está ativada, então começa a ficar hipervigilante – o que amplia o efeito do contágio emocional. Portanto, a fadiga da compaixão é o desgaste do sistema emocional pelo excesso, por não ter depurado algumas sensações.
Educação em Pauta – Mas isso é uma pane no sistema ou um bloqueio por autodefesa?
Alessandra Gonzaga – As duas coisas, porque é um sistema de autodefesa. A reação é como dizer “não me traz mais sofrimento porque eu tenho que tratar meus problemas, não quero saber de problema, de sofrimento, também tenho casa para cuidar”. Então, o sistema nervoso fecha o campo empático.
Por outro lado, você está com o sistema cognitivo dificultado porque aspectos como a tomada de decisões, a leitura de ambientes e a análise crítica da realidade só funcionam se eu estou bem, se dormi bem. Caso contrário, se estou hipervigilante, machucado, cansado, desesperado, não vou pensar direito.
O pensar, nesse sentido, só favorece depois que a pessoa está equilibrada emocionalmente. Aí consegue pensar em ouvir as pessoas, mesmo que não vá resolver os problemas delas.
Educação em Pauta – A fadiga da compaixão se dá em eventos contundentes como a enchente ou pode ocorrer também pela repetição dessa exposição por grandes períodos, ainda que em menor volume?
Alessandra Gonzaga – É uma boa pergunta. Não se tem estudos específicos sobre isso, mas eu gosto de acompanhar a base da linha organizacional. Um artigo da Harvard Business Review faz um paralelo com o ambiente de trabalho, em que existe muita competitividade e cobrança, se aproximando do burnout. Só que entram ingredientes que levam em consideração o convívio com os colegas, como aquele que não consegue terminar seu trabalho e pode perder o emprego, ou tem dificuldades familiares – e a pessoa não consegue sentir compaixão por isso.
Quando eu estou em um ambiente tóxico, em que eu não tenho permissão para sentir, aí a gente pode fazer um paralelo com a fadiga da compaixão, porque está associado com o sentimento. Existem ambientes de trabalho em que as pessoas estão se recuperando de uma perda.
Por exemplo, em uma escola, a pessoa que trabalha na limpeza, o professor e outros colegas podem ter sido atingidos pela enchente. Mas existem outras 10, 15 pessoas que não foram atingidas. Nas primeiras semanas tem mutirão, todo mundo se envolve. No segundo mês começa o desgaste, todo mundo achava que já estaria resolvido e começa a não querer mais se envolver, porque não consegue mais ter o mesmo nível de empatia.
O problema é que não dá para agir como se tivesse marcado um encontro com uma outra pessoa, quando prestou ajuda, e depois deixar que ela se vire sozinha. Não pode fazer isso. A pessoa está abalada, esse processo vai levar meses, talvez anos. Então, a extensão da nossa tragédia nos fez ter a abordagem de identificar novamente a fadiga da compaixão, já que a intensidade dessa resposta empática vai ser por longo tempo.
Educação em Pauta – Existe uma preparação para que estejamos mais fortes quando expostos ao sofrimento de forma contínua, como agora?
Alessandra Gonzaga – Envolve o cuidado físico, em primeiro lugar. Quando a gente fala do corpo, está falando basicamente de horas de sono, hidratação e o preparo físico. Nem que seja uma caminhada, dança, natação, qualquer coisa.
A primeira coisa que o corpo diz quando tem cansaço significa sono: desligar a luz e ficar em repouso, longe das notícias ruins. É como se a pessoa tivesse lesionado um músculo. O emocional é química no corpo, é toxina não trabalhada. A pessoa com o emocional abalado fica inchada, tem dificuldade de processar a vida.
Depois vem a educação emocional, que é saber o que as emoções fazem com a gente. É preciso entender do que elas são feitas e como administrá-las. E, em terceiro lugar, diminuir a exposição ao sofrimento. Infelizmente, é preciso fazer isso. Se você atendia oito pessoas por dia, precisa reduzir para três, quatro. Precisa ficar menos tempo exposto, quando o emocional não está bem.
Educação em Pauta – Há relatos de equipes que passavam a discutir entre si depois de algumas horas de trabalho em abrigos para flagelados. A medida, neste caso, foi limitar a carga horária. Faz parte desse contexto?
Alessandra Gonzaga – A raiva é tão importante e aparece porque ela diz “deu, cuide de você agora”. É um sentimento de afirmação das necessidades pessoais. Quando não estamos nos cuidando, o organismo produz raiva porque já não aguentamos mais aquela situação. Só que se você não tem educação emocional, não consegue saber sobre isso.
Já a resiliência, que escutamos tanto, é sobre o quão rápido conseguimos retornar ao estado natural emocional, nossa linha de base. Se estou sempre no chumbo grosso, como vou ser resiliente? Se nunca voltei à minha linha de comando, já que estou sempre sob ataque e atacando? Tudo isso tem a ver com a educação emocional.
Educação em Pauta – Quais são os sintomas da fadiga da compaixão?
Alessandra Gonzaga – Existem visões diferentes. Eu gosto de separar entre sintomas cognitivos, afetivos e físicos, porque facilita a compreensão.
Cognitivamente, tem-se uma dificuldade grande para tomar decisões, por mais simples que sejam. Estando em uma triagem de doações, por exemplo, surge a pergunta “a gente coloca essas camisetas aqui ou ali?”, e a pessoa já não sabe como proceder.
Também há uma desorientação temporal, pois não percebo quanto tempo se passou desde determinado episódio. Isso fica embaralhado, especialmente pela privação de sono. Outro ponto é a desorientação espacial, a pessoa começa até a se bater em móveis e obstáculos. Não tem cognição suficiente para aquilo ali – e vai ficando pior. Chega ao ponto de embaralhar a fala e perder o raciocínio.
Já os sintomas afetivos são justamente os que diferem a fadiga da compaixão dos demais efeitos do estresse. É o momento em que não queremos mais saber dos problemas das outras pessoas. O pensamento alcança o nível de “não me venha falar dos teus problemas, fico com raiva de gente sofrendo”. É uma reação extrema de não aguentar mais aquele sofrimento todo ao redor. Esse é um sintoma muito específico desse tipo de fadiga.
Aqui pode aparecer o uso de alguma substância, como álcool ou medicamentos para dormir melhor, interferindo na esfera cognitiva e comportamental. Isso acontece para aliviar o sintoma emocional da angústia. A pessoa está querendo sair daquela sensação de opressão que está sentindo.
Por último, os sintomas físicos. Cansaço, dores musculares, azia, dores de cabeça, ou seja, sinais parecidos com o do estresse em geral.
Educação em Pauta – Depois de não conseguir ser empática com o sofrimento do outro, por conta da fadiga, a pessoa sente culpa?
Alessandra Gonzaga – Sim. E quando ela se sente culpada vai atrás daquele remedinho rápido que comentei há pouco. Porque, devido à culpa, ela vai fazer mais do que poderia – não tem mais condições de fazer e vai tentar uma coisa que dê força. Ela amplia a resposta em um emocional que já está sobrecarregado. Jogando a culpa em cima, pode realmente colapsar. E aí a resposta do corpo depende muito de cada organismo. Pode ser um tombo grave, uma parada cardíaca, até mesmo uma psicose temporária – especialmente com a falta de sono. Não é para as pessoas se sentirem culpadas por conta da fadiga da compaixão. A ideia é justamente que entendam essa condição.
Para se recuperar disso, quem está envolvido com as pessoas atingidas diretamente não pode se colocar como aquele que vai resolver tudo. Ao mesmo tempo, não pode apressar essas pessoas. Deve-se cuidar e permitir que elas tenham o cuidado que precisam, por mais tempo.
Educação em Pauta – E no contexto das escolas, como aparece a fadiga da compaixão?
Alessandra Gonzaga – O primeiro cuidado já foi prestado nas primeiras semanas, mas essa situação pode voltar a acontecer em algumas regiões. Não fique falando sobre o que aconteceu. Parece o contrário do que se faz, mas o fato é que as pessoas já estão sobrecarregadas – tanto a vítima, que não precisa se retraumatizar lembrando do trauma, como você, que não é especializado em escuta de catástrofe e vai ficar somatizado ao ouvir essas histórias.
Então, não fiquem ampliando as histórias. É muito interessante ouvir, só que vai ficando tanto conteúdo a ser processado, que daqui a pouco a gente não se interessa mais. E isso a gente deve evitar. Não é à toa que a pessoa precisa de treinamento para praticar a escuta terapêutica, porque é preciso se desconectar dessas histórias. Não force as pessoas a falar, não pergunte. Pode dizer que está à disposição para o que ela precisar.
As equipes administrativas precisam tomar medidas administrativas. São questões como quantas pessoas foram impactadas, qual foi o nível do impacto, se existe rede de apoio, se essas pessoas já conseguiram acessar algum programa ou qual a possibilidade de ajuda financeira, se têm interesse em ajuda psicológica e se existe alguma maneira de construir grupos de trabalho.
E aí entra o trabalho que eu incentivo. Em vítimas coletivas de catástrofe, é comprovado por vários estudos de diversos países que se trabalha melhor a cura coletivamente. Então, muito melhor do que pegar cada uma dessas pessoas e dar o atendimento psicológico, é fazer rodadas, aí sim com as vítimas, com um profissional qualificado para facilitar, para ir fazendo grupos de cura desse trabalho.
Aí, sim: eu escuto tua história e, como vivi algo parecido, compartilho as minhas sensações e vamos curando ao contar essas histórias, mas não é no intervalo do café, antes de entrar em sala de aula, ou no meio do caminho – sendo interrompido quando ia contar sobre um drama. É preciso qualificar o momento da escuta, e isso se faz a partir de um mapeamento do nível de impacto e severidade para cada pessoa.
Educação em Pauta – Nesses casos, o mais indicado é trabalhar por grupos de interesse ou dividir por faixa etária? Como proceder?
Alessandra Gonzaga – Eu diria que deve separar quem é grupo de educação emocional e quem é grupo operativo, como estamos chamando, que são os casos de intervenção emocional. Existe uma diferença. Uma coisa é ouvir um especialista para saber por que ficamos ansiosos e como ter uma certa dieta no consumo de informações. Outra coisa é: “a minha família inteira está desabrigada e onde morei a vida inteira não tenho mais nenhuma lembrança”. É um processo de luto, precisa da orientação de um profissional qualificado. Se não consegue fazer isso individualmente, faça coletivamente que é melhor ainda.
Aqui no Brasil ainda não temos essa cultura, mas grupos de apoio por tema são muito comuns nos Estados Unidos e na Europa. Pais enlutados, pessoas que têm dificuldade com um alcoólatra na família, entre outros exemplos. Pessoas que têm problemas comuns se beneficiam de serem empaticamente envolvidas nessas histórias.
Quando alguém conta a sua história, estou curando a minha. É muito diferente de eu pegar um colega de trabalho e jogar em cima dele toda a tragédia da minha vida. Essa pessoa não teve treinamento para isso e não viveu isso, e vai se sentir culpada por ter de sentir alguma coisa, mas não sabe o que sentir.
Educação em Pauta – Mesmo que não haja capacitação técnica, é possível ter uma preparação do sistema emocional para lidarmos melhor com situações que se impõem?
Alessandra Gonzaga – Eu falo sobre como eu tentei fazer isso em mim. Em um artigo, questiono “qual é o teu barco”. A ideia surgiu porque nos meus delírios da madrugada, pensando em como contribuir diante da enchente – já que não podia estar lá para resgatar pessoas, por não ter um barco. Eu moro na Zona Norte de Porto Alegre e a quatro quadras da minha casa chegavam os barcos com as pessoas. E eu entrei na ideia de que queria ter um barco e isso foi tomando conta do meu pensamento.
Cheguei à conclusão de que cada um de nós tem um barco, que é o nosso trabalho. O nosso barco é o que a gente faz para ajudar as pessoas, de uma forma geral, a partir do que a gente faz na vida. Tem gente cujo barco é ensinar a tabela periódica para crianças, e está tudo certo. O seu barco é aquilo que você faz para contribuir para o bem da humanidade. A gente tem que “baixar a bola” nessa hora e parar de fazer coisas que a gente não estudou e não tem autoridade para fazer. Se você conseguir ajudar como voluntário em outras tarefas no tempo livre, ótimo. Mas o seu barco é ser uma pessoa melhor todos os dias. Ser um pouco melhor do que foi ontem.
Temos que conhecer nossos limites e nossas responsabilidades, saber no que efetivamente podemos contribuir e como fazer isso de maneira a não tirar o foco das pessoas sobre as quais temos responsabilidade: os filhos, os pais, os alunos. Primeiro, sempre, os círculos mais próximos do nosso núcleo. A lógica é atender, primordialmente, as pessoas de primeiro impacto na nossa vida.
Educação em Pauta – Como pode ser feito o acolhimento das equipes de trabalho na volta de eventos como a enchente, a pandemia…?
Alessandra Gonzaga – No contexto da escola, vai aparecer a partir das conversas de corredor. É na hora do cafezinho, da conversa que eu vi quando saí da sala, ou a história que o aluno foi contar e minha aula acabou porque ele não terminava de falar sobre o que aconteceu.
Dentro da sala de aula, o professor precisa respeitar a idade dos alunos e falar a respeito disso, mas brevemente. Dizer que se sente solidário ao que aconteceu, que também tem alguma dificuldade para lidar com a situação, que precisa da colaboração de todos para a aula funcionar e que está à disposição para conversar depois da aula.
Ele precisa se posicionar, como professor. Dizer que sabe como é ruim o que está acontecendo, divulgar alguma ação da escola, mas não deve abrir para todos falarem sobre o que estão sentindo. Muito menos se forem crianças.
A gente não deve, em nome de uma tal empatia, entrar em uma área que a gente não domina. E, muito menos, sobrecarregar as outras pessoas com as nossas tralhas emocionais, que cada um de nós tem que aprender a lidar. Fazer esse atendimento não é para qualquer um. Tem que ter treinamento. Existem técnicas da Cruz Vermelha Internacional, de apoio a pessoas em choque, que acabaram de ter a família inteira massacrada. Como eu chego nessa pessoa, como atendo a pessoa que acabou de ver alguém ser levado por um furacão? Não é uma coisa que qualquer ser humano faz.
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