Escritor Luiz Antonio de Assis Brasil reflete sobre o poder da literatura
Professor e romancista gaúcho divide seu conhecimento sobre escrita e afirma que técnica e inspiração devem andar juntas
Uma das maiores referências da literatura brasileira contemporânea, notável por sua múltipla atuação como escritor, professor e romancista, Luiz Antonio de Assis Brasil já formou uma geração de autores e autoras em sua oficina literária, que funciona desde 1985. Doutor em Letras, ele alcançou notoriedade nacional com obras que, frequentemente, exploram elementos da história e da cultura do Rio Grande do Sul, e também por ser o idealizador dos cursos de Escrita Criativa da PUCRS, universidade em que trabalhou até a aposentadoria, no primeiro semestre de 2025.
Membro da Academia Rio-Grandense de Letras, Assis Brasil se consolidou como um mentor essencial, transformando a universidade em um celeiro de talentos e consolidando a escrita criativa como uma disciplina de excelência no cenário literário do país. Em entrevista para o Educação em Pauta, ele fala sobre inspiração e técnica e da paixão pelos livros. Confira:
O processo de criação de um autor é frequentemente visto como algo místico, quase um dom inato. Para o senhor, que é um dos pioneiros no ensino de escrita criativa no Brasil, como essa arte pode ser ensinada? É possível “aprender a ser escritor”?
A pergunta é natural, e tem obtido várias respostas. A meu ver, é possível aprender a ser escritor e os caminhos são ler muito (o principal), escrever muito, muito ouvir os outros, muito acompanhar a crítica literária e, se possível, frequentar um curso de escrita criativa, que, felizmente, se espalham pelo nosso país, em escolas, universidades e meios informais. Assim, a escrita criativa surge como um aperfeiçoamento a quem se sente vocacionado para ser escritor. Ali, ganhará companhia de seus pares, com quem discutirá seus textos e os pareceres do professor, que sempre será alguém com experiência docente na área.
O senhor sempre destacou a importância de técnicas e exercícios para desbloquear a criatividade. Qual a relevância de se dominar a “ferramenta” antes de se buscar a “inspiração”?
A “inspiração” é um fenômeno complexo, não surge “do nada”. Para sentir-se “inspirado” é preciso ter condições prévias: conhecimento do mundo, conhecimento das artes, vivência da sensibilidade, leitura acumulada, prática do humanismo. A inspiração, assim, é condicionada por todos esses fatores. As “ferramentas” vêm depois. Trata-se do estudo e prática das diferentes técnicas que constituem um domínio que deve ser adquirido, seja pelo lento esforço solitário, seja pela aprendizagem organizada nas aulas de escrita criativa. Ninguém nasce conhecendo as técnicas. Como dizia Delacroix a seus alunos, “Aprendam as técnicas; isso não vai impedir vocês de serem gênios”.
O senhor fundou e coordenou a primeira oficina de escrita do Brasil, na PUCRS, em um tempo em que essa prática era incomum. Qual o papel dessas oficinas e cursos na lapidação de novos talentos?
Eu não teria realizado esse trabalho sem o apoio, desde a primeira hora e sempre, da minha universidade. Grande crédito à PUCRS nessa caminhada. Em 40 anos, passaram pela oficina cerca de 700 alunos. Como dizia Cristo, “Pelos frutos conhecereis a árvore”. Então, essa árvore já produziu inúmeros escritores, premiados e inclusive publicados no Exterior. Já perdi a conta. Sim, é um trabalho de lapidação e estímulo para que cada qual reconheça sua vocação e, na prática diária da escrita, encontre sua própria voz e seu público.
Quais os maiores desafios para os jovens autores de hoje? O que mais os impede de evoluir e encontrar seu próprio caminho na literatura?
O maior desafio para o jovem escritor é encontrar um ambiente propício e estimulante para desenvolver-se, e isso não é fácil. Nem sempre o ambiente é encontrado na família e entre os amigos. Temos, junto a isso, a quase invencível concorrência dos meios audiovisuais, especialmente dos jogos eletrônicos, com seu divertimento barato e raso. Terminado o jogo, nada mais fica, a não ser a necessidade de jogar de novo. Sei que a maioria dos jovens vai nisso até alta madrugada. É um tempo roubado da leitura. Não sei como pensar esse assunto, pois é um fenômeno de nossa época, insuperável, e que vai muito além da mera discussão sobre a leitura. Com a palavra, os pensadores da educação.
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A leitura na escola é, muitas vezes, vista como uma obrigação, o que afasta os jovens. Como a escola pode e deve estimular a leitura e a escrita de forma mais cativante e menos “acadêmica”?
Grande papel está reservado à escola, que, sabemos, não pode resolver tudo, pois está lutando contra adversários poderosos, a que já me referi na resposta anterior. Dentro desse exíguo espaço/tempo disponível, a primeira providência é calcar na leitura, pois é a leitura que leva ao ato de escrever.
É uma pena que a escola, em especial no Ensino Médio, fique estrangulada pelas exigências do vestibular, um forte inacessível e autoritário, com regras que não se sabe de onde surgiram. As listas das obras indicadas, quase sempre, são esquizofrênicas.
Dentro daquilo que a escola pode fazer, é preciso distribuir as leituras entre os clássicos (pertencentes ao cânone universal, não apenas ao reduzidíssimo cânone brasileiro) e os contemporâneos. Mas não como habitualmente se faz: ler os clássicos descontextualizados da cultura em que floresceram e, pior, sem conexão com a contemporaneidade.
Assim, pela ordem: o docente apresenta as leituras brasileiras contemporâneas e, a partir delas, faz um link – temático, ou de personagens – com alguma obra clássica. Aí, sim, o aluno dará um sentido atual à obra predecessora.
Insisto que não se limite a leitura a obras de autores brasileiros, mas, ao contrário, se estimule o conhecimento de outras literaturas (e culturas). Nesse sentido, não entendo como um aluno possa ter terminado o Ensino Médio desconhecendo a existência de Antígona, D. Quixote, Hamlet, dos Ensaios de Montaigne. É espantoso, escandaloso, vergonhoso. Olhem para o ensino do nosso vizinho Uruguai, onde os canônicos estudados extrapolam a literatura de seu país, e são lidos com prazer pelos estudantes.
Quanto à escrita, bem, ela decorre da leitura, e é um caminho natural e incontornável. O aluno começa a escrever quando lê um livro bom e diz para si mesmo: “Puxa, eu gostaria de escrever como esse escritor”. Está lançado o interesse, o gosto, até o amor e o desejo para colocar no papel as suas ideias e experiências. Esse é um momento crítico, sensível e talvez único na vida, quando entra o papel insubstituível do educador, que vai definir se essa jovem vocação vai se desenvolver ou se vai sumir na vala comum das frustrações que duram uma vida e podem até anulá-la.
Qual a sua visão sobre o papel do escritor na sociedade atual? A literatura ainda tem o poder de provocar reflexão e transformação social?
Aqui penso como Iser: a literatura tem três domínios. Ela é causa de prazer estético, conhecimento do mundo e transformação. Esses domínios vêm desde sempre, desde Homero, e são inalteráveis. Quanto à transformação, eu não ficaria com a social (como, a seu tempo, fizeram Werther, Germinal ou O apanhador no campo de centeio, mas incluiria a transformação pessoal, esta, sim, capaz de mudar o seu tempo. Termino com uma acurada síntese do nosso Mario Quintana: “Livros não mudam o mundo, quem muda o mundo são as pessoas. Os livros só mudam as pessoas”.
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