“Passou da hora de a gente rever os currículos escolares”
Leo Fraiman é um dos expoentes em saúde mental e no desenvolvimento das competências socioemocionais. É criador de uma metodologia baseada em projeto de vida e atitude empreendedora
Nos últimos 22 anos, o Brasil registrou 24 ataques em escolas, conforme indica uma pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O último atentado aconteceu em abril deste ano em uma creche em Blumenau.
Para contextualizar sobre a violência e o quanto as escolas são fundamentais para que sejam ambientes acolhedores a todos, o Educação em Pauta entrevistou o psicoterapeuta, palestrante internacional, escritor e autor de mais de 20 livros, Leo Fraiman.
O especialista desenvolveu a Metodologia OPEE (Projeto de Vida e Atitude Empreendedora), sendo condecorado com a Medalha da Ordem do Mérito da Força da Paz do Brasil. A honraria é o reconhecimento de seu trabalho na área da saúde mental e do desenvolvimento das competências socioemocionais.
Foi conferencista na Organização das Nações Unidas (ONU) pelo Simpósio Internacional – Formando lideranças para o desenvolvimento futuro, em Genebra/Suíça, e foi membro do Comitê Mundial de Educação para a Autonomia, em Paris.
Educação em Pauta – Qual é a sua visão diante dos últimos incidentes envolvendo os ambientes escolares no Brasil?
Leo Fraiman – Hoje em dia, vivemos em uma sociedade muito violenta, seja nas notícias, nos programas radiofônicos, nos conteúdos veiculados na televisão, nos games mais consumidos, nas séries ou nos cinemas. Observe como a violência está propagada o tempo todo. Quando acontece um crime, quem vai para capa de uma revista? O criminoso, o policial ou o professor que teve uma atitude heroica?
É preciso que se faça uma revisão geral de que projeto de país queremos. Não temos sequer um Ministério da Juventude, uma política de médio a longo prazo para a educação ou mesmo para o jovem brasileiro. Vivemos no contrário disso, com uma população que mata pessoas de baixa renda, um dos países mais perigosos para mulheres e minorias.
O que trago de reflexão é que não é somente a escola que tem responsabilidade, porém esta tem um papel fundamental e crucial nas soluções de médio e longo prazo para a construção de uma sociedade mais harmônica e menos violenta.
>> Em vídeo, Leo Fraiman comentou os incidentes recentes em escolas brasileiras:
Educação em Pauta – Uma das suas especialidades é a logoterapia, relacionada ao sentido da vida. Em momentos traumáticos como estes, como superar e reagir?
Leo Fraiman – Eu sou autor de uma metodologia de projeto de vida e atitude empreendedora baseada na logoterapia e na psicologia cognitiva. Já observei mais de 1,5 mil instituições de ensino e 350 mil alunos envolvidos. Posso constatar que o trabalho sistêmico com intervenções semanais, voltadas para o auto desenvolvimento da inteligência emocional e para o fortalecimento de valores e virtudes humanas trazem resultados muito positivos. Especialmente quando desenvolvido por meio de atividades e de projetos especiais dedicados aos alunos, educadores e familiares.
Este é o único caminho dentro de tudo o que já estudei durante estes 30 anos na área educacional. Acredito que sejamos capazes de construir uma convivência mais harmônica, mais humanizada e até mais feliz para se viver, porque a paz é feita a partir da construção da percepção que a vida tem valor. Aí entra a logoterapia, que faz toda a diferença, porque essa abordagem nos mostra um projeto construído por meio da sensação de que a vida tem um sentido.
Educação em Pauta – Você declarou que a “sociedade está mais doente”. O que pode ter acontecido?
Leo Fraiman – Uma matéria educacional que privilegiava as competências cognitivas faliu, caducou, simples assim. Felizmente, atualmente, parece que a sociedade está acordando para uma formação integral e integrada. Nas escolas, assim como nas empresas de primeira linha, é mais abordado o propósito de vida.
Por exemplo: a Língua Portuguesa não pode ser só um conjunto de regras para escrever bem um texto para que depois, ao final de toda vida escolar, o aluno não queira mais saber deste conteúdo. O estudante precisa entender que a linguagem é uma forma de transformação da própria vida, afinal de contas, somos o efeito da linguagem dentro de nós mesmos, uns com os outros. Esse jovem pode pegar gosto por profissões como Jornalismo, Direto ou Sociologia.
Então, uma aula vazia é uma forma de violência. No entanto, o professor que dá essa aula pode também ter sido violentado por não ter sido inspirado, acolhido, orientado, visualizado dentro do próprio contexto escolar.
Sempre falamos dos alunos, mas quem tem feito os cuidados das competências sociais e emocionais dos profissionais da escola? Tanto o professor, a merendeira, os seguranças, enfim, outros profissionais da escola que, muitas vezes, possuem uma influência muito forte sobre os alunos.
O que defendo é que uma educação integral e integrada não pode ser focada unicamente no aluno. É preciso uma formação contínua com todos os profissionais da escola, como também com as famílias. Sem isso, teremos uma escola esvaziada de sentido que, por si só, é uma das maiores violências que podem acontecer.
Educação em Pauta – É possível resgatar a conexão humana? De que maneira?
Leo Fraiman – É totalmente possível. Existem soluções que estão sendo encontradas e vemos isso em muitas escolas pelo país. Há dois anos, fiz parte do lançamento do prêmio Ações Transformadoras, que envolveu centenas de escolas de todo o Brasil, sendo que houveram ações com crianças oferecendo aulas de educação financeira para seus próprios pais, feiras de trocas de informações, compartilhamento de boas práticas entre educadores, e centenas de outras.
Existem muitas soluções, mas o que falta é um plano de formação continuada em que os profissionais da escola percebam seus valores, reconheçam a si, pensem no sentido das suas vidas, se sintam valorizados, amados e queridos. Sem qualificação e visibilidade, além da ausência de um projeto de políticas pedagógicas educacional, o milagre da transformação não vai acontecer.
Quando os gestores tomam a decisão de fazer das escolas um ambiente de transformação, os recursos aparecem e é fortalecida a conexão com a sociedade de pais e mestres. É importante incentivar comitês de saúde mental, rodas de conversa entre as crianças, leituras conjuntas, entre outras iniciativas. Dessa forma, não teremos apenas a escola dos sonhos, mas sim a escola dos projetos de vida, com vida e para a vida. Com certeza, temos muitos caminhos para resgatar a conexão humana.
Educação em Pauta – Em outras declarações, você utilizou o termo “desblindar a vida”. Quais são as competências socioemocionais necessárias para este desbloqueio?
Leo Fraiman – Um grande acerto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi quando ela trouxe as dez competências. Afinal de contas, a vida é uma grande mandala de competências. Temos contempladas a empatia, a compaixão, a análise crítica, a criatividade, os projetos de vida, entre outros. Na verdade, o que menos me importa é o nome, mas mais a atitude.
No país, muitas escolas, tanto públicas quanto particulares, têm como afinidade formar pessoas. O ser humano não se forma somente em Matemática, Biologia ou História. É por isso que gosto da abordagem da logoterapia, pois temos influências biológicas, sociais e psicológicas, mas, acima de tudo, somos seres espirituais transcendentes. É muito mais sobre o que fazemos, como aprendemos a lidar com a psique e o que vamos fazer com as influências sociais que recebemos.
Se queremos alunos protagonistas transformadores socialmente, precisamos lembrar da sistemática de crianças e adolescentes, que na vida o que se tem são condições, mas, raramente, são condenações. Como referiu Sartre (Jean-Paul Sartre, filósofo): “Não importa o que a vida fez de você, mas o que você faz com o que a vida fez de você.”
Acredito profundamente que somos seres espirituais com a capacidade de escolher em algum grau o que fazer com o nosso sentido. Por exemplo, uma planta não tem essa possibilidade, uma angústia de se tornar uma árvore. Por um lado, se Deus deu a nós, humanos, essa angústia, concedeu a liberdade para potencializar a semente da vida que carregamos dentro de nós. O que estou dizendo é que as pessoas mudam. É preciso lembrar que cada um tem a responsabilidade com seu próprio destino. Não pode ser delegável, não pode ser tercerizado.
Educação em Pauta – O que os pais e as escolas não estão enxergando para evitar acontecimentos violentos?
Leo Fraiman – Eles não estão enxergando uns aos outros. Tanto é que uma escola que tem uma relação boa com a comunidade tem muito menos casos de violência. Quando existe um plano político pedagógico de formação, se constituem laços com as famílias e os resultados aparecem.
É bem frequente que as famílias somente sejam chamadas à escola para receber notícias ruins sobre os filhos. Na realidade, é importante mostrar quando o aluno teve um progresso ou uma atitude de empatia. É preciso promover uma reunião de pais e mestres que reforce valores, competências, afetividade e humanidade. Quando os pais recebem comunicações mais positivas, criativas, assertivas e afetuosas por parte dos agentes escolares, os resultados são bem diferentes, tanto no andamento como no rendimento escolar. Isso é extensivamente analisado no mundo acadêmico. É fato que a parceria entre família e escola é extremamente benéfica.
É muito fácil se esconder em falas como “já tentamos”, “os pais são complicados”, “eles só querem reclamar”, “as famílias não ajudam”. Ok, tudo isso é uma condição, mas não é uma condenação. As grandes perguntas a fazer são: o que vamos fazer com isso? Como podemos mudar esse quadro? O que foi feito em outra escola que teve resultado positivo? Praticamente em tudo na vida você adota uma neurótica, a ótica da neura, do problema, das dificuldades, das desculpas. Você vai encontrar uma ótica empreendedora, transformadora, que faz a diferença. Esses são os faróis para usar e guiar em momentos obscuros que estamos vivendo.
Educação em Pauta – Quais são os sinais que podem indicar que uma criança ou um adolescente está com problemas emocionais?
Leo Fraiman – Alterações comportamentais, humor, sono e falta de apetite. Ou, quando estão muito irrequietas e desinteressadas na escola. Em um dia de calor, está vestindo um moletom cobrindo o rosto. Tudo isso podem ser pedidos de ajuda.
Por isso, é importante ter um psicólogo no contexto escolar. Não psicoterapia individual, mas que possam ajudar os professores a se perceberem, para que também tenham acolhimento com quem conversar e consigam identificar a falta de brilho nos olhos dos alunos. Mas, para que isso aconteça, eles precisam ser tratados como alguém que o brilho nos olhos também importe.
Esses últimos acontecimentos fazem com que possamos lembrar a importância da vida, dos nossos sentimentos, lembrar que como humanos somos vulneráveis e que precisamos de acolhimento, de motivação, de um olhar. O professor só vai conseguir perceber se alunos não estão bem quando ele mesmo tiver um espaço para se conhecer, se perceber, se olhar e se sentir amado. Hoje em dia, percebo com muita clareza que quando os gestores escolares amam seus professores, estes tendem amar ainda mais seus alunos.
Educação em Pauta – E é possível prevenir esses tipos de situações traumáticas?
Leo Fraiman – Não só é possível, como necessário. Passou da hora de a gente rever os currículos escolares. De termos mais tração a intervenções sistemáticas voltadas a projetos de vida e competências sociais e emocionais. O ser humano é mais que a Matemática, Física e Biologia. É composto por sonhos, medos, frustrações e projetos. Somos movidos pelo sentido da vida, como nos ensina Viktor Frankl (psicólogo). O sentido da vida é construído por uma obra, por uma ação, por aquilo que fazemos no mundo. É encontrado por experiências emocionais transformadoras. É construído a partir da atitude que temos diante da dor, do sentimento, da falta e da vida real.
Com essas reflexões, deixo para você, meu amigo e amiga educadora, algumas perguntas. Quais são seus sonhos, suas aspirações, suas esperanças? Quais são as atitudes para que seus sonhos se transformem em uma realidade diferente? É preciso lembrar que a sociedade é feita a partir de cada um e de todos nós juntos. E como diz o ditado: “Não tem ninguém melhor do que todos nós juntos”. Que sejamos todos guardiões da certeza de que a vida vale a pena.
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