Gustavo Hoffmann: escolas não deram um passo firme rumo ao híbrido
Fellow pela Universidade de Harvard, gestor educacional acredita que as instituições devem aproveitar melhor o que o formato oferece
É com a autoridade de quem foi estudar sobre ensino híbrido em Harvard que o gestor educacional Gustavo Hoffmann afirma: salvo raras exceções, esse modelo não foi implantado no Brasil durante a pandemia. Ele sustenta que uma confusão de conceitos e, até, desconhecimento da metodologia “autorizaram” o uso da expressão para denominar as aulas realizadas de forma remota e presencial, concomitantemente, em função do risco de contágio por coronavírus.
Diretor da Plataforma A, de Porto Alegre, maior edtech da América Latina, ele reconhece ter havido um crescimento exponencial do uso de tecnologia digital nos últimos dois anos. Porém, avalia que escolas e professores ainda não deram um passo firme rumo ao hibridismo, que segundo ele é um caminho sem volta para a educação do século 21.
“Nós, seres humanos, somos naturalmente resistentes a alterações. Está tudo funcionando bem, para que mudar o nosso modelo educacional? Porque “aprender a aprender” talvez seja a competência mais importante deste século. É muito possível que 85% das profissões que vão existir em 2030 ainda não existam hoje. Estamos formando, em todos os níveis de ensino, alunos para fazer não sabemos exatamente o que. Mesmo as profissões que existem vão mudar. O Laboratório de Aprendizagem de Marcas da UnB (Lamfo), tem uma pesquisa dizendo que 76% do que um advogado faz, 79% do que um engenheiro civil faz, e 55% do que um enfermeiro faz vão ser substituídos por inteligência artificial até 2026. Se a gente continuar nesse tecnicismo, vamos formar um monte de desempregados”, projeta Hoffmann.
Para o gestor, é preciso que escolas e universidades saibam aproveitar melhor o que o Ensino Híbrido oferece. Ele acredita que a possibilidade trazida pelo Novo Ensino Médio, de oferecer 20% de conteúdos on-line, pode ser um convite à transformação, desde que feito de forma adequada. Na entrevista a seguir, ele retoma conceitos do modelo, expõe armadilhas que podem arruiná-lo e defende a terceirização de conteúdos.
Educação em Pauta – Na segunda metade de 2021, muitas escolas voltaram a oferecer presenciais, mas mantiveram o ensino on-line para parte dos alunos em função do risco de transmissão de Covid. Convencionou-se chamar de ensino híbrido. Isso está errado?
Gustavo Hoffmann – Não era ensino híbrido. Era algo semi-presencial ou “flex”. E até quem fez o híbrido, parte on-line com autonomia para o aluno, parte presencial supervisionado, muitas vezes não escolheu o melhor modelo. Por exemplo: começaram a disponibilizar on-line mas, em sala de aula, os professores continuaram a dar aulas expositivas. Ou seja, o estudante assistia ao conteúdo no espaço virtual de aprendizagem e via a mesma coisa na sala de aula. Isso desanima o aluno.
Há muitos modelos de ensino híbrido, mas quais são as condições sine qua non para sua existência?
Três elementos o compõem. Um deles é que parte do processo ensino-aprendizagem aconteça on-line, com algum controle do aluno sobre o tempo, o local de estudo e a quantidade de vezes em que quer acessar esse conteúdo. O segundo elemento é que parte tem de ser presencial, fora da residência do aluno. Pode ser em estágio, em campo, em laboratório, em sala de aula, mas supervisionado por professor, tutor ou mentor. E o terceiro é que deve haver forte conexão entre as duas primeiras. Já fui convidado a ir a uma universidade que afirmava usar o modelo, mas oferecia quatro disciplinas por semestre, duas totalmente on-line e duas totalmente presenciais. Isso não é híbrido. Isso é pegar um curso e dividir em duas partes. Uma a distância e uma presencial. Não vejo sentido nisso.
Na sua avaliação, qual o melhor modelo de ensino híbrido?
O que melhor funciona, que eu particularmente mais acredito, é a sala de aula invertida. No modelo presencial tradicional, alunos e professor estão no mesmo espaço de aprendizagem, no qual 90% são exposição de conteúdos. E sabemos que essa prevalência não funciona muito bem. Por vários fatores mas principalmente por dois. Quinze dias após uma aula expositiva, o aluno tende a lembrar de 20% ou 25%. E o segundo que é mais importante que o primeiro: cada aluno tem um ritmo individual de aprendizagem. Posso ter facilidade em matemática e dificuldade em história, e meu colega facilidade em humanidades e problemas em ciências. Nós temos a mesma capacidade de atingir o nível máximo sobre qualquer assunto, mas talvez precisemos de mais tempo. Quando no Ensino Superior trabalhamos com alunos provenientes do Ensino Médio, isso fica muito claro. Nos primeiros períodos, recebemos alunos de escolas públicas e privadas, umas boas, outras nem tanto, e outros alunos, que estão há dez anos fora da escola. Todos têm lacunas, mas serão colocados na mesma sala de aula, sentados, ouvindo o professor. Ainda assim, espera-se os mesmos resultados de aprendizagem. Isso não faz o menor sentido.
Que avanço a sala de aula invertida traz nesse sentido?
É disponibilizar o conteúdo estruturado no ambiente virtual de aprendizagem, para que cada aluno quando quiser ou precisar tenha acesso. Quem tiver um pouco mais de dificuldade pode ver um vídeo ou ler um texto cinco, 10 vezes, até aprender. Quem tiver mais facilidade vai assistirá a um vídeo na velocidade de reprodução mais rápida e está resolvido. Isso respeita o ritmo individual de aprendizagem, mas não é suficiente. Deve-se usar os momentos presenciais, em sala de aula, para aplicação desse conteúdo que o estudante viu on-line. A turma chega na escola no mais ou mesmo nível de conhecimento para aplicar aquele conteúdo. Aí, sim, a aprendizagem se dá de forma efetiva. A exposição de conteúdo ocorre em casa e a lição de casa, a resolução de exercícios, na escola, na universidade. A gente inverte o modelo tradicional, por isso o nome sala de aula invertida ou flipped classroom.
O modelo é mais eficaz efetivamente?
A partir deste ano, com o Novo Ensino Médio, parte do conteúdo poderá ser ministrado on-line. O senhor acredita que o modelo é adequado para adolescentes?
A Educação Básica precisa muito mais dessa revolução que o Ensino Superior, porque a formação realmente está lá atrás. O ideal seria adotar o ensino híbrido, o currículo por competências, aplicar metodologias ativas não só no Ensino Médio, mas também no Fundamental 2. No 1, seria muito difícil. Quanto mais iniciais os anos de formação, menor a possibilidade de autonomia de aprendizado os alunos têm.
E como garantir que os alunos irão, realmente, estudar em casa ou conduzir o aprendizado de forma adequada?
Na América Latina, temos um grande desafio, para todos os níveis de ensino, que é estabelecer nos alunos a disciplina, o comprometimento e o senso de organização. Não dá para fazer híbrido sem que os alunos façam a parte deles de forma autônoma e independente. Mas quando usamos os recursos da educação a distância no desenho educacional, é possível conferir o que cada aluno faz no ambiente virtual, quanto tempo ele ficou logado, até mesmo o que fez com o mouse. Há recursos que permitem essa análise. Imagine que eu tenho um modelo de ensino em que 20% seja on-line e que eu tenha como premissa que o aluno acesse a um conteúdo ou a uma série de conteúdos durante quatro horas semanais. Estabeleço uma régua: se na quarta semana de aulas, 50% da turma não acessou o conteúdo, posso entrar em contato com eles e perguntar se houve algum problema, alguma dificuldade. Só de saber que estão sendo monitorados, aumenta muito a adesão ao conteúdo prévio, à parte on-line do processo. Também há modelos em que os professores usam os primeiros minutos de aula para aplicação de uma pequena avaliação, para ver se o aluno entendeu aquele conteúdo. Outras instituições atribuem notas ao acesso on-line para criar essa disciplina, esse comprometimento.
Há algum problema nesse sistema?
Outra novidade do Ensino Médio é a possibilidade de que esse conteúdo para ensino on-line seja terceirizado, comprado de empresas especializadas. Há certa desconfiança quanto a isso nas escolas.
Há professores, gestores, que creem ser melhor que o material tem de ser produzido internamente. Quando eu pergunto o porquê, eles me falam: “O domínio desse conteúdo tem de ser da instituição. É seu core”. Aí, eu pergunto. Na biblioteca, tem algum livro produzido por algum professor? Em algumas, até têm um docente notável que tenha feito um livro, mas em geral não são de professores. Todo o conhecimento contido naquele local é produzido fora. A função da escola em todos os níveis de ensino talvez não seja produzir conteúdo, mas adotar metodologias de aprendizagem que se apliquem a esse conteúdo de forma que o aluno desenvolva competências. Aí, sim, a gente consegue ver o papel da escola. E a escola tem de desenvolver nos docentes a habilidade de fazer uma curadoria de conteúdo. É entender o que há disponível – há muita coisa pública, mas não é fácil pegar o que tem, organizar e estruturar, ou estabelecer quem é o melhor fornecedor de conteúdo, dentro de várias opções possíveis. Nesse processo, tem de haver a junção da gestão e de uma equipe de docentes num processo muito parecido com o que ocorre com a compra de livros para uma biblioteca.
Ante ao temor dessa terceirização, o senhor vê algum risco real?
Um evidente seria a desconexão entre esse conteúdo e o projeto pedagógico da escola. Outra coisa seria a resistência do corpo docente, que pode ocorrer quando a contratação ocorre sem sua participação. O professor acha que o material está errado, encontra erros no conteúdo, fala que não concorda, que a linha de ensino, do projeto pedagógico é diferente. Mas aí está a vantagem da contratação do conteúdo. Imagine que definíssemos que cada professor poderia escolher o que ministrar, os livros a usar e o conteúdo. Tenho certeza absoluta que teríamos 10 conteúdos, 10 metodologias, 10 dinâmicas diferentes. Ou seja, a decisão do que vai acontecer na sala de aula não é da escola, mas de cada um dos professores. Isso é um perigo. Que escola abre mão, institucionalmente, de seu projeto pedagógico e deixa 100% na mão dos professores? Por outro lado, ela não pode traçar um roteiro do que o professor faz minuto a minuto, porque ele não é um robô. Ele tem de ter alguma liberdade, mas dentro de uma metodologia definida pela escola e num conteúdo definido por ela. Se o professor não concorda com o conteúdo contratado, terá de se adequar. O projeto pedagógico é da escola. Se ele não seguir, o aluno vai dizer que o conteúdo que o professor cobrou na prova não está on-line. A escola tem como checar se o projeto está sendo cumprido tento os alunos como auditores.
O senhor disse que é necessário revolucionar a educação. Mas um período pós pandemia é o mais correto para isso ocorrer?
Na verdade, estamos passando por uma mudança que não é metodológica, tecnológica, é uma mudança cultural. Nós, seres humanos, somos naturalmente resistentes a alterações. Está tudo funcionando bem, para quê a gente precisa mudar o nosso modelo educacional? Porque aprender a aprender talvez seja a competência mais importante deste século. Alvin Toffler dizia que o analfabeto do século 21 não é aquele incapaz de ler e escrever, mas sim aquele que não seja capaz de aprender, desaprender e reaprender. Porque isso é importante? É muito possível que 85% das profissões que vão existir em 2030 ainda não existam hoje. A gente está formando, em todos os níveis de ensino, alunos para fazer não sabemos exatamente o que. Mesmo as profissões que já existem vão mudar. O Laboratório de Aprendizagem de Marcas da Universidade de Brasília (UnB), o Lanfo, tem uma pesquisa dizendo que 76% do que um advogado faz, ou 79% do que um engenheiro civil faz, e 55% do que um enfermeiro faz vão ser substituídos por inteligência artificial até 2026. Se a gente continuar nesse tecnicismo, vai formar um monte de desempregados. As máquinas vão tomar o lugar de muitas profissões. Temos de ensinar o aluno a aprender, a não depender do professor, a buscar informação sozinho. Nos momentos presenciais, é preciso aproveitar para desenvolver competências que definitivamente o ensino regular não trabalha, como criatividade, liderança, capacidade de resolução de problemas, comunicação, argumentação. Os alunos têm de desenvolver soft skills, que são habilidades comportamentais, que vão fazer toda a diferença, inclusive para mudarem de profissão. A Universidade de Singapura, melhor universidade da Ásia, estima que cada egresso vai, ao longo da vida, desenvolver seis carreiras. Não são seis empregos, é mudar de profissão seis vezes. Não dá para continuar formando alunos da mesma forma, ou teremos incompetentes funcionais nos próximos anos.
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