Identidade docente e cuidado no centro da reflexão de Humberto Herrera
Para o pedagogo chileno, educar é reafirmar valores e fortalecer vínculos humanos em tempos de incerteza
Com uma trajetória que entrelaça filosofia, pedagogia, teologia e ciências da religião, o chileno Humberto Herrera tem se dedicado à formação de professores com base em uma pedagogia centrada no cuidado, na escuta e na dignidade humana.
Herrera participa do Grupo de Ética da Amazônia (GEA), da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), e do Grupo de Pesquisa Movimento, Sabedoria, Ideias e Comunhão (MOSAICO), da Universidade Federal de Lavras (UFLA). É membro da Rede Internacional de Filosofia Ecológica Integral, da Sociedade Brasileira de Cientistas Católicos (SBCC) e do Grupo de Trabalho Universidades e Amazônia da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM).
Palestrante do 18º Congresso do Ensino Privado do SINEPE/RS, realizado de 23 a 25 de julho, no Centro de Eventos da PUCRS, em Porto Alegre, ele destacou a importância de espaços como esse para o fortalecimento da identidade docente. Em entrevista ao portal Educação em Pauta, Herrera compartilhou reflexões sobre qualidade de vida, formação continuada e o papel das emoções na educação contemporânea. Confira:
Como foi a sua experiência no Congresso? Quais foram os principais retornos?
Os professores disseram que se identificaram muito com a fala. Conseguiram conectar suas próprias vivências docentes com as ideias discutidas. Ouvi frases como “essa é a educação que eu acredito”, o que para mim foi muito significativo. Minha intenção era justamente essa: não oferecer apenas uma palestra com dados ou teorias, mas propor reflexões que dialogassem com a realidade deles. No final, foram cerca de 30 minutos ouvindo feedbacks. Foi uma alegria perceber esse encontro de experiências, esse espaço de reconhecimento mútuo, de escuta e de afeto entre colegas da educação.
E como é “viver com propósito”? O que isso significa na sua visão?
Essa ideia está ligada à missão da educação e da escola na construção de uma sociedade mais justa, inclusiva e participativa. Mesmo sendo instituições privadas, as escolas precisam ter consciência de sua função pública. Viver com propósito é pensar nos valores que promovemos, no futuro que queremos construir e em como nos colocamos a serviço de algo maior que nós mesmos. É uma escolha diária, que exige coerência entre o que acreditamos, o que ensinamos e como vivemos.
Como a filosofia pode nos ajudar a lidar com as incertezas do cotidiano?
A filosofia cumpre um papel importante quando se coloca a serviço da realidade. Ela nos permite olhar com mais profundidade para o que vivemos, nos afastar por um momento para elaborar respostas e, depois, retornar à prática com novas chaves de leitura. É uma janela que se abre a partir da inquietação com o presente, ajudando a ressignificar a ação educativa. Ela nos convida a desacelerar, refletir e reconstruir sentidos em tempos de tanta velocidade e dispersão.
O que significa viver a ética nos tempos atuais?
A ética é um espaço comum de diálogo e afeto. Não pode ser reduzida a princípios abstratos ou apenas individuais. Precisamos entendê-la como uma construção coletiva, em que trajetórias diferentes e visões de mundo se encontram para reimaginar os futuros possíveis. No Congresso, discutimos razão e emoção, e a ética surge justamente nesse ponto de encontro entre liberdades e responsabilidades. Viver eticamente hoje é reconhecer o outro como legítimo, cultivar vínculos e fazer escolhas que ampliem possibilidades de vida digna para todos.
E como cultivar valores humanos em uma sociedade cada vez mais individualista?
A educação é, por essência, um compromisso com a realidade. Diante de um cenário de desigualdade, polarização e solidão conectada, é urgente reafirmar os valores que nascem da relação com o outro. Liberdade, solidariedade, autonomia, tudo isso se cultiva no convívio. A escola tem o poder e a liberdade de decidir os caminhos que quer seguir, como diz Bell Hooks. E, nesse caminho, precisa assumir a responsabilidade de formar pessoas sensíveis, comprometidas e abertas ao encontro.
Como o excesso de informações e estímulos digitais afeta nossa capacidade de pensar e sentir?
Vejo três pontos principais. O primeiro é a perda de profundidade na atenção: dividimos tanto o foco que deixamos de perceber os detalhes, as sutilezas, os gestos. O segundo é o enfraquecimento da criatividade, especialmente entre crianças e jovens, que acabam consumindo conteúdos prontos sem espaço para imaginar ou criar. O terceiro é a falsa sensação de liberdade: estamos conectados o tempo todo, mas entregamos nossa autonomia a algoritmos que direcionam nosso tempo e escolhas. Isso nos desconecta de nós mesmos e dos outros. Precisamos reaprender a estar presentes.
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A tecnologia está nos tornando mais sábios ou mais distraídos?
Depende de como nos relacionamos com ela. A tecnologia é fruto da inteligência humana, que exige consciência. O problema não está no celular, por exemplo, mas em como o utilizamos. Quando deixamos de interagir, criar ou refletir por conta própria, perdemos a autoria da experiência. Precisamos resgatar o sentido do uso e promover relações mais humanas, mesmo em ambientes mediados por tecnologia. A sabedoria está em saber equilibrar, discernir e manter viva a nossa capacidade de escolha.
Qual é o papel da filosofia diante do avanço da inteligência artificial?
A filosofia nos ajuda a compreender os limites e as intenções da tecnologia. Quando entramos em debates sobre robótica ou direitos de humanóides, por exemplo, estamos falando de alteridade, de relações. Será que é mais fácil nos relacionarmos com algo que nunca vai nos frustrar? A filosofia questiona isso. Ela contribui para o entendimento do lugar da IA na sociedade e nas relações humanas. Nos convida a refletir sobre o que é verdadeiramente humano, sobre o que não pode ser automatizado, como o cuidado, o amor, o sofrimento.
Como educar jovens para o pensamento crítico e a responsabilidade emocional?
O pensamento crítico é fruto de um processo construído intencionalmente. Não basta aderir a modismos pedagógicos, é preciso ter um projeto, um currículo que assuma uma postura crítica, feminista, antirracista, por exemplo. É esse alinhamento entre intencionalidade e prática que forma sujeitos críticos e conscientes emocionalmente. E isso exige coragem das instituições, que precisam se posicionar diante dos desafios sociais e formar educadores que sustentem essa missão com coerência e sensibilidade.
O que mais preocupa você na formação dos adultos do futuro?
A maior preocupação que tenho hoje é com a falta de profundidade. Vivemos sob a lógica do imediato, do instantâneo, e isso acaba gerando frustração, ansiedade e um medo constante de ficar para trás. Crianças e jovens estão cada vez mais reféns dessa velocidade, desconectando-se de si mesmos, da rua, da natureza e, principalmente, do tempo necessário para o esforço e a construção interna. Isso os fragiliza emocionalmente. E essa fragilidade preocupa, porque esses jovens de hoje serão os adultos que formarão famílias, ocuparão posições de liderança e precisarão lidar com desafios que exigem resiliência, algo que só se constrói com experiências reais e vínculos significativos. Sem isso, corremos o risco de formar adultos tecnicamente competentes, mas com grandes dificuldades no campo das relações, dos afetos e da capacidade de enfrentar frustrações. Pessoas que ainda precisarão viver experiências estruturantes, mas que muitas vezes não estão decididas, ou mesmo preparadas, para isso.
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