O poder da escrita em momentos de crise

O romance Ela se chama Rodolfo, lançado em 2022 pela DBA Literatura, colocou o nome da escritora Julia Dantas no radar de quem gosta de boas histórias. Ambientado em Porto Alegre e segunda publicação da autora, a trama acompanha a rotina de Murilo, que encontra uma tartaruga no apartamento que acaba de alugar e passa por uma transformação. Premiado pela Associação Gaúcha de Escritores e pela Academia Rio-Grandense de Letras, o livro conquistou leitores após o seu lançamento. Porém, o nome de Julia passou a circular novamente, na internet, após a publicação de A Casa Alagada, texto em que ela compartilha o reencontro com sua casa após as enchentes ocorridas no Rio Grande do Sul em maio deste ano. 

Foi então que seu blog Passagem Dois ganhou novos leitores, a maioria deles também atingidos pelas chuvas e identificados com a descrição do cenário de destruição trazido por ela. Doutora em escrita criativa, Julia conversou com o Educação em Pauta sobre o sucesso de seu texto nas redes sociais, o poder da escrita diante da tragédia e projetos futuros. Confira: 

Educação em Pauta – Você comentou, em outras entrevistas, que não imaginava que a máxima “a literatura salva” iria ser vivenciada de forma tão objetiva. Como foi o processo de colocar em palavras o que tu estavas sentindo ao entrar no teu apartamento após as enchentes? Houve algum acontecimento em específico que te motivou a transformar em texto o que tu estavas vivendo?
Julia Dantas – Escrever me ajuda a organizar os sentimentos e pensamento, então foi muito natural o processo de escrita. Não foi algo que eu planejei e nem passei muito tempo pensando a respeito. Comecei escrevendo para mim, apenas como uma forma de assimilar o que estava acontecendo e talvez também como um modo de criar um registro desse acontecimento histórico que acabou nos atingindo diretamente.

Educação em Pauta – Como surgiu o blog Passagem Dois, onde você publicou A Casa Alagada?
Julia Dantas – Uma vez que eu estava escrevendo, me pareceu que faria sentido compartilhar os textos com outras pessoas. Foi uma decisão um pouco intuitiva, eu não sabia como seria a recepção, mas sentia que outras pessoas que atravessaram a mesma coisa – ou coisas parecidas – poderiam se sentir acolhidas e compreendidas ao lerem um relato similar às suas experiências. Então me perguntando qual seria a forma mais simples de publicar, me pareceu que o blog era rápido de criar, de fácil acesso por todo mundo e, ao contrário das redes sociais, um “lugar” em que os textos ficariam guardados para consulta futura, ou seja, eles não sumiriam nos feeds em pouco tempo.

Educação em Pauta – O texto A Casa Alagada foi muito compartilhado nas redes sociais e muitas pessoas afirmam que ele conseguiu descrever o que muitas delas sentiram em situações semelhantes. Tu acreditas que a literatura pode ser uma forma de entender ou vivenciar de forma mais leve o luto pela perda de um lar?
Julia Dantas – Com certeza pode ser uma forma de entender e processar o luto. Eu tenho dúvidas se pode ajudar a deixar mais leve: me pergunto se é possível ver com leveza uma perda assim e, mais que isso, me pergunto se faz sentido buscar leveza. E não quero de modo algum soar dramática, até porque a minha situação pessoal já está infinitamente melhor do que um mês atrás, e eu já posso dizer com segurança que vamos ter uma casa para voltar em breve. Mas não é o caso de todo mundo. Há pessoas que não voltarão para as suas casas, há outras que voltarão em condições precárias, há muitas que voltarão afundadas em dívidas. Nada disso é leve, e essas pessoas merecem que a gente olhe para a gravidade da situação delas, assim como merecem que os governos pensem em políticas públicas que possam, daí sim de modo muito objetivo, tornar mais leve a reconstrução. 

A literatura ajuda, organiza, acalenta e até tranquiliza, mas (exceto no meu caso que fui apoiada materialmente por leitores e editoras) a literatura não vai fornecer móveis, não compra um colchão, não paga pelas portas, não vai lixar a madeira das janelas de ninguém. Eu dedico grande parte do meu tempo e da minha energia à literatura, mas quando alguém perde uma casa, essa pessoa precisa que necessidades muito mais básicas sejam atendidas antes de poder chegar ao ponto de sentar, ler um livro ou um blog e, finalmente, passar da fase de reconstruir uma casa para recriar um lar.

Educação em Pauta – Tu és uma escritora premiada e, obviamente, uma leitora. Como foi encontrar teus livros e tentar salvá-los? Sabemos que, para além do valor monetário, estes objetos têm valor sentimental. Que memórias essa situação te trouxe?
Julia Dantas – Bah, foi duro. Eu provavelmente perdi um terço do que eu tinha. A gente tinha erguido os livros das prateleiras mais de baixo, então perdemos os das intermediárias. O papel incha quando absorve água, chegou a quebrar as estantes. Lembro de, num dia que os amigos foram nos ajudar no mutirão de limpeza, umas quatros pessoas se aproximarem de mim dizendo que eu precisava ir até o escritório. Quando cheguei lá, entendi que elas estavam dizendo que eu precisava ir lá me despedir de fileiras de livros encharcados. Não quiseram colocar no lixo antes que eu visse, o que é uma delicadeza de quem entende que livros são mais do que objetos. Pude pegar neles uma última vez, alguns livros escritos por amigos, vários com dedicatórias, outros já esgotados nas livrarias. Perdas que não podem ser reparadas.

Educação em Pauta – Muitas escolas estão acolhendo alunos que perderam suas casas e agora retornam à rotina das aulas. Na tua opinião, a escrita pode ser um caminho para ajudar os estudantes a trabalharem suas emoções diante de uma situação complicada como essa? Como professores podem incentivar o uso da literatura para tratar de assuntos complexos como o luto, por exemplo?
Julia Dantas – Sem dúvida. Eu recebi mensagens de pelo menos duas professoras que levaram meus textos sobre a enchente para a sala de aula. Uma delas ressaltou que alguns alunos revisaram sua opinião de que a arte não é capaz de mudar a realidade concreta, acho isso muito valioso. E, embora eu não trabalhe com adolescentes, acredito que a melhor forma de demonstrar o poder da escrita é abrir espaço para que os alunos escrevam. Por mais jovem que alguém seja, todo mundo já atravessou processos de luto. Um jeito de movimentar essas emoções pode ser pedir aos alunos que escrevam tudo que eles lembram sobre algo que perderam: pode ser uma pessoa, um endereço, uma peça de roupa, um brinquedo. Mesmo que pareça algo insignificante a princípio, a escrita por si abre os caminhos para reflexões mais profundas.

Educação em Pauta – Tu és doutora em escrita criativa. Como estimular a escrita entre estudantes? Que orientações podem ser importantes para incentivar o hábito da escrita entre crianças e adolescentes?
Julia Dantas – Acho que o principal, como em tantos processos criativos, é não atrapalhar. Quando alguém está começando a escrever, esse não é o momento de exagerar nas correções ou nas instruções. Escrever significa encontrar sua voz própria, e isso não acontece dentro das regras da gramática. O que eu gosto de fazer é, a partir do que meus alunos escrevem, indicar livros que se relacionem com o que eles trazem em termos de estilo, de temática, de estrutura. Acho que o papel do professor é mostrar alguns dos caminhos possíveis da escrita e da leitura, mas não tem como saber com antecedência qual o caminho de cada aluno. Em termos muito objetivos de incentivar a escrita, me parece que os exercícios rápidos com proposta objetiva e tempo cronometrado funcionam mais do que sugestões genéricas. “Escreva tudo que você acha que acontece na cozinha da sua casa durante um dia” é um exercício que funciona melhor do que aquela clássica redação da minha época sobre como foram as férias.

Educação em Pauta – Teu romance Ela se chama Rodolfo aborda a amizade. Qual a importância dos teus amigos para seguires produzindo literatura?
Julia Dantas – Absoluta, não apenas porque os amigos dão sentido à vida, mas porque são meus primeiros leitores, meus maiores incentivadores, e as pessoas que ajudam a sustentar essa escolha de um trabalho artístico num país que não valoriza os criadores de cultura.

Educação em Pauta – Fale um pouco sobre os teus projetos literários. Há possibilidade de os escritos sobre a enchente se transformarem em livro?
Julia Dantas – Ainda não sei, acho que é cedo para entender qual a dimensão desse projeto. Ainda nem entendemos a dimensão da enchente, não sei qual vai ser a resposta literária a tudo isso. Percebo, nos meus alunos de oficina, que a enchente já começa a aparecer em contos e crônicas, então me parece que haverá muita gente transformando esse trauma coletivo em literatura. Da minha parte, o tempo vai dizer. Esse ano vou focar em recriar minha casa e no lançamento do meu novo romance que está prestes a sair pela editora Dublinense. Depois disso, acho que vou conseguir entender melhor o que quero fazer com esses escritos.

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