Ainda sem regulamentação, homeschooling tem “mercado paralelo”
Empresas oferecem produtos e serviços para suporte ao homeschooling, que ainda não foi sancionado pelo governo federal. Especialistas contestam legalidade da prática e alertam para os riscos de acesso a materiais sem qualquer regulamentação ou avaliação dos órgãos competentes
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Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com
Publicado em 27/06/22 às 07:00 - Atualizado em 27/06/2022 às 07:00
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Ainda em tramitação no Congresso, o tema do homeschooling já despertou um mercado considerável no Brasil. Pelo menos é o que sugerem os resultados em uma rápida busca na internet: diversas plataformas oferecem apostilas, cursos, acompanhamento e mentoria para a oferta da modalidade, seja por meio de tutores trabalhando diretamente com os estudantes ou mesmo a capacitação das famílias. Como a prática carece de aprovação e sanção do governo federal, o homeschooling ainda se configura como uma atividade ilegal.
Marcele Frossard, assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), entende que produtores de conteúdo e famílias educadoras têm desenvolvido estratégias para driblar a legislação, visto que a modalidade não é autorizada no país. “Ressaltamos que algumas dessas práticas podem significar a desproteção de crianças e adolescentes”, alerta.
Para ela, a oferta de materiais didáticos, a propagação de cursos para pais educadores, como se autointitulam os responsáveis que já educam nesta modalidade, são alguns dos exemplos do que será legalizado com aprovação da educação domiciliar. “Estes materiais não seguem normas ou prescrições legais, não são produzidos por profissionais especializados nos temas ou que sejam reconhecidos enquanto tal, demonstrando que será difícil a avaliação e fiscalização destes produtos educacionais”, sustenta.
Os resultados que aparecem facilmente nos sites de busca variam um pouco de linguagem. Alguns são mais incisivos na defesa do homeschooling, empregando o termo sem receio. Outros tergiversam um pouco, mas oferecem o mesmo tipo de serviço ou produto.
O crescimento na oferta desses produtos demonstra que há um interesse de mercado na aprovação do homeschooling, segundo Marcele. E, se essas produções não são reconhecidas pelo Ministério da Educação (MEC) e por outros órgãos responsáveis, não são legais. “Estes materiais, portanto, são atestados do que estamos denunciando a respeito da relação entre educação domiciliar e privatização da educação, bem como a relação entre educação domiciliar e a possibilidade de ter condições socioeconômicas para escolher esta modalidade”, observa.
Marcele garante que o discurso nem sempre explicitado pelos defensores da modalidade afeta o conceito da educação como bem público e também abre esse mercado altamente lucrativo para produtos educacionais. “A educação domiciliar inflige a democracia, pois defender a educação domiciliar é negar que a educação está diretamente relacionada com a formação de uma sociedade plural e mais inclusiva, que aceita as diferenças e a diversidade de concepções. A educação domiciliar, portanto, é contrária à própria democracia”, acredita.
O vice-presidente do Sinepe/RS, Oswaldo Dalpiaz, chama atenção para o fato de que não bastaria nem mesmo a aprovação do assunto pelo Congresso, ou mesmo a sanção presidencial: há necessidade de regulamentação. “A lei é muito abrangente, não é específica. A definição dessas regras vai demorar um pouco”, acredita. Segundo ele, a preocupação está justamente na legalidade da ação. Empresas, profissionais e editoras estão se propondo a vender um produto cujo objeto ainda não existe e tampouco se sabe como vai funcionar. Por tudo isso, considera uma ação temerária até mesmo para quem compra neste momento.
O apelo das ofertas faz referência a metodologias que evitam doutrinações políticas ou religiosas, garantem foco integral no estudante, de forma individualizada, e citam a socialização como uma das ferramentas. No entanto, alguns trazem cunho religioso até mesmo no nome, sugerindo justamente uma formação religiosa – mas, segundo as propostas, dentro do que a família julga ser o melhor para a criança ou adolescente.
Marcele Frossard concorda que a falta de regulamentação ou controle por parte dos órgãos competentes tem como risco a difusão de conteúdos contrários à formação científica e pedagógica. Na educação por homeschooling, qualquer pessoa estará apta a fazer o papel do professor, fazendo com que esse trabalho nem sempre seja desenvolvido por alguém capacitado, com formação para a função. “Por outro lado, não há garantias de que os órgãos competentes conseguirão efetuar o controle tanto da modalidade de ensino, quanto dos materiais e práticas com os quais se relaciona”, antecipa, pensando em uma eventual aprovação do tema.
Outro risco é lembrado por Dalpiaz: vender um produto que não terá aplicabilidade diante de uma possível regulamentação – do Conselho Nacional de Educação, por exemplo – e a consequente frustração das famílias e dos próprios alunos, caso adquiram um material que depois não será considerado, em termos de aprendizagem.
Segundo o projeto de lei, mesmo que os alunos estudem em casa, sob a tutela da família, ainda ficariam vinculados a uma instituição de ensino formal – responsável por atestar a evolução, mediante avaliações. Não está prevista a obrigatoriedade de acompanhamento seguindo os materiais didáticos da respectiva instituição.
Para Marcele Frossard, o mais provável é que essas famílias optem por videoaulas, cursos e materiais didáticos produzidos por pessoas e empresas que não são reconhecidas pelo campo educacional brasileiro e que visem a aprovação nas avaliações anuais previstas no projeto de lei. Consequentemente, sem atenção a outros pilares da educação e aprendizagem que são amplos e complexos, envolvendo a socialização e a formação para o convívio e participação em uma sociedade democrática. Quanto a isso, Dalpiaz também externa preocupação. “Em que nível se coloca esse material? Ele tem preocupação didático-pedagógica de observar as idades, o momento da aprendizagem da criança?”, questiona.
Por tudo isso, é importante que os gestores e educadores mantenham diálogo com as famílias. A orientação deve ser no sentido de que estes materiais não estão de acordo com as normas educacionais do país e que devem buscar apoio em fontes confiáveis e regulamentadas, condizente com o conhecimento pedagógico e científico.
Atenção individual é relativa
Se um dos apelos para a difusão do homeschooling é a atenção individualizada aos alunos, soa contraditório que o ensino tenha como fio condutor um material desenvolvido genericamente, sem levar em consideração nem mesmo a região em que o estudante vive. “Claro que servirá de guia para os pais. Agora, se os pais necessitam de um livro que oriente todos os passos, existe muita insegurança por parte deles em relação a isso, se estão fazendo certo, se é conveniente”, pondera Dalpiaz.
Na avaliação de Marcele Frossard, a aprovação da educação domiciliar causaria o aprofundamento das desigualdades sociais e educacionais, que já considera imensas. Entre os principais impactos ela inclui “o estímulo à desescolarização por parte de movimentos ultraconservadores e multiplicação dos casos de violência e desproteção aos quais estão submetidos milhões de crianças e adolescentes”.
Como está o projeto
Aprovado na Câmara dos Deputados, o projeto de lei que autoriza a educação domiciliar está, agora, no Senado Federal. Estão previstas pelo menos seis audiências públicas para debater o assunto, na Comissão de Educação, sob aspectos como a relação do homeschooling com o direito à educação, o impacto da regulamentação para o ensino privado e a implementação à luz do Plano Nacional de Educação (PNE) e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)
Marcele Frossard ressalta que a CNDE é contrária à aprovação. “As crianças são prioridade absoluta na Constituição Federal de 1988 e a legislação não pode ser plenamente cumprida sob a educação domiciliar, que coloca em risco de desproteção crianças e adolescentes”, defende, lembrando que grande parte dos casos de violência e abuso sexual e de trabalho infantil acontecem dentro do ambiente familiar e doméstico. “Caso se autorize a educação domiciliar, o risco se agrava, pois são reduzidas ainda mais as perspectivas de contrapesos para controle, identificação ou proteção dessas crianças e adolescentes”, projeta.
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