Digitalização e backup preservam a memória institucional das escolas
Enchentes que atingiram o RS danificaram arquivos de escolas, que agora se reinventam e buscam alternativas para preservar registros históricos
“Se queres prever o futuro, estuda o passado”. A célebre frase do filósofo chinês Confúcio reforça a percepção de que a análise de eventos ocorridos possibilita a compreensão dos fatos que influenciaram o presente e que vão ajudar a moldar o futuro. Essa premissa se aplica ao patrimônio cultural e histórico, mas também é imprescindível para as instituições de ensino.
As cheias que assolaram o Rio Grande do Sul em 2024 destruíram casas, ceifaram 184 vidas humanas e causaram estragos estruturais que ainda podem ser observados em diversos pontos do Estado. Além da mobília e objetos pessoais, as famílias que tiveram suas casas inundadas perderam também parte de suas memórias, que foram levadas em álbuns de fotografia e documentos. O mesmo aconteceu com as escolas que ficaram submersas.
Tendo em vista que eventos climáticos como a enchente do ano passado podem se tornar até cinco vezes mais frequentes até 2100, as instituições de ensino têm voltado o seu olhar para novas perspectivas e possibilidades de preservação da memória institucional.
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A assessora pedagógica e de legislação educacional do SINEPE/RS, Naime Pigatto, destaca a importância de as escolas preservarem os atos legais da instituição, um trabalho paralelo que envolve a direção e a secretaria escolar. Ela aponta que a digitalização é um caminho importante para resguardar os arquivos institucionais da escola e reitera que esse processo precisa respeitar a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Ela também explica a diferença entre arquivos ativo e passivo:
Devido à complexidade e à necessidade de proteger os dados, Naime reforça que a direção deve instituir uma política clara sobre quem é o responsável por mapear, digitalizar e fazer o backup diário dos materiais, o que requer orientação jurídica para o arquivo passivo. Além disso, ela frisa a importância de proteger o acervo institucional.
“Vale destacar que sempre que acontecer uma enchente ou um incêndio, a escola faça um boletim de ocorrência para se preservar. Também é importante fazer a contratação de um seguro para a escola que inclua o seu acervo”, comenta Naime.
Eduardo Borba, jornalista, pesquisador e mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), explica que discussões sobre o assunto geralmente aparecem em datas como 25, 50 ou 100 anos de algum evento, ou em situações traumáticas, como a das enchentes. Para ele, contudo, estamos falando de uma cultura a ser construída diariamente, não apenas evocada em momentos simbólicos ou críticos.
A memória institucional, segundo ele, se desenvolve integrada às políticas de comunicação e de recursos humanos, áreas diretamente ligadas ao registro de informações e à produção de dados sobre pessoas. Esse alinhamento é fundamental para que a instituição consiga consolidar práticas consistentes de preservação.
Ele explica que uma gestão escolar organizada, tanto em comunicação quanto em RH facilita amplamente a criação e manutenção de registros. Ele ressalta ainda a importância do arquivamento adequado e rotineiro, mostrando que o trabalho de preservação começa nas pequenas ações do cotidiano.
Borba pontua que nem todas as escolas têm uma área formal de comunicação, mas sempre existe alguém responsável pelos registros institucionais. Vale lembrar que dados institucionais são sigilosos e, portanto, devem ficar restritos a profissionais específicos como diretor, coordenador e secretário escolar.
“Já houve casos em que o profissional fez uma foto, um texto, salvou no drive que lhe convém, e quando saiu da empresa, seja de forma espontânea ou por demissão, esse material se perdeu, essa história se perdeu. Isso é muito grave”, sublinha o pesquisador.
Borba comenta que, no Rio Grande do Sul, muitas escolas confessionais têm tradições ligadas a fundadores e congregações, e a preservação de suas histórias reforça o sentimento de pertencimento entre estudantes, educadores e comunidade.
“A memória institucional é uma ferramenta de valorização de trajetórias, empatia e compartilhamento de valores. A memória institucional fortalece vínculos com estudantes, profissionais e a comunidade ao redor da escola. Ela é um grande ativo de relacionamento”, diz o pesquisador.
Embora ainda não esteja regulamentada pelo Conselho Estadual de Educação (CEEd), a digitalização de documentos é um caminho possível para ajudar as instituições na tarefa de preservação da sua memória. Eduardo Borba indica que profissionais de comunicação podem ajudar nesse processo, mas ressalta que o suporte especializado é fundamental. O objetivo é garantir acesso aos materiais sempre que necessário, seja para pesquisa, documentação ou comunicação institucional.
Ele observa que cada escola deve escolher a solução de armazenamento que melhor se encaixe em suas condições, seja um site, uma nuvem ou banco de imagens. O mais importante é compreender a memória como instrumento de relacionamento e preservação da cultura institucional. Ele também reforça a importância de manter registros constantes de estudantes que se destacaram e se tornaram profissionais reconhecidos.

Às vésperas de completar 200 anos, que serão celebrados em 2026, o Instituto Rio Branco, de São Leopoldo, no Vale do Sinos, trabalha na reconstrução de parte de suas memórias que foram levadas pelas águas no ano passado. Localizada no centro da cidade, a escola, que é a instituição privada mais antiga do RS, ficou submersa por semanas durante as cheias de 2024, período em que atas, fotos e livros foram completamente destruídos pela enchente.
O coordenador administrativo-financeiro da escola, Ricardo Dall’Olmo, comenta que a enchente do ano passado não foi a única ocasião em que a escola perdeu parte do seu acervo. Durante a Segunda Guerra Mundial, muitos documentos da escola já haviam sido eliminados. Em 2016, quando a escola completou 190 anos, foi feito um levantamento em que foram reunidas diversas fotos e livros contábeis datando de 1910 a 1915, além de registros de empregados. Nas buscas, contudo, não foram localizados registros anteriores a 1940. Na enchente de 1941, que se assemelha em proporção a do último ano, alguns registros também foram perdidos.
A diretora do Instituto Rio Branco, Taciana Feldmann, e a coordenadora pedagógica Renata Rabuske explicam que, antes da enchente de 2024, havia muito material guardado na secretaria, tanto em arquivos de aço e estantes de um “arquivo morto” próximo às salas da direção, quanto no balcão de atendimento, onde ficava a documentação mais atual de alunos e funcionários. Tudo foi perdido com a enchente. Além disso, 60% do acervo da biblioteca, onde também havia registros históricos da escola, se perdeu. Agora, a escola estuda possibilidades para preservar o que restou e garantir a memória dos anos que virão.
“Estamos começando a ter mais arquivos digitalizados, algo que é difícil também pelo dia a dia da escola. Hoje, temos alguns documentos preservados que ficam num apartamento alugado aqui na comunidade evangélica. Ali, ficaram preservados históricos escolares de alunos e algum material de departamento pessoal”, diz Ricardo Dall’Olmo.
Além da digitalização de arquivos, outra medida que a escola pretende adotar quando se reerguer economicamente é a realocação da biblioteca no segundo andar, para garantir a segurança do acervo no caso de nova enchente. Para a celebração dos 200 anos, o Instituto Rio Branco recorreu aos arquivos do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, que também iniciou um processo de digitalização do seu acervo.
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