Escolas investem em políticas para regular uso do celular em sala de aula

Com o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, o Educação em Pauta verificou o que pensam os especialistas da área do ensino e como os colégios encontraram soluções

por: Eduardo Wolff | eduardo@padrinhoconteudo.com
imagem: Freepik

Tão presente no dia a dia, o celular possui múltiplas funções que facilitam a vida de todos e, inclusive, é uma importante ferramenta para a aprendizagem. Contudo, uma grande discussão gira em torno de quanto esse dispositivo pode interferir na atenção dos jovens durante o período escolar, o que tem motivado a criação de políticas de boas práticas.

Segundo recomenda a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), crianças menores de dois anos de idade não devem ser expostas a telas, enquanto aquelas entre dois e cinco anos devem ter o tempo de tela limitado a, no máximo, uma hora por dia. Já na faixa entre seis a dez anos devem utilizar telas por até uma a duas horas diárias. Por fim, crianças maiores e adolescentes, entre 11 e 18 anos, não devem ultrapassar o tempo limite de três horas de tela por dia, incluindo o uso de videogames. 

Em paralelo a isto, o uso dos celulares nas escolas é pauta recorrente no Congresso Nacional, sendo que, em outubro deste ano, o projeto de Lei 104/15 foi aprovado pela Comissão de Educação. A proposta é que a utilização do aparelho seja proibida, inclusive no recreio, para crianças de até dez anos. A partir dos 11 anos, o uso fica autorizado, em sala de aula, para fins pedagógicos e didáticos. Este projeto ainda requer análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e, para virar lei, a proibição precisa ser aprovada pelos deputados e pelos senadores.

Um Estado que está avançado neste tema é São Paulo. O plenário da Assembleia Legislativa local aprovou o projeto de lei, no dia 12 de novembro, que proíbe a utilização de aparelhos celulares por alunos das escolas públicas e privadas. A proposta ainda irá para a sanção do Governador de São Paulo.

E o que pensam os especialistas em educação?

Na visão da especialista em psicopedagogia e professora da UniRitter, Denise Ceroni, a simples proibição na sala de aula não vai contribuir para educar as crianças e os adolescentes. “O movimento de pesquisa na internet é incrível. O que precisamos pensar é qual o uso pedagógico e o que fazer com a tecnologia”, indaga. 

Denise salienta que os smartphones possuem uma enorme capacidade de recursos para desenvolver o conhecimento dos alunos. E, para que isto seja possível, é essencial formar os professores para que entendam o papel pedagógico dessa tecnologia. “Além disso, é preciso potencializar as escolas para que tenham uma estrutura de qualidade e técnicos que entendam sobre os mecanismos digitais”, complementa.

Para ela, é o momento de reunir o corpo docente, conversar sobre o tema e ampliar a informação sobre os recursos existentes. “Os jovens sabem muito mais de tecnologia e conseguem fazer muito mais coisas do que os adultos. Está na hora de aprender com eles também”, acredita.

Já a pedagoga e coordenadora de programas de formação continuada da Sociedade Educacional de Três de Maio (Setrem), Adriana Fátima Canova Motter, resgata que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresenta, enquanto competência geral, o desenvolvimento ou a construção de uma cultura digital. “É muito importante no que se trata no campo da educação o uso dos celulares, da tecnologia, da informação nas escolas. Ela sempre foi um motivo de preocupação e possibilidades”, salienta.

Adriana entende que existem os riscos, principalmente quanto à atenção, bem como as relações entre os alunos. “As crianças precisam desenvolver interações reais e vividas, como questões psíquicas, emocionais e de linguagem”, reforça.

Na sua percepção, é preciso pensar, inclusive, não só no aluno, mas na gestão do uso do celular pelo professor, o que passa pela capacitação dos educadores. “É a construção da cultura digital. É entender quais são as finalidades, os usos e as possibilidades. Os professores precisam dessa formação, pois também desejam criar estratégias. Da mesma forma, é necessário desenvolver trabalhos de conscientização com alunos e famílias”, comenta.

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E como foram as experiências de algumas escolas?

No caso do Colégio Dom Feliciano, de Gravataí, a regulação do uso dos celulares não foi algo simples de se tratar, muito menos de fácil decisão. É o que afirma a coordenadora pedagógica da instituição de ensino, Carla Cardoso Fonseca. 

Ela justifica que, na época em que foi definida a criação da política, em 2023, não havia exemplos no Rio Grande do Sul para se inspirar. Para isto, o modelo adotado foi de escutar a comunidade escolar e colher informações. E, para realizar esta articulação, uma comissão especial foi encarregada por planejar as ações.

Aliás, em decorrência do início da pandemia, já havia sido detectada uma grande dificuldade dos professores em lidarem, em sala de aula, com o celular para fins não pedagógicos. Antes da Covid-19, Carla conta que havia um trabalho sobre as tecnologias no ambiente escolar como algo que proporciona muitos ganhos quando utilizado da forma correta. “Sempre nas formações existe essa reflexão, de quais são os limites do uso do dispositivo. Os professores entenderam as necessidades e qual era o papel deles também nesse momento”, lembra.

Para coletar os dados foi elaborado um formulário em que, primeiramente, foram ouvidos todos os professores. Nele, constavam as dificuldades que estavam sentindo e qual seriam suas opiniões em relação à escola criar uma política de uso dos celulares. “Tivemos a participação massiva deles, todos queriam dar opinião. Assim, categorizamos as respostas, vendo quais eram os principais desafios de fato e os entraves para o processo pedagógico. Eles foram unânimes de que precisavam da ajuda da escola”, conta.

Posteriormente, foram escutados os estudantes, representados pelo Grêmio Estudantil do colégio, que relataram, principalmente, o quanto o uso dos celulares afetava suas atenções. “Eles se mostraram muito maduros, disseram que sozinhos não conseguiriam. Comentaram que, se estivessem com o aparelho no bolso ou na mão, não teriam controle”, diz.

Outros atores envolvidos foram os familiares, representados pelo Conselho de Pais. Com eles foram captados depoimentos sobre as dificuldades em casa para regular o controle do celular e o que achavam a respeito da criação de uma política específica.

A partir deste movimento de escuta e categorização dos dados, a política foi desenvolvida, sendo apreciada e aprovada pelo Conselho de Gestão da Unidade. Dentro do estudo apurado, a comissão especial tratou o assunto com caráter de conscientização, sendo um vício o uso imoderado. “Sabíamos que toda vez que se proíbe algo, existe uma grande chance que isso se reflita em um desejo maior de utilizar, por isso seguimos essa linha”, conta. 

Com as indicações da postura do professor e as sanções de não cumprimento da política, ficou estabelecido que a Educação Infantil e os Anos Iniciais não fazem o uso do celular do dispositivo individual dentro da escola. Se precisar levar por motivos especiais, deve ficar desligado em todo horário de aula, dentro da mochila. “A gente entende que a criança não tem essa imaturidade suficiente para gerir esse instrumento”, destaca.

Já no Fundamental 2 e Ensino Médio foram disponibilizadas caixas de madeira, que ficam nas salas de aula, sendo obrigatório deixar o aparelho neste espaço. “Eles não podem fazer a manipulação no horário de aula, salvo a professora liberar para a utilização pedagógica em algum momento”, explica.

A política de uso do celular entrou em prática a partir do início do ano letivo deste ano, em 21 de fevereiro. E, conforme relata Carla, algo que parecia ser mais complexo, não se comprovou. “Acredito fortemente que, embora os estudantes tenham um apego pelo dispositivo individual, entendem o nosso esforço para a formação deles. Eles esperam que nós, como adultos, possamos apoiá-los”, acredita.

No entendimento da coordenadora pedagógica do Dom Feliciano, o estudo levantado, o passo a passo elaborado, as regras claras e o momento de fortalecimento dos pares foram fundamentais para o sucesso desta política. “Os professores definiram suas ações, além de como seria a comunicação com as famílias dos alunos”, completa.

Para a sequência dos trabalhos, em dezembro, ocorrerá uma reunião geral dos educadores em que está prevista uma avaliação e um realinhamento da política do uso do celular na escola. “Como gestão, a nossa ideia é manter as regras exatamente como estão, mas, antes, precisamos entender os desafios que os professores estão sentindo e as possibilidades de ajuste. Gostaríamos muito, em algum momento, de flexibilizar mais o uso do aparelho devido a consciência que os estudantes apresentaram, mas entendemos que ainda não é a hora”, avalia.

Na sala de aula, os estudantes do Dom Feliciano deixam seus smartphones em nichos de madeira, sendo autorizados ao uso a partir da solicitação do professor | Foto: Ana Cristina Cardoso Braum, Divulgação

Outra instituição de ensino que alcançou efetividade em suas práticas foi o Colégio Farroupilha, de Porto Alegre. A assessora pedagógica da instituição, Marília Dal Moro Bing, comenta que, além da criação das políticas de uso de celular, foi realizada uma cultura relacionada. 

Ela comenta que, há muitos anos, o colégio se preocupa não somente com o uso de telas, mas também com a utilização responsável das tecnologias. Para isso, existe o desenvolvimento de uma matriz de tecnologia e computação baseada nos estudos do Centro de Inovação para a Educação Brasileira (CIEB) e também na BNCC e nas discussões que são realizadas com os estudantes no componente curricular. 

Segundo Marília, esta preocupação do uso do aparelho vem desde as crianças da Educação Infantil e o colégio segue as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Sociedade Brasileira de Pediatria. “O uso intencional da tecnologia é necessário nas escolas, faz parte do currículo e do desenvolvimento das habilidades desse século. Mas, este uso precisa ser controlado e intencional”, salienta.

Esta implementação mais focada no combate excessivo do uso do celular começou no início do ano letivo de 2024. Ficou estabelecido que na Educação Infantil e nos Anos Iniciais, as crianças não trazem e, se precisar carregar o aparelho, acontecerá em momentos pontuais.

Já nos Anos Finais e no Ensino Médio, foi preciso uma intervenção mais assertiva, proibindo o uso na sala de aula. “O sexto e o sétimo anos, inclusive no recreio, não utilizam, mas os maiores têm a orientação para não usar, mas ainda não é uma proibição”, destaca. 

Para ser viável essa mobilização, foram feitas diversas conversas com os alunos, enfatizando o porquê do uso controlado e, posteriormente, foi realizado um trabalho de ajudar os estudantes nesta autorregulação. “O ambiente escolar é onde se privilegia a boa convivência, da cultura do brincar, e das relações presenciais. Passamos muito isso para os estudantes, que estão para vivenciarem o presente. Quando estão no celular, não conseguem fazer isso, porque estão dispersos”, declara. 

Conforme ressalta Marília, o próprio relatório do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) é utilizado pelo Farroupilha para seus fundamentos teóricos em conversas com professores, estudantes e famílias. Também como forma de sustentação à política de uso do celular, ela está inserida no Código de Conduta e Convivência da escola, em que salienta que a utilização de forma inadequada pelos estudantes acarreta em medidas disciplinares. “Existe a conversa com eles, mas também é preciso um movimento mais interventivo para fazer essa regra ser cumprida”, aponta.

A assessora pedagógica do colégio destaca que os estudantes, em modo geral, estão mais conscientes. Ela comenta que os jovens estão vivenciando diferentes momentos nos recreios, quando não usam seus aparelhos. “A nossa avaliação é muito boa, de que é um caminho que precisamos continuar firme. É investir tempo em ações de todos os lados, com os estudantes, a família e os professores”, avalia. 

Em relação às melhorias previstas, Marília adianta que serão intensificadas as discussões com as famílias, não só no formato presencial, como no online, sendo um canal o programa Cuidar é Básico. “O desafio é como fazemos esse combate excessivo ao uso das telas também na hora do recreio. É um movimento de construção que faremos junto com os estudantes”, projeta.

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