Ambiente acolhedor é o caminho para combater a violência escolar
Reforço de canais de diálogo e exercícios de reflexão contribuem para um bom clima interno e podem prevenir conflitos
Diante dos recentes ataques em escolas brasileiras, uma realidade nova por aqui, muitas dúvidas surgiram entre gestores, educadores, estudantes e familiares. Como agir em casos assim? Com que idade se pode começar a ter essa conversa? Esses e outros questionamentos passaram a residir no consciente e no inconsciente coletivo.
Uma das correntes de pensamento que tentam combater esse problema vai no caminho da prevenção. Ou seja: é muito melhor refletirmos sobre como evitar do que “apenas” minimizar danos depois de acontecer. Obviamente, evitar episódios extremos e estar preparado para uma eventualidade não são coisas excludentes, mas a abordagem se concentra na primeira.
“O papel de cada ente é trabalhar dentro de sua esfera de atuação, tendo sempre o mesmo norte, definido pela escola. Famílias, alunos, professores e gestores devem estar conectados. A família julgando menos a escola, e também a escola julgando menos a família”, defende a promotora Luciana Cano Casarotto, coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP/RS). Segundo ela, isso é alcançado com diálogo aberto e permanente – e também entendendo as necessidades dos professores neste momento.
A disponibilidade para o diálogo faz com que futuros problemas cheguem ao conhecimento da direção e das famílias antes de uma eventual crise. A exigência de formalizações, muitas vezes, impede que esse fluxo de comunicação se estabeleça. A relação de confiança ajuda a combater crises na raiz do problema.
Uma preocupação dos especialistas é como esse diálogo se apresenta e de que forma ele se desenvolve. Para ajudar nessa questão, o MP/RS lançou o documento Escolas e Violências: Precisamos Falar Sobre Isso, compilando dicas para que cada ente faça sua parte em um ambiente propositivo, franco e transparente ao redor da comunidade escolar.
Autoconhecimento
Mas para que tudo isso tenha convergência, é preciso também cuidar das pessoas. Ou, melhor ainda, ajudá-las a promover o autocuidado.
Especialista em psicologia transpessoal, Luciana Bueno Santos é facilitadora do desenvolvimento humano e palestrante de gestão de autocuidado e saúde integral, que faz o alinhamento de corpo, mente e alma. Com experiência em capacitação escolar, ela observa que esse processo de autogestão pessoal é muito incipiente.
“Tenho escutado depoimentos de pessoas que não conseguem entender a proposta. Gostam do que falo, mas não sabem como adotar. Então, me dá a sensação de que a prática de autoanalisar-se ainda se dá muito na necessidade da dor. Se tiver crise de pânico, ansiedade, algum movimento pessoal na vida, vou introduzir isso. Senão, não tem importância”, pontua Luciana Santos.
Por onde começar
O despertar da consciência passa por algum tipo de prática. Alguns optam pela caminhada, outros buscam atividades esportivas na água, na academia, enfim. As atividades rotineiras não deixam de sê-las, mas ganham contorno mais leve e integral.
“Não adianta fazer tudo isso cansado, vivenciando essa onda que a sociedade impõe, que a gente não pode dizer não. Devemos perceber nossas limitações, ter a capacidade de olhar para nós mesmos e também de acolher, entender quando não temos competência para determinada ação, que podemos pedir ajuda para um colega ou outro profissional. Aceitar-se é acolher-se”, define Luciana Santos.
Assim como sugerido pela Monja Coen em conversa com o Educação em Pauta, a prática do autoconhecimento começa com a incorporação de atos bastante simples na rotina. A começar pela respiração.
“Quando paro no começo do dia para um momento de silêncio, sentar e colocar um timer no meu celular, cinco minutinhos para tomar um chazinho, sentar em frente a uma janela, ver o céu, como está o tempo, a gente vai percebendo as nuances do dia a dia”, concorda.
Essa pausa antes de ir para a escola e se deparar com as questões inerentes à profissão ajuda a harmonizar o ambiente. A sugestão é que essa iniciativa parta das equipes de coordenação, introduzindo técnicas de autocuidado na capacitação profissional, pois o professor tem de criar vínculo com os alunos, mas para isso precisa criar, antes, consigo mesmo.
Comunicação não violenta
Uma forma eficiente de preservar o ambiente, em geral, e o escolar, em específico, é usar a comunicação não violenta (CNV). Trata-se de um método desenvolvido pelo psicólogo norte-americano Marshall Rosenberg, com o intuito de estabelecer um processo comunicativo mais acolhedor e compreensivo.
Ele partiu da premissa de que a base da violência está no uso da linguagem. Desenvolvida ao longo de milênios, a linguagem humana ganhou um aspecto que ele chamou de alienante, ou seja, que afasta as pessoas ao invés de uni-las.
– A base da linguagem alienante está no uso do verbo “ser”, o primeiro que se aprende na escola. Ele tem caráter permanente e quando uso para uma pessoa estou ligando a uma qualidade, gerando caráter permanente na minha mente em relação àquela pessoa – explica o facilitador em comunicação não violenta e especialista em gestão de pessoas Jéferson Cappellari.
O uso de linguagem alienante leva à criação de rótulos e diagnósticos, que na estrutura terapêutica fazem todo sentido, mas não se aplicam ao dia a dia. No momento em que se rotula alguém, essa pessoa passa a ser vista sob aquele aspecto e o viés de confirmação, explicado pela psicologia, faz com que se reforce cada vez mais tal imagem.
A CNV é formada por uma série de conceitos, análises e aplicações. Mas é possível começar com medidas simples, como a troca de um rótulo por uma necessidade.
Em vez de:
– Vocês são bagunceiros.
Pode-se optar por:
– Estou preocupado (a) com nosso conteúdo. Preciso de silêncio por 10 minutos para concluir a explicação.
Essa mudança na abordagem, expondo um sentimento no lugar da repressão e do julgamento, traz o interlocutor para perto de si e cria um espaço de troca, de diálogo, em que ele também entende que pode falar de suas emoções, aflições e, fazendo parte de tudo isso, passa a ser mais compreensivo.
– A essência é falar do que está vivo no coração da gente. Em vez de dar parabéns, dizer o quanto está motivado em ser professor daquele aluno. Quando se diz ao aluno que está assustado ou preocupado com seu rendimento, está falando de sentimentos e emoções, dá uma dádiva para o outro. É melhor dizer como se sente em relação ao comportamento dele, em vez de rotular – exemplifica Cappellari.
Uma vez estabelecido esse ambiente, a tendência é que ele se retroalimente. O ambiente acolhedor estimula o mesmo comportamento em quem chega, assim como pode repelir quem não tem essa predisposição. Com o tempo, os casos de bullying, agressões verbais ou físicas e a violência, como um todo, tendem a diminuir.
Ciranda de bem-estar
O trabalho de formação deve ser permanente. Pouco adianta fazer um seminário, passar várias horas falando sobre gestão de autocuidado ou CNV, se depois não forem implementadas práticas e dado espaço para que elas se concretizem. Rodas de conversa, reuniões para compartilhar sentimentos, observações do cotidiano, tudo isso ajuda, mas acaba prejudicado pela falta de tempo ou de condições. “A própria escola, envolvida com outras demandas, acaba não promovendo esse espaço”, alerta Luciana Santos.
É preciso ter um método para acolher o professor. Uma vez acolhido, ele torna o grupo mais coeso e fortalecido para acolher os estudantes. É neste ponto que ele consegue perceber onde estão as lacunas de comunicação e alcançar esses alunos e, consequentemente, as famílias. É assim que se consegue entender até mesmo quais as demandas a serem resolvidas nessas relações.
Para a promotora Luciana Cano Casarotto, o que se busca é “um ambiente que acolha efetivamente, proporcione o debate entre alunos e professores. Um ambiente seguro, onde possam ser colocadas as ideias. Esse é o nosso caminho para solucionar essa questão em que estamos mergulhados atualmente”, sustenta.
Formas de fazer
Promover atividades de integração com pais e alunos é uma das principais maneiras de reforçar vínculos e promover o ambiente aberto de diálogo. Trazer temas em alta na sociedade para serem debatidos em conjunto é uma das formas de se conectar com os mais jovens.
Luciana Santos dá como exemplo a personagem Karina, da novela Travessia, exibida pela Rede Globo. Ela é vítima de um golpe de pedofilia, no qual um pedófilo se faz passar por uma personalidade para se aproximar e depois praticar chantagens.
“O tema veio muito à tona. Acompanhei escolas que fizeram rodas de conversa com especialistas para falar sobre o perigo das redes sociais, chamando os responsáveis, inclusive de outras instituições de ensino. O ingresso era 1 kg de alimento, doado para entidades de caridade”, exemplifica.
Essas oportunidades são percebidas a partir do momento em que a escola faz o mesmo que se espera de todos que nela convivem: olhe para dentro. As pessoas demandam, sugerem, mostram vulnerabilidades. A escola estando presente, vira coautora desses espaços e trabalha na construção e no reforço do vínculo.
A forma de fazer varia conforme a realidade de cada instituição, já que há escolas com 3 mil alunos e outras muito pequenas, em cidades com hábitos distintos. De qualquer forma, a solução sempre passa pela prevenção, muito mais do que pela reação. “Depois de instalada a crise, fica muito mais difícil. Essa prevenção é onde estamos apostando que vai se chegar a uma solução mais eficaz”, conclui a promotora Luciana Cano Casarotto.
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