Comer, dormir e brincar: os cuidados da Primeira Infância na Educação

Especialista no assunto, Sylvia Nabinger fala sobre as experiências da pediatra húngara Emmi Pikler e sua importância para o processo de formação dos educadores infantis

por: Bianca Zasso | bianca@padrinhoconteudo.com
imagem: Freepik

O toque cuidadoso na hora da troca de fraldas parece mais um entre tantos carinhos que ocorrem entre a mãe e o bebê desde os seus primeiros meses de vida. É com esta mesma delicadeza que eles devem ser tratados nos berçários por professores e cuidadores. E é a ciência que explica isso. A pediatra Emmi Pikler foi uma grande educadora do século XX e sua visão influenciou (e ainda influencia) os cuidados com a primeira infância, especialmente dos zero aos 3 anos de idade. Sua ideia do brincar livre, em que a criança se movimenta e interage com objetos com liberdade e segurança é um dos pontos mais divulgados pela chamada abordagem Pikler, que guia propostas educativas desde as experiências realizadas pela médica húngara no Instituto Lóczy, na cidade de Budapeste. 

Fundado em 1946, o instituto acolhia crianças órfãs e foi dirigido por Pikler por mais de 30 anos. Foi lá que ela colocou em prática suas técnicas criadas a partir da observação do processo de desenvolvimento de sua própria filha. Ou seja, antes de ser educadora, foi o olhar de mãe da pediatra que a despertou para uma visão diferente dos processos infantis. 

Presidente da Associação Pikler Brasil e assistente social aposentada do Juizado da Infância de Porto Alegre, Sylvia Nabinger conheceu a experiência de Emmi Pikler durante seu doutorado em direito de família, realizado em Lyon, na França. 

“Na época em que Pikler estudou pediatria em Viena, na Áustria, havia uma inquietação muito grande quanto ao tratamento das crianças em ambientes coletivos. Há relatos de professores que baixavam a nota dos alunos caso o bebê chorasse durante a consulta. A construção dela foi, inicialmente, numa prática privada, por ser judia e não poder trabalhar em espaços públicos, no período da guerra”, lembra. 

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Após o término do conflito mundial, Pikler foi convidada para capitanear um serviço que acolhia crianças que perderam os pais ou foram abandonadas. Foi quando a médica percebeu a importância dos três primeiros anos de vida para o fortalecimento dos vínculos de confiança, já que é o momento em que o cérebro está “aprendendo a aprender”. 

“Hoje, a neurociência demonstrou que ela estava certa. Pikler quis proporcionar àquelas crianças o que havia de melhor nos cuidados cotidianos. E percebeu que as atitudes dos adultos eram essenciais para a formação de um apego tanto seguro como inseguro. Pois eles criam, dentro do cérebro de um bebê, um modelo operacional de funcionamento que vai deixar marcas para sempre. É como uma impressão digital”, explica Sylvia. 

As bases da filosofia pikleriana

O primeiro ponto valorizado por Emmi Pikler era a segurança afetiva. Contrariando uma ideia comum em seu tempo, a de que os bebês preferiam a companhia da mãe por conta dela ser a portadora do leite materno, a pediatra mostrou que era o aconchego do colo que dava aos bebês o conforto, independente de ser realizado pela mãe ou por outra pessoa. 

“Esse afeto é essencial na vida dos mamíferos, principalmente. Temos uma larga escala de pesquisas que mostram a importância desse afeto no desenvolvimento do cérebro humano”, reforça Sylvia. 

O passo seguinte é dar condições para que os bebês desenvolvam suas capacidades cognitivas e motoras. Dentro do ambiente familiar e também escolar, a previsibilidade deve ser um guia. Sylvia destaca que realizar as ações e gestos do cotidiano sempre da mesma forma deve ser guiado por três elementos: o olhar, o toque e a voz. 

“É preciso olho no olho, situando o bebê. Já o toque, o trabalho manual é um treinamento exaustivo por parte de professoras e cuidadores. A mão deve ser leve. Juntamente com esse toque, vem a fala, em tom baixo, doce e pausado, sempre descrevendo o que está fazendo com a criança. Isso faz o bebê se acostumar e, aos poucos, passa a colaborar nessas atividades”, exemplifica a assistente social. 

A primeira infância nas escolas

O tempo passou e as idéias de Emmi Pikler permanecem, instigando pesquisadores e educadores em todo o mundo. Porém, vivemos uma outra realidade: as crianças que antes iniciavam suas atividades escolares por volta dos 3 anos, agora vão para os berçários com meses de vida. A carga horária de trabalho dos pais, inclusive, demanda que muitas delas passem mais tempo nas instituições do que em casa. Eis um desafio extra para os professores, que devem priorizar a observação e organizar o ambiente de acordo com as habilidades de cada aluno. Respeitar a autonomia da criança, explica Sylvia, é o pontapé inicial. Permitir ao bebê que participe das atividades que envolvem a sua rotina, sempre de acordo com a sua capacidade, é de extrema importância. 

“É preciso fazer junto com a criança e não fazer pela criança. Um dos problemas que temos hoje é a velocidade dos cuidados. Os profissionais bons são os que fazem mais rápido. Isso é abominável. É exatamente nesses momentos de cuidados cotidianos que é preciso permitir que esse bebê participe ativamente com todas as suas competências”, avalia. 

A interferência dos adultos no desenvolvimento postural dos bebês também deve ser evitada. É preciso que cada criança, no seu tempo, procure se posicionar, sem a necessidade de atividades de treinamento, como verticalização ou colocar o bebê de barriga para baixo. 

“Adiantar as posturas é adiantar os fracassos. É nessas posturas que o bebê vai realizando as suas sinapses e vai criando segurança psíquica. Emmi Pikler não contava as idades, mas o que cada criança fazia. Hoje, se conta o que a criança ainda não faz, e isso inquieta os pais e eles procuram profissionais para estimular os filhos. Pikler mostra que cada um tem o seu tempo e as coisas não acontecem de forma coletiva”, orienta Sylvia.

Nos cuidados com a primeira infância, cabe ao adulto propiciar que o ambiente seja construído para desenvolver suas habilidades. Suprir as necessidades básicas, como alimentação e higiene, e manter uma rotina previsível, inclusive sobre quem serão os cuidadores. Ao entrar em uma escola, esses profissionais devem ter um período de observação, para conhecer a dinâmica e ser inserido no contexto. 

E o brincar no contexto escolar? Ele deve ser livre, diria Emmi Pikler, e não mais um ponto a ser cumprido no planejamento. 

“O brincar é livre. É como respirar. As professoras não podem interferir nisso. Eles não estão na idade de serem ensinados, eles precisam viver. O trabalho das profissionais é constantemente organizar o espaço e fazer os cuidados cotidianos de excelência, como higiene, alimentação e sono. É preciso fazer isso com muita delicadeza”, sintetiza Sylvia. 

A autonomia da criança se constrói por meio dos cuidados cotidianos desde o início da vida. São eles que darão a capacidade do bebê se tornar, na vida adulta, reflexivos, empáticos e criativos, ao invés de uma pessoa dependente. 

“A base dos conceitos de Pikler é o respeito à personalidade da criança, que vai ditar todas as atitudes que procedem de uma compreensão inteligente das necessidades infantis”, finaliza a assistente social. 

Uma das frases mais divulgadas de Emmi Pikler fala sobre a importância das mãos para os bebês. Mais do que descobrir o próprio corpo, é com elas que eles descobrem as texturas e temperaturas dos objetos, para desenvolver a segurança e darem o próximo passo. 

“No início, mãos são tudo para a criança. As mãos são a pessoa, o mundo.”

Cuidar dessas pequenas mãos para que façam atitudes grandiosas é o trabalho dos educadores.

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