Experiências que aproximam alunos do prazer da escrita
Professores e escolas investem em projetos de leitura e escrita criativa para despertar o prazer de escrever e formar alunos mais críticos e autônomos
Selecionar obras que tragam temas interessantes, organizar rodas de leitura e tornar a biblioteca um ambiente de convivência e de muitas possibilidades. Essas são algumas estratégias que professores e gestores utilizam para mobilizar os estudantes a se tornarem leitores.
O ato de incentivar os alunos a criarem suas próprias narrativas ou mesmo transformarem em crônicas ou poemas assuntos que fazem parte do seu cotidiano é um desafio que tem mobilizado muitas escolas a irem além das orientações das regras exigidas em uma redação de vestibular, por exemplo.
A professora do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Ana Márcia Martins da Silva acredita que não há separação entre ler e escrever, pois ambas as ações estão ligadas. “Aqui na universidade, nossa opção é trabalhar com projetos quando os alunos começam os estágios e, muitas vezes, o resultado final tem a ver com a escrita dos estudantes, como crônicas e contos”, salienta. Entre as muitas experiências vivenciadas pela professora, ela destaca as que aproximam os alunos da escrita partindo da imaginação e de transformar em frases sentimentos e dúvidas que fazem parte do processo do desenvolvimento humano.
Um exemplo é de uma aluna que levou O Diário de Anne Frank e convidou outros estudantes a escreverem seus próprios diários. “Foi algo que começou com a descrição de leituras e vivências e culminou na criação de textos literários. É preciso aproximar os alunos da criação, trazer encantamento para o hábito da escrita”, orienta Ana Márcia. Parte deste encanto acontece quando, de acordo com a professora, a língua portuguesa é trabalhada em sala de aula a partir da leitura e da comunicação, e não apenas com foco na memorização de regras gramaticais. “Quando se fala de escrita, é importante que o aluno se sinta envolvido na atividade e, antes de tudo, feliz em criar”, enfatiza.
Os dados sobre a leitura dos estudantes brasileiros mostram que os livros não se fazem tão presentes na rotina. A última edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro em parceria com o Itaú Cultural, aponta que, em média, os leitores brasileiros de cinco a 17 anos leram 4,3 livros em três meses. Tal número é considerado baixo, já que essa faixa etária estaria em plena descoberta da linguagem escrita. É para fazer com que a lista de leituras cresça que investir em atividades que envolvam leitura e escrita é uma estratégia importante para as escolas.
Diante disso, uma coisa é certa: para escrever, é preciso antes ter acesso a diferentes tipos de textos e linguagens. E esse caminho passa pelos livros. Como explica o professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Escrita Criativa da PUCRS, Altair Martins, só escreve quem lê, e essa obviedade não pode ser esquecida. Os educadores devem pensar também em uma “leitura criativa”, mostrando aos alunos formas de capturar o que um texto autoral está trazendo e casar com elementos das suas próprias experiências de mundo. “É preciso ler como autore também sentir o ato da leitura como um ato de criação”, aponta.
Para Martins, a Escrita Criativa tem surpreendido pela sua força pedagógica. É um instrumento de autonomia em que os estudantes provocam-se a buscar soluções, investigando conteúdos aparentemente distantes de suas realidades. Isso afeta, de acordo com ele, camadas da sensibilidade, da memória e da própria identidade do sujeito. Em uma realidade em que os textos estão cada vez mais curtos, em especial os publicados em redes sociais, e a inteligência artificial (IA) aparece como uma possibilidade para criar narrativas em diferentes formatos a partir de alguns comandos.
O professor acredita que existem duas atitudes possíveis para lidar com a tecnologia quando se quer trabalhar a escrita. Uma diz respeito ao resguardo das antigas técnicas, dentre elas a manutenção do discurso oral, a contação de histórias e escrever à mão, exercício que evoca o ritmo do próprio corpo. Outra deve dar conta de explorar as ferramentas tecnológicas, mostrando que a construção criativa de um prompt, por exemplo. “O resultado é um esboço de um texto razoável e que, ainda assim, parece dependente da gestão humana”, informa.
Com um olhar no futuro, uma escola de Porto Alegre decidiu provocar a criatividade de seus alunos por meio da criação de narrativas curtas, cujo resultado foi parar no local que é o paraíso dos apaixonados pelas letras: a Feira do Livro de Porto Alegre. Há três anos, o Colégio Marista Ipanema organiza atividades junto aos alunos do terceiro ano para a escrita de textos que resultam em um livro. Mas até que chegue o momento dos pequenos escritores distribuírem seus autógrafos na Praça da Alfândega, há um trabalho guiado pela escuta e a observação dos educadores.
A professora Cíntia Trindade Machado explica que os estudantes estão em um momento de consolidação da alfabetização e que o processo que resulta no livro inclui a leitura em grupo, conversas interpretativas sobre o que está sendo lido e a organização de fichas de leitura. “Incentivamos essas atividades para que eles tenham uma melhor compreensão da estrutura narrativa e também temos um cuidado para que a produção dos textos seja algo prazeroso”, explica.
Para a edição deste ano, o livro reúne histórias sobre o universo e cada aluno foi convidado a criar o seu próprio planeta e, inclusive, se colocar como personagem. Juliana Saldanha, coordenadora pedagógica da instituição, lembra que o atendimento é individualizado, onde as professoras conversam com cada estudante para guiar o desenvolvimento de suas ideias.
“É um trabalho de formiguinha, onde buscamos entender o que cada aluno quer construir. Oferecemos um auxílio para que haja um equilíbrio entre criatividade e estrutura narrativa”, destaca Juliana.
A tecnologia surge dentro do projeto como auxiliar, colaborando para os alunos criarem visualmente seus personagens e também por meio de um QR Code que dá acesso a um marcador de página interativo para a publicação final. No entanto, é nos processos analógicos que a escola investe. Cíntia lembra que alguns estudantes começam a escrever fazendo uma descrição de jogos e filmes que fazem parte de seu cotidiano. “Tentamos mostrar para eles que é possível ter uma ideia original a partir dos assuntos que eles gostam e que eles podem criar com liberdade”, aponta a professora.
Alunos do Colégio Marista Ipanema lançaram produção na Feira do livro de Porto Alegre, com conteúdo produzido em projeto que incentiva a criação de narrativas | Crédito: Colégio Marista Ipanema/Divulgação
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Para garantir uma orientação mais assertiva e que esteja atenta aos interesses dos estudantes, é preciso que o professor também realize um trabalho de leitura que vai além do óbvio. Essa é a orientação central da professora do departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e escritora Nikelen Witter. Com mais de 20 livros lançados e vencedora do Prêmio Açorianos, ela acredita que os professores devem incluir a leitura lúdica em sua rotina.
“É preciso um professor-leitor para que se tenha alunos-leitores. Penso que esse profissional nunca deve desmerecer aquilo que seus alunos leem. Isso é um erro capital e vejo ainda muitas vezes ser cometido por educadores. Nenhuma leitura é ruim quando se está começando a entrar no mundo dos livros”, avalia.
Nikelen lembra que qualquer gênero textual têm início, meio e fim e expõe os conceitos básicos para depois desenvolver as ideias sustentadas por esses conceitos. Mesmo no Ensino Superior, a escritora acredita ser de extrema importância o incentivo aos alunos para onde e como procurarem as estruturas de um texto e, assim, compreender melhor o que estão lendo. “Quando se identifica a estrutura e se faz isso muitas vezes, você tem um caminho para a escrita”, orienta a professora.
Com uma visão ampla da leitura e do consumo literário, Nikelen não demoniza o consumo de vídeos de informação e os textos limitados das redes sociais. Para ela, eles são uma forma de leitura compartilhada, hábito que era comum na antiguidade, em que não havia um grande número de pessoas alfabetizadas. A questão é que essa leitura era feita de dois movimentos: o de escutar o que tinha sido lido e o de comentar a história. Esses comentários davam dimensão à informação recebida. Hoje, no entanto, os mais jovens (mas não somente eles) consomem muitos vídeos que têm, para o cérebro, o mesmo valor. As informações importantes vão pra mesma vala comum das opiniões e das piadas.
“Sem o momento de interagir com as ideias, todo o potencial da leitura compartilhada se perde, assim como se perde nossa atenção, nossa memória e os nossos usos funcionais da leitura”, propõe Nikelen. Por isso é crucial que professores sejam leitores. Só assim poderemos ter uma geração de alunos-leitores. Ou, quem sabe, escritores de suas próprias histórias.
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