Instituições alteram rotinas para ajudar os atingidos pelas enchentes
Mesmo aquelas que não foram afetadas diretamente sentem efeitos e fazem campanhas de arrecadação de donativos, destacando senso de solidariedade das comunidades
Ninguém passou ileso pelas enchentes que ainda causam transtornos inéditos ao Rio Grande do Sul. Para se ter uma ideia, as pessoas desabrigadas – que não têm para onde ir – e desalojadas – acomodadas em casas de amigos ou familiares – formariam a segunda maior cidade do Estado, com mais de 650 mil habitantes. Os dados são da Defesa Civil gaúcha, no dia 20 de maio.
Isso sem contar os que foram afetados indiretamente. Nessa conta entra a dificuldade de acesso a determinados lugares, escassez de produtos, remédios, alimentos, combustíveis e toda sorte de avarias em serviços essenciais como redes de telefonia e energia elétrica. A rede de ensino, obviamente, não passou ao largo de tudo isso. Enquanto algumas enfrentaram as águas ou suas consequências, outras quase não foram afetadas, mas nem por isso deixam de ajudar quem mais precisa.
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Jogos solidários
É o caso do Colégio Mauá, de Santa Cruz do Sul. Embora a região tenha sofrido diversos percalços, a cidade passou quase incólume. A estrutura da instituição, que atende quase 2,3 mil estudantes, não teve problemas, já que o riacho que passa perto não teve alterações. Alguns funcionários foram atingidos e alunos que residem em cidades próximas ficaram impedidos de comparecer, por uma queda de barreira. Os dias 2 e 3 de maio foram facultativos, tanto para os estudantes, como para os colaboradores.
No dia 6, a expectativa de retorno seguro se confirmou. Os alunos que não vivem em Santa Cruz ficaram alojados com colegas ou familiares, em função das estradas. Mas a retomada não seria de uma forma totalmente corriqueira. Às vésperas dos tradicionais jogos de integração, a direção optou por fazer da disputa um gesto de solidariedade.
“Temos essa competição, tradicionalmente, no mês de maio. Estamos na 37ª edição e, desta vez, chamamos de Torneio de Integração Solidário. O foco principal ficou na arrecadação de alimentos. Toda a escola é dividida em três grandes equipes, que disputam diversas modalidades, mas o desafio principal era reunir uma tonelada de alimentos, no total”, conta o diretor do Colégio Mauá, Nestor Raschen.
A meta foi superada rapidamente. O torneio ocorreu entre os dias 16 e 23 de maio e arrecadou 6,5 toneladas de alimentos. A competição inclui futebol, basquete, vôlei, atletismo e xadrez. Todas as equipes contam com alunos que vão da Educação Infantil ao Ensino Médio. Os pequenos fazem atividades lúdicas, com foco na integração, enquanto os maiores entram em quadra para buscar pontos para suas equipes.
Os alimentos têm como destino as famílias necessitadas e os hospitais da região. “Ficamos muito felizes com o engajamento da comunidade escolar, especialmente os alunos. Cada equipe tem suas lideranças, que agiram de maneira muito competente para fazer com que os colegas aderissem à campanha”, destaca Nestor.
O diretor vê com satisfação o envolvimento de toda a comunidade escolar. Tendo no esporte uma forma de incentivar a integração e a socialização, assim como uma ferramenta de aprendizado para a vida, fazer do torneio um exercício de cidadania vem a calhar. “Na vitória e na derrota que se aprende muito – talvez na derrota se aprenda mais. Para depois dar conta da vida, de suas escolhas, e para que exerçam sua cidadania solidária na sociedade”, reflete.
Os pais também se envolvem, de todas as formas. Ajudam na campanha e entram em campo. Para que possam participar, algumas disputas são realizadas nos fins de semana. Já os estudantes conciliam a rotina de aulas e provas com os jogos. Entre uma doação e outra.
Foco em necessidades específicas
Com cerca de 700 alunos, o Colégio Gabriel Taborin não sofreu diretamente com as cheias. Aliás, a própria cidade de Marau foi uma das menos preocupantes – ainda assim, contabilizou 50 famílias fora de seus lares. De qualquer forma, a comunidade escolar sentiu-se impelida a agir.
Pais de estudantes que praticam trilhas de carro e moto logo se colocaram à disposição dos munícipes para transportar mantimentos. Eles também mantêm contato com entidades e autoridades de toda a região e, assim, conseguem ter uma noção mais exata das necessidades dos abrigos. Junto com a Defesa Civil de Marau, se tornaram a maior fonte de informação e apoio.
“Iniciamos arrecadando água e produtos de higiene e limpeza. Depois, tivemos uma demanda de fraldas e roupas infantis, para a cidade de Nova Santa Rita. E continuamos. Já fizemos quatro grandes doações e estamos com a escola cheia para fazer mais uma”, conta a diretora do Colégio Gabriel Taborin, Janaina Betineli. Além disso, a festa junina que foi promovida no dia 20 de maio também teve parte da renda revertida aos desabrigados.
Semanalmente, a escola conversa com os trilheiros e a Defesa Civil para saber em que tipo de doações deve focar. Tamanho cuidado se estende aos estudantes, que promovem ações de forma independente. É o caso de uma das turmas do Ensino Médio, que está arrecadando material escolar para crianças e adolescentes que precisam retomar os estudos quando tudo isso passar.
Enquanto isso, alunos do Ensino Fundamental I escreveram cartas e montaram kits com doações para crianças. Bolachinhas, doces e chocolates vão tirar um pouco do amargo que fica em situações como essa. Já as palavras, levarão esperança e carinho.
“Surpreendemo-nos com as palavras bonitas que escreveram para as outras crianças. Assim como é surpreendente como estamos tendo tanta solidariedade em todo o Estado – e no colégio não é diferente. Os alunos se sentem felizes de chegar com alguma doação. É um movimento bem bonito, envolvendo também os professores e toda a comunidade. Vemos os pais preocupados, perguntando sobre a arrecadação. Um interesse geral de todas as pessoas”, enaltece Janaina.
Conexões que fazem a diferença
Em uma Caxias do Sul pouco atingida pelas intempéries, o Colégio La Salle Carmo encarregou-se de encaminhar doações a cidades próximas. Como a região é montanhosa, os deslizamentos de terra causaram mais danos do que o volume das águas, propriamente dito. No entanto, por se tratar de um polo industrial, muitos estudantes e suas famílias são oriundos de outros lugares do Estado.
O coordenador de Pastoral do colégio, Leandro Moterle, conta que várias estão lidando com perdas de amigos, familiares ou bens materiais de pessoas próximas. Para mitigar os danos na sociedade, o grupo de voluntários que já realiza uma série de atividades, chamado Sou Solidário, se reuniu e juntou novos participantes para levar doações aos necessitados.
“Em contatos feitos por meio da Fundação La Salle descobrimos o que era necessário. Esse grupo reuniu as doações e se encarregou das entregas, com seus próprios veículos”, explica Moterle. Onde não era possível chegar desta forma, a mobilização se encarregava de dar um jeito. Por meio de conexões com pais de alunos e instituições próximas, como a Delegacia da Polícia Civil que é vizinha do colégio, o grupo conseguiu levar doações de helicóptero e caminhonetes a lugares isolados.
A onda de solidariedade ensejou a criação de mais um grupo de voluntários, formado por pais e amigos de fora da escola, que lançaram o Comboio Solidário. A iniciativa, que não é vinculada ao colégio, mas é parceira, recebe doações de todo o Brasil, faz a triagem e se encarrega de dar um destino.
Entre as conquistas da rede de contatos acionada pelo Colégio La Salle Carmo estão 100 cozinhas montadas, 100 óculos, com consulta ao oftalmologista, 12 vagas de emprego com moradia e uma carreta de colchões, que veio do Paraná diretamente para a cidade de Canoas. Em outra vertente da campanha, 570 marmitas foram preparadas e entregues. E o próximo passo já está definido: um grupo vai descer a serra para ajudar tanto nos abrigos, quanto nos mutirões de limpeza, também em Canoas.
Tudo isso é fruto de um trabalho permanente feito com os jovens. Moterle explica que cerca de 250 estudantes participam dos serviços voluntários promovidos pela instituição. Em vez de apenas doar itens materiais, eles fazem questão de ir até quem precisa.
“Não é só doar, mas sim se colocar no lugar do outro. Esta foi uma grande preocupação quando começamos a receber as doações. Precisa ter amor, carinho e cuidado nisso. Esse grupo de voluntários separa, monta os kits por tamanho, com itens de higiene e, quando a gente leva, já tem as pessoas certas, a quem entregamos em mãos”, finaliza.
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