A Inteligência Artificial pode substituir o papel do professor?

Recentemente o ex-diretor da Microsoft Bill Gates gerou polêmica ao afirmar que em 10 anos os professores poderão ser substituídos pela IA; especialistas ouvidos na reportagem analisam porque esse cenário é pouco provável

por: Jean Peixoto | jean@padrinhoconteudo.com
imagem: Freepik

O bilionário e ex-diretor executivo da Microsoft, Bill Gates, fez uma previsão impactante em recente entrevista concedida ao comediante americano Jimmy Fallon no programa The Tonight Show da rede NBC. Segundo ele, em apenas 10 anos, a Inteligência Artificial (IA) terá avançado tanto que será capaz de reduzir consideravelmente o papel da humanidade em diversos campos de atuação, como Medicina e Educação, podendo até mesmo substituir os profissionais destas áreas

A afirmação do empresário dividiu opiniões entre pesquisadores e especialistas em Educação que acreditam em uma atuação conjunta entre os professores e a tecnologia para a construção do ensino do futuro. No entanto, é consenso que as transformações tecnológicas já estão presentes no dia a dia das salas de aula e impõem desafios diários aos educadores, que precisam dialogar com uma geração de estudantes cada vez mais hiperconectada. 

Para além da Educação, a tese de Gates também propõe uma reflexão profunda sobre os caminhos que vêm sendo traçados para o futuro do trabalho como o conhecemos hoje. Na entrevista, o empresário disse acreditar que a IA será capaz de resolver problemas trabalhistas contemporâneos como a falta de mão de obra no atendimento médico, por exemplo. 

Gates ainda questionou como os empregos devem se configurar no futuro e projetou que, nas próximas décadas, os humanos estarão mais focados em atividades de lazer como jogar baseball em vez de se preocupar com a organização doméstica ou cozinhar, tarefas que poderão ser realizadas pela IA. 

Educação em debate

Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), o professor e pesquisador Wolney Candido de Melo discorda da percepção de Bill Gates acerca da substituição dos professores pela IA. Para o especialista, o processo de formação está intimamente ligado ao desenvolvimento emocional do jovem e às relações interpessoais que se estabelecem no processo educativo, aspectos que a Inteligência Artificial não seria capaz de abarcar.

Eu entendo que a Inteligência Artificial fornece uma série de respostas de forma rápida, mas ela não tem empatia. Ela não consegue, e acredito que nunca conseguirá, dar conta dos processos emocionais que estão envolvidos na Educação. O processo educacional não é apenas a questão da informação ao estudante, mas sim do processo de formação “, diz o professor.

A pesquisadora e coordenadora do grupo de pesquisa sobre aspectos socioafetivos na Educação a Distância da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Leticia Rocha Machado acrescenta que a IA disponibiliza o conteúdo de forma mais acessível e simplificada, mas não é capaz de abordar as questões sociais e afetivas que envolvem o processo de ensino. 

“O professor em sala de aula sabe como cada estudante está. Sabe apenas de olhar que algo não está bem, que o aluno precisa de um abraço ou uma escuta. Este tipo de competências, chamadas de Competências Socioafetivas, não podem ser compreendidas por uma máquina, elas precisam de uma relação de ser humano com ser humano”, frisa Leticia.

Leia também: 
>> Olhar tecnológico e humanizado será premissa para o trabalho do futuro
>> Os caminhos para a formação de professores em Inteligência Artificial
>> A Inteligência Artificial na prática dentro da sala de aula

Formação continuada 

O professor da USP sublinha que os professores devem se manter atualizados, apostando na formação continuada alinhada com as novas ferramentas. Ele diz ainda que a tecnologia precisa ser uma aliada nos processos de ensino e aprendizagem.

“O que eu entendo é que os professores têm que se preparar, estudar, têm que aprender a desenvolver e a utilizar as técnicas e ferramentas da Inteligência Artificial para trazer isso para dentro da sala de aula. O professor não pode ficar à margem desse processo, senão ele é engolido”, avalia.

Inteligência Artificial como aliada

Em abril de 2024, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo gerou ruído entre professores e pesquisadores em Educação ao apresentar um projeto piloto para utilizar a IA na preparação de aulas e atividades para os alunos da rede pública. À época, a crítica se concentrava no fato de que a forma ideal de integrar a Inteligência Artificial à sala de aula seria apostando na capacitação de professores para usar a tecnologia e não na produção de conteúdo, como o projeto previa.

O pesquisador Wolney Candido de Melo comenta que a IA oferece dispositivos capazes de agilizar processos, como as ferramentas que possibilitam a criação de apresentações em slides com conteúdo pré-definido, por exemplo. Contudo, ele pondera que esse processo precisa ser mediado e revisado pelo professor pois, eventualmente, pode haver divergências conceituais ou informações incorretas inseridas pela IA. Ou seja, o uso da tecnologia não exclui a necessidade da intervenção de um humano. Além disso, ele reitera que a IA é capaz de criar pontes entre o ensino teórico e o prático, transpondo limitações estruturais. 

“Não são todas as escolas que têm, por exemplo, laboratórios de física, química e biologia equipados de tal forma que o professor possa desenvolver uma experimentação. Nesse sentido, a Inteligência Artificial e as tecnologias que nós temos à nossa disposição nos ajudam a trazer simulações para esses estudantes. Eles não têm, muitas vezes, o acesso a um laboratório, mas eles têm acesso a um simulador com o uso da tecnologia. Esse é um ganho para o professor”, sublinha o especialista. 

Tecnologia no ensino

A professora Leticia Rocha Machado, da UFRGS, lembra que a tecnologia sempre fez parte do dia a dia das salas de aula, desde o uso de cartolina, do quadro, da caneta até a chegada dos dispositivos eletrônicos. Contudo, as tecnologias digitais frequentemente são vistas como inimigas do professor ou como uma forma de distração dos estudantes. Ela ressalta que afirmar que a tecnologia substituirá o professor gera receios e medos e que afirmações deste tipo já foram feitas diversas vezes ao longo da história da educação, mas nunca se concretizaram.

“No auge do uso das tecnologias digitais, durante a pandemia de Covid-19, esses recursos acabaram sendo integrados para dar continuidade às aulas, o que funcionou na época e foi descartado em seguida. No entanto, muitos estudos já publicados, sobre diferentes tecnologias digitais, apontam benefícios para diferentes situações como: atendimento de pessoas com deficiência; personalização do ensino; autonomia nos estudos; ludicidade etc”, diz a pesquisadora.

Educação cooperativa

A professora e pesquisadora do Grupo Internacional de Pesquisa Educação Digital da Unisinos, Eliane Schlemmer, diz que a escola, enquanto instituição, precisa se adequar à cultura digital para repensar seus tempos, currículos, métodos, práticas e espaços. Ela caracteriza o modelo de ensino atual como conteudista, focado em apenas transmitir informações aos estudantes, prática que a Inteligência Artificial poderia, de fato, desempenhar sem intercorrências. Por essa razão, ela acredita que a escola precisa ser um local em que os alunos tenham mais espaço para construir os saberes junto dos professores, em vez de apenas atuarem como receptores de informações.

Eliane lembra do caso da David Game College, uma instituição de ensino privada de Londres, no Reino Unido, que implementou um projeto piloto no qual substituiu os professores por Inteligência Artificial para a avaliação dos alunos. Na experiência londrina, a IA foi utilizada para correção de avaliações, auxiliando na identificação de lacunas no aprendizado dos estudantes. A pesquisadora pontua que, apesar do uso de tecnologias como a gameficação e a realidade aumentada, que substituíram a necessidade do professor em sala de aula, o método de ensino aplicado lá ainda é conteudista.

“Esse método reforça uma perspectiva de persuasão, não trabalha em uma perspectiva de cooperação, de cocriação. O uso de uma tecnologia na educação não necessariamente configura uma inovação. No contexto da educação, a inovação sempre é pedagógica”, sublinha a professora. 

Em busca de equilíbrio 

Outra discussão latente entre educadores e gestores de instituições de ensino são os limites para o uso equilibrado da tecnologia em sala de aula. O professor Wolney Candido de Melo lembra da experiência educacional da Finlândia, país que liderava os rankings mundiais de ensino entre 2000 e 2010, mas que passou a apresentar reduções nos indicadores a partir de 2012. Entre as possíveis causas para o fenômeno apontadas por pesquisadores finlandeses, uma das hipóteses seria a “digitalização excessiva” em sala de aula.

Segundo o estudo, programas como o projeto “salto digital”, lançado pelo Ministério da Educação e Cultura finlandês em 2015, que estimulava os alunos a montarem apresentações multimídia ou acessar jogos educativos de leitura e de matemática, poderiam ter contribuído para reduzir o hábito da leitura, especialmente entre os meninos, que tiveram queda mais acentuada nas avaliações. A partir disso, o governo passou a adotar medidas para equilibrar o acesso ao ensino digital e analógico. 

A discussão finlandesa vem ao encontro do debate firmado na esfera pública brasileira acerca da Lei nº 15.100/2025, que proíbe o uso de celulares e outros aparelhos eletrônicos portáteis pessoais durante o período escolar. Para o professor da USP, o celular não deve ser utilizado como meio de distração para o aluno, mas ele pode ser um aliado do professor durante as aulas se utilizado do modo correto, assim como outros dispositivos eletrônicos como tablets, notebooks e chromebooks.

“Eles são aliados importantes, desde que com atividades organizadas e cuidadosamente planejadas pelos professores. Em determinados momentos da aula você pode lançar mão da questão do celular para se fazer uma pesquisa, para acessar um determinado simulador, para uma atividade pedagógica”, pontua o pesquisador.

Soluções tecnológicas para educação

A pró-Reitora de Graduação e Educação Continuada da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), que é doutora em Informática na Educação, Adriana Kampff, elenca alguns recursos que a IA disponibiliza e que podem ser utilizados para qualificar as relações de ensino e aprendizagem.

“No cenário atual, além dos ambientes virtuais de aprendizagem, como repositórios de conteúdos, temos animações, simulações, gamificação, produção de conhecimento por diferentes tecnologias, que vai de um vídeo que eu posso criar a uma apresentação potente, narrada, com hiperlinks. Tudo isso são recursos que eu posso incorporar nos meus processos de ensino e aprendizagem”, exemplifica a pesquisadora.

Ela comenta que um recurso em ascensão é a IA Generativa, que possibilita a criação de imagens, vídeos e áudios do zero, diferentemente da IA Preditiva ou de análise, que tem como objetivo prever e analisar dados existentes. Adriana explica que o uso desse tipo de Inteligência Artificial se popularizou nos últimos três anos e que, embora facilite a produção de conteúdos como textos, requer uma atenção de docentes e estudantes com relação à qualidade e profundidade das informações geradas.

Os alunos já estão utilizando essas tecnologias da educação básica ao ensino superior. É melhor que a gente use problematizando do que deixá-los utilizar de forma desassistida. As crianças usam para fazer seus trabalhos. As famílias podem apoiá-las, acompanhá-las nesse processo, mas especialmente as escolas e os professores. Não seria correto proibir, nem considerar um uso indiscriminado, mas orientar e acompanhar esse uso”, completa.

EdTechs reforçam aprendizados

Focadas em otimizar atividades e processos de ensino e aprendizagem, as EdTechs são startups que oferecem soluções tecnológicas para os mais variados problemas enfrentados por professores e gestores de instituições de ensino. O termo EdTech, inclusive, é uma abreviação para “”educational technology” — tecnologia educacional em tradução livre. 

Karen Sica é coordenadora do Hub de Educação do Tecnopuc (EduX) e professora da PUCRS na área de Comunicação e Marketing. Ela explica que o hub atua para estabelecer conexões entre EdTechs e instituições de ensino, levando soluções tecnológicas a elas. Entre as startups conectadas ao Edux já foram desenvolvidas ferramentas de correção de redações por meio de Inteligência Artificial e de gamificação de conteúdos para sala de aula, por exemplo. 

“O mercado das EdTechs vem crescendo muito no Brasil nos últimos anos. Geralmente são startups focadas em plataformas de ensino, avaliação e gestão escolar. Não se trata de usar a tecnologia por modismo, mas usar com um propósito pedagógico que seja importante para aquele colégio ou instituição de ensino”, frisa.

A coordenadora conta que entre as EdTechs conectadas ao Hub do Tecnopuc há startups que personalizam a aprendizagem, com trabalho focado em inclusão e até mesmo no combate ao bullying.

TAGS





Assine nossa newsletter

E fique por dentro das novidades