Autocontrole: uma commodity cada vez mais escassa

No terceiro artigo da série Ciência e Aprendizagem, André Hedlund fala sobre a necessidade de ajudar crianças e adolescentes a regular suas emoções

imagem: Freepik

André Hedlund, mestre em Psicologia da Educação pela Universidade de Bristol, ex-bolsista Chevening, consultor pedagógico, moderador do  British Council. Leciona Bilinguismo e Cognição na PUCPR, é autor de “O Fator Coruja: Reformulando sua Filosofia de Ensino” e “Estudando com a Ciência da Aprendizagem”. Atualmente, André Hedlund é o líder do grupo de interesse em Mente, Cérebro e Educação do BRAZ-TESOL, criador do podcast “Fator Coruja” e fundador do Learning Cosmos.

A Jeniffer Castro viralizou nas redes sociais por ter se recusado a trocar de assento no avião para acomodar os anseios de uma criança aos prantos e ter mantido a plenitude diante das palavras ofensivas que lhe foram endereçadas. O que muita gente não sabe, inclusive faço mea culpa, é que quem filmou a Jeniffer não foi a mãe da criança exigindo o assento da janela e humilhando a moça. Foi na verdade uma terceira passageira, que perdeu o controle emocional com o ocorrido e decidiu expor para todo mundo ver essa pessoa que, pelo menos sob seu olhar, teria agido de forma cruel, sem empatia e até de maneira nojenta. Esse episódio diz muito sobre o assunto que vamos tratar no terceiro e último artigo da série Ciência da Aprendizagem. Lembrando que o primeiro artigo  fala sobre os limites da nossa memória e o segundo questiona a ideia de facilitar tudo na hora de aprender. Neste, vamos falar sobre o autocontrole.

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Entre razão e emoção: a história de Phineas Gage

Comecemos com a fascinante história de Phineas Gage, uma ilustração relevante sobre a relação entre razão e emoção, como explica António Damásio no seu livro O Erro de Descartes. Gage era um trabalhador ferroviário que sofreu um acidente bizarro em 1848: uma barra de ferro atravessou seu crânio, danificando parte do lobo frontal. Apesar do susto, da perda de um olho e de um buraco visível na cabeça, Phineas Gage surpreendentemente sobreviveu e parecia ter mantido suas funções cognitivas. Sabia quem era, o que fazia e seus conhecimentos e memórias de antes do acidente estavam intactos. 

No entanto, logo notaram que sua personalidade havia mudado drasticamente. O então organizado, responsável e respeitoso trabalhador, tornou-se impulsivo, emocionalmente instável e incapaz de tomar decisões que levassem a bons resultados. Muitos boatos surgiram sobre que fim levou o pobre Phineas Gage. Contudo, uma coisa é certa: seu caso contribuiu muito para o entendimento sobre a relação entre emoção e cognição.

O descontrole emocional e a impulsividade, ou falta de autorregulação ou autocontrole, têm muito a ver com uma região do cérebro chamada córtex pré-frontal, que intensifica seu desenvolvimento lá pela pré-adolescência e só acaba de amadurecer perto dos 30 anos. Como Phineas teve um dano significativo nessa região, faz sentido que isso tenha afetado seu controle emocional. 

O que isso tem a ver com a criança no avião? E na sala de aula?

A autorregulação está intimamente relacionada a um conjunto de habilidades chamadas funções executivas. A maioria dos pesquisadores tende a usar um modelo de três categorias – embora existam outros modelos – para classificar nossas funções executivas. São elas: 

ATUALIZAÇÃOALTERNAÇÃOINIBIÇÃO
Memória de TrabalhoFlexibilidade CognitivaControle Inibitório
habilidade de reter e manipular diferentes informações por curtos períodos de tempohabilidade de manter ou mudar o foco da atenção em resposta a diferentes demandas ou aplicar regras diferentes em contextos distintos  habilidade de estabelecer prioridades e resistir a ações ou respostas impulsivas – autocontrole

Como você provavelmente percebeu, a autorregulação está diretamente ligada à inibição. Aqui vem o mais interessante: crianças que não desenvolvem bem essas funções executivas, como resultado de falta de treino, negligência, ambientes abusivos e outros fatores, são as que normalmente enfrentam ou podem vir a enfrentar maiores dificuldades na educação, na vida pessoal e na vida profissional. 

Precisamos lembrar que, por natureza, as crianças e adolescentes têm um desafio fisiológico, já que o seu cérebro ainda não completou o período de maturação necessária. Isso significa, em termos leigos, que crianças e adolescentes precisam de ajuda para regular suas emoções e agir dentro do esperado em qualquer situação. Agora pense comigo, o que ajuda de fato?

SITUAÇÃO 1: a criança começa a chorar porque ficou frustrada por não ter algo que ela não pode ter e a família ou os professores intervêm dando à criança o que ela quer. Afinal de contas, parar o choro é o mais essencial.

Ou

SITUAÇÃO 2: a família e/ou os professores explicam de maneira sincera e com acolhimento que a criança não pode fazer o que ela bem entender ou ter tudo o que ela quer porque outras pessoas têm seus direitos. 

Apesar de o choro provavelmente continuar na situação 2, é ela que devemos escolher. Como seres humanos, a frustração e outras emoções e sentimentos serão inevitáveis e eles certamente afetarão nossa cognição. O que precisamos fazer é abraçá-los e saber lidar com eles. Tanto no avião como na sala de aula, algumas crianças e adolescentes terão que enfrentar situações de frustração, impaciência, raiva, tristeza, alegria, cansaço e uma gama extensa de outras emoções e sentimentos. O ideal é não tentar distrair ou suprimir, mas, sim, identificar e acolher.

O mundo de ansiosos e emocionalmente fragilizados

Voltando de viagem recentemente depois de dar algumas palestras e workshops em diversas escolas pelo Brasil, tenho notado um sentimento coletivo que se confirmou numa enquete que fiz nas redes sociais. As crianças e adolescentes têm tido uma dificuldade muito maior em regular suas emoções e, consequentemente, seus comportamentos em todos os ambientes, sobretudo o escolar. Não é de se estranhar que obras como A Síndrome do Imperador (Leo Fraiman), A Geração do Quarto (Hugo Monteiro Ferreira), A Fábrica de Cretinos Digitais (Michel Desmurget) e mais recentemente A Geração Ansiosa (Jonathan Haidt) tenham ganhado notoriedade entre profissionais da educação, da saúde, especialmente mental, e membros da família. 

O desafio de lidar com o controle inibitório das novas gerações tem levado educadores a um mal-estar generalizado e, evidentemente, deteriorado sua própria saúde mental. Os dados de pesquisas sobre o assunto já são suficientemente robustos e um tanto quanto assustadores. Taxas mais elevadas de depressão, ansiedade e suicídio combinadas com uma queda jamais antes vista no nível de QI geral da população são indicadores de algo vai muito mal. Neste cenário caótico, o que podemos fazer? Com base no que a Ciência da Aprendizagem tem estudado, acredito que três aspectos devem ser primordiais na busca por crianças e adolescentes mais equilibrados emocionalmente:

  • Menor tempo de tela e mais interação com os amigos (isso inclui o brincar livre)
  • Mais atividade física e tempo de qualidade com as famílias
  • Menor superproteção visando evitar a qualquer custo a frustração (e o choro)

O que mais ouço de profissionais da educação é como as famílias são permissivas e não impõem limites aos seus filhos. Isso é verdade e precisamos do apoio delas para que qualquer intervenção funcione bem. No entanto, não devemos ignorar, distrair e, pior, ameaçar, intimidar ou humilhar publicamente uma criança ou adolescente em situação de estresse. Quando uma criança expressa o que está sentindo, ela deve ser pelo menos ouvida. Temos que lembrar que seu estado emocional vai determinar a qualidade da sua aprendizagem. Um menino que perdeu um ente da família ou um pet ou uma menina que sofreu bullying não tem as mesmas condições de prestar atenção e níveis de motivação que crianças que não estão passando por problemas parecidos e outros tantos. 

Vou repetir: estados emocionais impactam nossa capacidade de aprender e de viver bem em grupo. Isso influencia nossa saúde mental e física. Nosso corpo está intimamente ligado à nossa mente e ao nosso cérebro e não podemos simplesmente desligar nossas emoções. Inclusive, em casos mais delicados, encaminhe estudantes para o profissional adequado. Busque apoio das famílias, explique que suas crianças não podem ter tudo o que querem sempre e que elas precisam treinar suas funções executivas. Considere terapia e outros tratamentos como recomendações.

Estudantes não são máquinas e estas tampouco duram para sempre, aguentam qualquer tranco ou ficam ligadas sem parar. Elas também precisam de pausa. O nosso sistema educacional é muitas vezes uma “máquina de moer gente” e existe um caminho melhor. Foi essa reflexão que me levou a escrever o livro  “Estudando com a Ciência da Aprendizagem”. Sei que os desafios não são poucos, muito menos são fáceis. No entanto, espero que essa série e que o meu livro, meu novo curso online, meu podcast e minhas palestras pelas escolas possam trazer reflexões importantes para que a Ciência da Aprendizagem se torne cada vez mais presente nos mais diversos contextos educacionais do nosso país. 

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