Como recuperar as perdas de desenvolvimento motor e da fala das crianças?
Segundo especialistas, o distanciamento social provocou dificuldades de psicomotricidade infantil. Mas existem formas de reverter esse quadro
O simples fato de não poder ir à escola, no período de distanciamento social, gerou diversos impactos negativos às crianças. A psicomotricidade, principalmente das menores, foi consideravelmente afetada – algo que é bem perceptível na volta às aulas presenciais. Especialmente porque, nas idades iniciais, as crianças tendem a aprender muito por meio de experiências concretas.
As possíveis causas para os prejuízos são as mudanças no ambiente, no comportamento e na rotina das famílias durante a pandemia. Existem evidências científicas sugerindo que as pessoas, mesmo estando mais tempo em casa, conversaram menos entre si e experimentaram um aumento da exposição a eletrônicos. Esses casos são conhecidos por trazer atraso no desenvolvimento da linguagem. É o que sinaliza a neurologista pediátrica e coordenadora do Ambulatório de Distúrbios do Neurodesenvolvimento no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Renata Kieling.
Dependendo da característica da criança e do comportamento da família durante esse período, as dificuldades são maiores com o retorno às aulas presenciais. Exemplos: crianças que ficaram isoladas em casa, sem convívio com pares da mesma idade (irmãos/amigos), em frente a telas (celular, por exemplo); pais com pouca disponibilidade, tempo e engajamento afetivo para brincar, conversar e se relacionar.
“Essas crianças podem ter mais dificuldade nessa readaptação a um ambiente onde precisam dessa bagagem e de recursos sócio-emocionais para compartilhar brinquedos, experiências, desenvolver amizades”, salienta a neurologista.
Conforme enfatiza a especialista, muitas pessoas menosprezam a importância do brincar, mas é a principal ferramenta de desenvolvimento das crianças. A criança que não brinca fica passiva na frente de uma tela, bombardeada por som e luz (muitas vezes sem sequer entender a narrativa), e não está desenvolvendo aquilo que mais precisa: conexão com alguém.
A desigualdade escolar
É estimado que a pandemia aumentou a desigualdade escolar. As perdas em termos de aprendizagem devem ser maiores em determinados níveis de ensino e em grupos menos favorecidos. É o que reforça a psicóloga formada em neuropsicologia infantil pelo Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e pesquisadora do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul, Danielle Irigoyen da Costa.
Segundo ela, existem relatos, em grupos menores, de ausência de dificuldades de aprendizagem, com a principal associação de maior convivência familiar e proximidade família/escola, na ausência de conflitos ou de vulnerabilidades. Entretanto, mais pesquisas devem ser realizadas para que diferentes evoluções possam ser visualizadas e a relação entre fatores positivos (que também têm sido mencionados) e negativos possa ser aprofundada.
Estudos mostram que todo o manejo e orientação, sempre que possível, deve ser pensado individualmente, a fim de atender à realidade de cada criança. Mas as atividades em grupo, que acabam sendo mais viáveis de execução, também são possíveis e podem auxiliar muito na redução das dificuldades.
“Na realidade, equipes multidisciplinares têm auxiliado nos planos individuais e coletivos de intervenção. As crianças estão muito desejosas para o reencontro e para a aprendizagem, por estarem em ‘pleno desenvolvimento’ e motivadas. Vislumbram-se boas perspectivas com intervenções, mas sempre com atenção às diferenças”, explica Danielle.
A sobrecarga materna também foi algo presente, em situações distintas. Além dos ajustes na rotina, foi observado que, em determinados ambientes familiares, estão presentes múltiplos fatores de risco que ameaçam o desenvolvimento saudável e adaptativo das crianças. A falta de estimulação adequada ao nível de desenvolvimento das crianças, a violência, os maus tratos, a negligência e os conflitos são os possíveis agentes causadores.
Os problemas de atrasos na fala
Algo muito comum são os atrasos de fala de crianças. “Elas compreendem mais do que falam ou falam com palavras trocadas”, constata a especialista em fonoaudiologia na infância na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Bárbara Goulart.
Segundo explica a fonoaudióloga, o desenvolvimento da comunicação das crianças ocorre em duas etapas. A fase pré-linguística é um período o qual existe uma compreensão do que é escutado, porém ainda não consegue articular uma fala. “Os pequenos executam as tarefas simples como ‘dá a bola’, mas não conseguem repetir o que é falado, isso até um ano de idade”, diz.
Quadro de aquisição de sons da fala do português brasileiro:
Já na etapa linguística, entre oito meses a um ano de idade, ocorre a articulação de palavras isoladas, como “papa” ou “mama”. Os primeiros sons de ‘P de pato’, ‘T de tatu’, ‘D de dado’ vão surgir a partir de um ano a um e meio de idade. De quatro a cinco anos, todos os sons do português precisam ser falados. O ‘R forte’, de areia, carro e rato, por exemplo, e os diferentes encontros de consonantais, como ‘globo’ ou ‘flor’, são os últimos sons a serem pronunciados.
Quando está se desenvolvendo, é normal a criança trocar as letras. “É importante não corrigi-las dizendo diretamente ‘não é assim’. É só dar o modelo correto para falar as palavras corretas. Aquelas com quatro e cinco anos que não aprenderam a falar o ‘R forte’ é melhor procurar por um profissional da área da fonoaudiologia”, alerta.
Para contribuir para corrigir esse problema de fala, primeiramente, é necessário deixar que a criança se comunique e incentivá-la, seja por gestos, expressões faciais ou corporais. A especialista também indica dar tempo para a criança falar (umas demoram mais para se comunicar) e não interrompê-las. “Se demorar muito para falar, uma sugestão é procurar os médicos da família em postos de saúde. Isso ajuda na primeira identificação, se existe algum tipo de atraso”, aponta.
Os déficits de habilidades motoras
Em relação à motricidade, especialmente de crianças pequenas de até três anos de idade que estão vivendo a fase de desenvolvimento sensório-motor, a perda de experiências de aprendizado motor (em praças, parques e escola) podem ter impactado de forma negativa (ainda que transitória) o desenvolvimento motor. “Pular, girar, correr, escalar tudo isso são experiências básicas, porém extremamente ricas e importantes para o desenvolvimento cerebral nessa idade. Crianças maiores também perderam experiência, mas o impacto esperado é menor, afetando, talvez, destreza, confiança, habilidade, entre outras habilidades”, contextualiza a neurologista pediátrica do HCPA.
As crianças têm apresentado menor desempenho nas tarefas motoras, principalmente na execução das habilidades motoras fundamentais ou básicas (locomotoras, de controle postural e de controle de objetos). Essas são a base para a aquisição das habilidades especializadas relacionadas aos esportes, movimentos ginásticos, das danças e atividades do dia a dia e sofrem grande influência ambiental. “Além das habilidades motoras, as capacidades físicas como flexibilidade, resistência muscular e resistência aeróbia também foram afetadas, em decorrência do aumento do sedentarismo”, explica a doutora em Ciências da Saúde, professora do curso de Educação Física da Uninter, Tatiane Calve.
Outras características do desenvolvimento infantil afetadas pelo distanciamento social foram a atenção/concentração, dificuldade para dormir, maior dependência afetiva dos pais e menor socialização. Essas características são importantes para o desenvolvimento global do indivíduo.
As crianças, nesse período de distanciamento social, passaram muito tempo fazendo uso de jogos de equipamentos eletrônicos, como celulares, tablets, videogames, computadores e televisores. “A motricidade (fina e global) deve ser desenvolvida com atividades coerentes à idade. Os indivíduos podem ser estimulados desde o desenvolvimento intrauterino até a morte”, reforça.
O principal objetivo a ser trabalhado é ampliar a bagagem perceptiva motora das crianças. Então, quanto maior o número e diversidade de movimentos e habilidades motoras executadas, melhor. “Aos pais, a recomendação é que brinquem com seus filhos, dentro e fora de casa. Levem seus filhos aos parques, andem de bicicleta com eles, brinquem na terra, no gramado, dediquem um tempo de lazer para eles”, recomenda.
Dissertação aponta dificuldades
Embora recente – a pandemia sequer terminou –, o tema já é alvo de estudos. Mestre em Fonoaudiologia, Milena Sansone Duarte Maciel desenvolveu uma dissertação de pós-graduação na Universidade Estadual Paulista (Unesp), intitulada “Função motora global e fina, percepção visomotora em escolares do 1° e 2° ano do Ensino Fundamental I em tempos de pandemia: estudo relacional e de regressão”. A pesquisa da autora, com 15 meninos e cinco meninas entre seis e oito anos de idade, sinaliza um desempenho das crianças abaixo do esperado.
“Assim, constatou-se que os escolares deste estudo tiveram dificuldades na função motora fina (Precisão Motora Fina) e na percepção visual (Fechamento Visual), que podem ser consequências da falta de oportunidade de experiências motoras, agravadas pela falta de vivência escolar em tempos de pandemia”, descreve o levantamento.
Esse contexto indica a necessidade de se pensar em ações para que pais e escolas consigam incentivar os pequenos estudantes a se desenvolverem por meio de atividades, minimizando ou até eliminando esses problemas.
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