Como transformar o Dia das Crianças em um momento de experiências

Educadores e famílias ensinam a trocar o consumo por vivências que fortalecem vínculos e memórias

por: Bianca Zasso e Vitória Leitzke | bianca@padrinhoconteudo.com | vitoria@padrinhoconteudo.com
imagem: Gemini

Você já parou para pensar como percebemos que o Dia das Crianças está chegando? Basta observar as vitrines: nelas, os lançamentos de brinquedos e jogos ganham destaque, acompanhados de decorações coloridas e personagens que encantam o público infantil.

A criação do Dia das Crianças foi proposta pelo deputado federal Galdino do Valle Filho e oficializada pelo então presidente Arthur Bernardes no ano de 1924, com o objetivo de valorizar a infância e chamar a atenção para os direitos delas. Desde os anos 1960, a data costuma movimentar a vida e também o comércio, já que o 12 de outubro acabou atrelado ao ato de presentear os pequenos.

Resgatar essa origem é um convite à reflexão sobre como o marketing e os hábitos de consumo transformaram o sentido da celebração. Cada vez mais, pais e educadores têm buscado ressignificar a data, promovendo experiências que colocam o brincar à frente do brinquedo – momentos de conexão capazes de tornar a data realmente inesquecível e transformadora.

Como dizia a educadora e médica italiana Maria Montessori (1879 – 1952), “brincar é o trabalho da criança”. Por isso, neste Dia das Crianças, o Educação em Pauta convida famílias e escolas a explorarem as muitas possibilidades de descobrir o mundo por meio do lúdico. O essencial é viver o 12 de outubro com presença, afeto e imaginação.

Entre o diálogo e o brincar

A pedagoga, formadora de educadores e investigadora das questões ambientais e sociais Elisa Lunardi sempre foi preocupada com os impactos ambientais e sociais causados pelo consumismo. Isso se acentuou com a chegada dos filhos, Francisco e Maria, hoje com 11 e 8 anos, respectivamente, e que trouxeram seu olhar contestador para as comemorações e rituais da infância.

Foi assim que nasceu o Infância Sem Excesso, movimento educativo que busca resgatar a simplicidade e a criatividade das trocas entre crianças e adultos.

Nossas campanhas apresentam ideias para um Dia das Crianças sem consumismo, focando em conversas sobre a data e em ouvir o desejo das crianças”, aponta Elisa, que destaca a linguagem como um dos principais artifícios para se trabalhar a questão do consumo com os pequenos.

Mas como resistir a tantas opções e tentações vindas do varejo? Segundo Elisa, uma criança que está imersa em um mundo de telas pode ser relutante com algumas propostas.

“Nessas horas, o diálogo deve ser priorizado. Precisamos pensar qual rotina estamos oferecendo para as crianças. O exemplo é sempre muito forte e conversar sobre outras possibilidades de comemoração, respeitando a idade e o tempo de cada um, é um ótimo começo”, avalia a pedagoga.

A proposta do Infância Sem Excesso de utilizar datas comemorativas para que as famílias vivam experiências que valorizem a presença em vez de objetos pode contar com o apoio das escolas para ser realizada de forma ainda mais efetiva. A iniciativa, além de promover campanhas nas redes sociais, também oferece formação para escolas e projetos sociais.

Investir no baixo consumo, como reaproveitar os materiais utilizados em sala de aula, e focar no processo em vez de no produto final são mudanças que trazem um novo olhar para os estudantes e também para os educadores. Questionar o que as crianças viveram e não o que ganharam no 12 de outubro abre uma conversa interessante.

“Nos eventos escolares, os pais podem apresentar brincadeiras que faziam quando pequenos. Essa troca é poderosa e coloca o corpo e a mente em movimento. Investir em espaços de natureza e na ludicidade do ambiente escolar também trazem benefícios quando o assunto é consumo”, apresenta Elisa.

O Colégio Marista Rosário, de Porto Alegre, promoveu no dia 4 de outubro mais uma edição do Territórios Brincantes, uma iniciativa cheia de significado para comemorar antecipadamente o Dia das Crianças. Pais, filhos e parte da equipe da escola se reuniram no Parcão para uma manhã de brincadeiras e atividades que colocaram todos em movimento.

Assistente de coordenação de turno do Ensino Infantil da instituição, Victoria Pires explica que a proposta sempre ocorria na escola, mas levá-la para um dos parques mais conhecidos da capital gaúcha fez com que novas famílias pudessem conhecer o projeto.

“Aproveitar um dia de sol com as crianças e incluir a escola nisso é muito bacana, pois podemos explicar como esse momento vai além da saúde e cuidado com as crianças. O brincar também é essencial para o desenvolvimento social delas”, lembra ela.

Leia também:
>>Experiências que aproximam alunos do prazer da escrita
>>Precisamos levar Portinari às crianças
>>Adeus, celular? Como escolas e alunos estão se adaptando à nova lei

Desconectar para brincar

Outra mãe que abriu espaço para um Dia das Crianças com menos brinquedos e mais brincadeiras foi a advogada Elisa Torelly. Mãe da Maria Luísa, de 7 anos, e do Caetano, de 4, ela atualmente integra o grupo de trabalho de Políticas Públicas do Movimento Desconecta. Iniciada em São Paulo, a proposta foi criada por pais e mães preocupados com o uso cada vez mais precoce e excessivo de smartphones e redes sociais por crianças e adolescentes. Inspirado em campanhas internacionais, como a Smartphone Free Childhood, o Desconecta propõe uma ação coletiva para adiar a entrada dos jovens no mundo digital.

“Durante a pandemia, organizamos uma celebração com as famílias do nosso prédio. Alugamos alguns brinquedos e contratamos um professor de musicalização. Isso gerou lembranças importantes para todos”, afirma Elisa, lembrando que em sua casa, o hábito de presentear as crianças no dia 12 de outubro nunca esteve muito presente, pois a prioridade sempre foi investir em atividades e experiências.

A família de Elisa Torelly organizou um Dia das Crianças com brinquedos e aula de musicalização durante a pandemia. | Créditos: Elisa Torelly / Arquivo Pessoal

Oferecer às crianças contato com a natureza e oportunidade de conhecer e viver os espaços públicos da cidade também fazem parte da rotina da advogada com os filhos. O uso do transporte público, por exemplo, está na agenda da família, para promover o desenvolvimento de habilidades que vão além do conhecimento do ambiente urbano.

“Eles precisam aprender a se movimentar, ganhar autonomia e saber que existem diferentes realidades numa mesma cidade. Fazer as crianças reconhecerem seus privilégios também faz parte da conexão familiar”, argumenta.

Comprar presentes de forma estratégica também é uma indicação que pode ressignificar a data. Uma bicicleta, por exemplo, pode ser o incentivo para mais brincadeiras ao ar livre, e materiais de desenho, como canetas e lápis de cor, são o ponto de partida para que as crianças criem suas próprias histórias e personagens. E a surpresa, essa emoção tão presente nas crianças diante de um embrulho colorido, também pode acontecer em outros formatos.

É o caso da jornalista Paula Gracioli, que encontrou na programação cultural de Porto Alegre a oportunidade de presentear o filho Antônio, de 9 anos. Ela garantiu o ingresso para o show do cantor Jão, no Auditório Araújo Vianna, mas manteve segredo.

“Ele começou a ouvir as músicas comigo e virou fã. Falei que íamos fazer algo especial naquele dia e, no caminho, começou uma chuva muito forte. Tivemos que comprar capas de chuva na porta do auditório. Quando eu revelei sobre o show, ele ficou muito feliz”, lembra Paula.

Outra aventura de mãe e filho foi a viagem para o parque do Beto Carrero, em Santa Catarina, em outubro do ano passado. A partir desse passeio, a jornalista entendeu que a criação de memórias é muito mais importante do que um brinquedo. Ir além das datas comemorativas para vivenciar experiências novas também está na agenda da família.

“Temos um combinado de ir uma vez por mês ao cinema. Nem sempre é possível cumprir, mas é algo que, quando acontece, sempre rende conversas significativas entre nós”, conclui.

A jornalista Paula Gracioli presenteou o filho Antônio com uma ida surpresa ao show do cantor Jão | Crédito: Paula Gracioli / Arquivo Pessoal

Livros para ler juntos

Ofertar experiências para as crianças num mundo repleto de campanhas publicitárias e anúncios de produtos indicados por algoritmos é um desafio que pode começar dentro de casa. Isso porque não é preciso viajar ou mesmo sair do conforto do sofá para criar um momento de troca entre pais e filhos. A leitura de um livro pode ser uma porta que se abre para soltar a imaginação e dialogar sobre temas como racismo, diversidade e crescimento.

Renata Nakano é mestre em literatura e apaixonada por livros infantis. Tal paixão deu origem ao Clube Quindim, um clube de assinatura de livros para os pequenos que conta com um grupo de curadores especialistas em infâncias, como Daniel Mundukuru, Inácio de Loyola Brandão e Renato Moriconi que, a cada mês, selecionam obras dos mais diversos autores, estilos e países para a casa dos assinantes.

Ela lembra que é comum no mês de outubro surgirem novos integrantes no clube, especialmente famílias interessadas em dar início a uma leitura mensal compartilhada. “Temos muitos avós que presenteiam os netos com uma assinatura e que depois conversam sobre as histórias, mesmo morando em outra cidade ou Estado. Essa troca é essencial para desenvolver o hábito da leitura nas crianças”, lembra Renata, que cita a pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Instituto Pró-livro, que revela que a figura de afeto é o maior promotor do gosto pela leitura entre os mais jovens. Os mapas de leitura, que acompanham os livros enviados pelo Clube Quindim, surgiram para facilitar a interação entre crianças e adultos durante a fruição das obras.

E as figuras de afeto para incentivar o amor pelos livros, citadas na pesquisa, também podem ser encontradas na escola. Renata aponta que 20% dos assinantes do Clube Quindim são educadores, alguns sem filhos ou crianças menores em seu círculo familiar. O material de qualidade e o propósito de oferecer uma literatura infantil diversa e bem trabalhada são, segundo ela, os responsáveis por atrair professores para fazer parte do que ela chama de Família Quindim.

“A adoção dos livros do Quindim pelos profissionais da educação multiplica a capilaridade das obras, o que é motivo de grande satisfação para nós”, comemora Renata, que gosta da abordagem “livro para infâncias” em vez de chamar de livro infantil.

Para ela, embora a ideia de que “livro bom é livro para qualquer idade” seja popular, existem obras que dialogam melhor com certos momentos e perspectivas da criança, como os contos acumulativos para bebês.

Alguns livros podem não agradar aos pais, mas as crianças adoram, demonstrando a diferença entre o olhar enrijecido do adulto e a liberdade do olhar infantil. Essa troca no momento da leitura traz descobertas incríveis para pais e filhos”, indica.

(Re)Conquistando vínculos familiares

Um videogame, só que analógico. Assim os criadores Marcella Bertoluci e Bruno Bittencourt definem o (Re)Conquista, um jogo de tabuleiro criado para fortalecer vínculos afetivos entre pais e filhos. A dinâmica funciona com uma jornada com 10 fases imersivas, que contam com meses de atividades de conexão e diversão, visando a recuperar as habilidades socioemocionais, sem esquecer da brincadeira. Dinâmicas de grupo, projetos mão na massa e ferramentas de incentivo à reflexão e diálogo sobre emoções e situações do cotidiano são formas incentivadas pelo jogo.

Uma forma de presentear não só a criança, mas toda família. Marcella defende a importância de pais e filhos terem tempo de qualidade, driblando a correria da rotina e o piloto automático.

“Isso tira esses momentos de presença com os filhos e impacta no desenvolvimento socioeducacional e na construção dessa pessoa como adulto no futuro”, comenta.

A dupla conviveu por muitos anos com a comunidade da adoção, fazendo eventos para ajudar pais habilitados a conhecerem as crianças que estavam em abrigos. Inclusive, a experiência foi vivida intensamente por Bittencourt, que é pai biológico e adotivo.

“Eu tinha uma expectativa muito alta em relação à paternidade como um todo, de como é que eu poderia ser melhor pai. E a gente começou a se dar conta que a sociedade, acelerada como está, não dá espaço para criarmos vínculos verdadeiros”, analisa o cofundador do (Re)Conquista.

Jogo combina diversão, conexão e reflexão por meio de dinâmicas, projetos e diálogos sobre emoções e cotidiano | Crédito: Gabriela Perufo

TAGS





Assine nossa newsletter

E fique por dentro das novidades