Entender o autismo pelo lado clínico pode ajudar em sua alfabetização
Profissionais da educação apontam estratégias para adaptar o currículo e favorecer a alfabetização de alunos com TEA
A inclusão de crianças autistas na escola começa pelo essencial: entender o que é o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Para a pedagoga, pesquisadora em inclusão e alfabetização e fundadora do Instituto NeuroSaber, Luciana Brites, o conhecimento técnico é o ponto de partida para transformar realidades dentro da sala de aula.
Essa inclusão, em linhas gerais, exige que os professores conheçam de maneira mais aprofundada o autismo. “Mas também que estejam preparados para lidar com diferentes formas de aprendizagem, tanto de alunos atípicos quanto dos típicos”, afirma.
A formação docente precisa ser atualizada com base em dois pilares fundamentais: a neurociência e as evidências científicas, resume a pedagoga. Educar uma criança autista requer compreender como seu cérebro funciona e, para isso, é preciso primeiro entender o cérebro típico. “Esse conhecimento permite que o professor identifique disfunções cognitivas e adote abordagens pedagógicas mais eficazes, evitando a perda de tempo com estratégias que não geram resultados”, explica.
Neurocientista em educação, cognição e comportamento, Luciane Gaicoski Pinto complementa: além da teoria, os educadores ainda necessitam de orientações práticas sobre como agir em situações como crises ou comportamentos de fuga (reações a estímulos percebidos como perigosos ou desagradáveis). “Se a criança derrubou os lápis no chão, o que aconteceu antes disso? Qual foi o gatilho?”, questiona.
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Muitos comportamentos considerados inadequados são, na verdade, respostas a estímulos sensoriais, como barulho ou toque. Cada criança é única, com um conjunto próprio de habilidades e barreiras. Uma pode apresentar hiperfoco em letras e números, por exemplo.
Luciane relata o caso de uma criança de quatro anos que escreve, faz contas e canta enquanto escreve palavras coloridas, mas tem dificuldade de comunicação e imitação, além de não estabelecer contato visual. “Não é porque ela não quer, mas porque encontra barreiras reais”, relata.
A chave está no olhar atento do educador. Observar os interesses da criança, adaptar o planejamento a eles e usar reforçadores positivos como objetos, elogios ou gestos de afeto são estratégias importantes. Se a criança gosta de bola, por exemplo, o objeto pode ser usado como reforço após o cumprimento de uma tarefa. Mas tudo deve ser estruturado, inclusive a linguagem utilizada, com frases curtas e diretas. Em vez de dizer “vamos pegar o lápis amarelo para pintar o sol”, é mais eficaz dizer: “Fulano, pinta amarelo”.
Diferenciar birra de crise é algo que exige sensibilidade e conhecimento, pondera a neurocientista, destacando a importância dessa observação ao problema. A birra busca atenção e pode ser reforçada até por uma repreensão leve. Já a crise é um colapso emocional, uma sobrecarga. E essa distinção muda completamente a abordagem do professor. “Trabalhar com crianças autistas não é fácil, mas é possível. E é apaixonante. Quando o professor entende o que está por trás de cada comportamento, tudo começa a fazer sentido”, afirma.
Previsibilidade da rotina, o ambiente físico (evitando luz forte e sons altos) e o apoio social, inclusive entre os próprios colegas são outros cuidados fundamentais. Luciane salienta que sempre há um ou dois com quem a criança autista se conecta mais, e esses vínculos são valiosos. “Os professores podem conversar com os pais dessas crianças e orientá-los sobre como podem ajudar. É uma espécie de tutoria natural que favorece a convivência e o desenvolvimento”, acrescenta.
Evitar a armadilha de acreditar que pessoas com Síndrome de Down ou autismo necessitam exclusivamente de métodos específicos para aprender é outro aspecto importante destacado pela fonoaudióloga e doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Eliane Ramos. Antes de qualquer coisa, é fundamental reconhecer que essas crianças são capazes de construir ativamente seu próprio conhecimento. Cada indivíduo é único, inclusive entre os autistas. Por isso, não há um método universal que atenda a todos.
“O papel do ensino é utilizar estratégias, técnicas e recursos variados para facilitar o processo, mas o aprendizado em si é construído pelo próprio sujeito. Ele não é controlado pelo ensino, embora dependa da sua qualidade”, sentencia.
O atual foco no contexto do autismo está na acessibilidade à comunicação e à interação, seja por meio da fala, da comunicação alternativa, de recursos visuais ou de outras linguagens. Essa acessibilidade também é intelectual, linguística e pedagógica. O ensino da alfabetização pode ser enriquecido com diferentes estratégias e linguagens, como a audiodescrição (originalmente pensada para pessoas cegas), que pode ter um papel relevante em turmas com alunos autistas.
Escola e família devem trabalhar em parceria para criar um ambiente seguro e coerente para a criança. “O acolhimento da família é essencial. Quando ela confia na escola e nos profissionais, se torna uma grande aliada nesse processo”, enfatiza Luciana.
“A alfabetização inclusiva é possível. Mas, para isso, precisamos de professores preparados, famílias engajadas e escolas que entendam que cada criança aprende de um jeito e que todas têm o direito de aprender”, conclui.
Nesse contexto, a alfabetização fônica se mostra como uma das abordagens mais indicadas para crianças com TEA, inclusive aquelas não verbais. O método ensina a relacionar os sons das letras (fonemas) com as letras escritas (grafemas).
A proposta vai além do ensino de letras e sons: envolve o estímulo às habilidades de literacia emergente, como vocabulário, consciência fonológica, conhecimento alfabético e noções de impressão. “Nosso cérebro não nasceu para aprender a ler e escrever. Ele precisa ser treinado. E, no caso de crianças atípicas, esse treino exige ainda mais estrutura e intencionalidade”, explica.
Antes de pensar na alfabetização, é preciso garantir a comunicação – seja por fala, gestos ou sinais. Sem isso, não há aprendizado possível. Além disso, o professor precisa estar atento às comorbidades, já que o autismo é um espectro amplo e pode estar associado a TDAH, ansiedade, deficiência intelectual ou altas habilidades
A defesa do método fônico como solução universal para os desafios da alfabetização e do letramento, especialmente no caso de pessoas com autismo, precisa ser vista com cautela. “Eleger um único método como o salvador pode ser um equívoco, dependendo da linha teórica adotada e das evidências produzidas pela pesquisa”, salienta Eliane.
Outro aspecto levantado por Eliane é o desenho criativo como uma etapa importante da alfabetização. Há diversas formas de promover essa prática, como com tinta, areia ou materiais adaptados. “Garantir o acesso ao desenho é garantir uma forma inicial de expressão gráfica e, portanto, de linguagem”, pontua.
O mesmo vale para o acesso à literatura. Quem está contando histórias para essas crianças? Que livros estão disponíveis? Há obras com recursos como comunicação alternativa, braille ou Libras? Muitas vezes, desde cedo, as oportunidades de contato com o universo letrado já são reduzidas, o que compromete todo o processo posterior. “É essencial também que essas crianças sejam vistas como comunicadoras. Pessoas que têm algo a dizer, uma opinião a compartilhar. Se não forem reconhecidas como sujeitos comunicantes, qual será, então, o sentido da linguagem escrita em suas vidas?”, indaga.
Uma ferramenta que pode garantir que o aluno com autismo acompanhe o conteúdo escolar de forma adequada às suas necessidades é o Plano Educacional Individualizado. “Ele funciona como uma adaptação do currículo para trabalhar com a BNCC, sendo estruturado em um plano diferenciado, com objetivos e metodologias ajustados para o desenvolvimento da criança”, comenta Luciane.
Para elaborá-lo, é necessário observar cuidadosamente as potencialidades e dificuldades do estudante. É importante a equipe escolar (composta por professor, coordenador, direção e, se houver, auxiliar de sala) se reunir com a família e, sempre que possível, conversar com os profissionais que acompanham a criança, como médicos ou terapeutas.
O PEI deve indicar para qual aluno foi elaborado, especificando quais conteúdos foram adaptados, de que forma e com qual objetivo. Não se trata apenas de simplificar o conteúdo, mas de garantir que a criança compreenda o conceito e sua função.
Ao abordar o tema “meio ambiente”, por exemplo, é importante ir além da exposição de imagens: o objetivo pode ser explicar, de maneira acessível, o que é uma árvore, por que ela existe, como contribui para o ar e para a sombra, entre outros aspectos. “O mais importante é garantir que o plano respeite o ritmo da criança, evitando frustrações e promovendo sua participação ativa no processo de aprendizagem”, conta.
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