Música como instrumento para aprender, incluir e transformar
Mais do que tocar um instrumento, a música pode ser vivenciada dentro das escolas
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estabelece a Arte como uma das áreas do conhecimento essenciais para a formação dos estudantes dentro da Educação Básica, a partir das linguagens das artes visuais, da dança, do teatro e da música.
No documento, que é norteador da educação brasileira, a música é compreendida como um campo capaz de promover a escuta sensível, além de valorizar a expressão criativa e a possibilidade de apresentar e desenvolver o conhecimento de diferentes culturas e contextos sociais. Algumas instituições oferecem aulas de diferentes instrumentos e também de canto no horário de contraturno, mas a integração desta linguagem no currículo escolar pode acontecer em outros formatos.
Pedagoga e professora de violino da Orquestra Jovem Recanto Maestro, projeto que oferece aulas de música para crianças e adolescentes da região central do Estado, Arianna Gutierrez desenvolve uma pesquisa de mestrado na Universidade Franciscana (UFN) que aborda como a música é incluída nos currículos da Educação Básica.
Apaixonada pelo poder da arte sonora, acredita que as instituições devem construir propostas onde o estudante possa vivenciar a música e não apenas aprender um instrumento. “A música é orgânica, faz parte da nossa vida, dos nossos ritos, da nossa humanidade. O primeiro contato que um bebê tem com a música é quando sente o coração da mãe bater. A música colabora para o desenvolvimento da fala e, nos mais velhos, na desinibição e na comunicação”, explica Arianna.
Mais que oferecer um período fixo dentro da programação semanal das aulas para trabalhar o ensino musical, Arianna acredita que a música pode estar presente nos detalhes e ser um auxílio para o professor tornar os processos de aprendizagem mais criativos e acolhedores. Quando trabalhou com uma turma em processo de alfabetização pela primeira vez, a pedagoga uniu o ABC com o Dó-Ré-Mi e os resultados foram impressionantes. “Resolvi utilizar uma canção em alguns momentos do processo, para que eles fizessem uma associação. Em três meses, 78% da turma estava alfabetizada”, lembra.
A terapeuta Luciane Pinto, que trabalha com musicalização, reforça a importância da música como recurso pedagógico para todas as disciplinas e não apenas as que estão ligadas às artes. Para ela, a multidisciplinaridade é um dos maiores trunfos da música nas escolas, fazendo com que o aprendizado seja mais interessante e conectado com a realidade dos alunos. “A música dialoga com a Matemática, podendo ser trabalhado o ritmo, frações e padrões. Nas aulas de História, o professor pode abordar o contexto das canções. Já na Língua Portuguesa, é possível trabalhar com letras, rimas e interpretação”, orienta Luciane.
Entre as atividades que podem ser propostas em sala de aula estão os jogos rítmicos, que podem ser feitos com palmas ou com instrumentos simples, e ajudam a desenvolver a atenção e a coordenação. Também é possível trabalhar com a criação coletiva de músicas ou letras, estimulando a criatividade e o trabalho em grupo.
“A improvisação musical em grupo é uma ótima ferramenta que incentiva a expressão espontânea e o respeito ao espaço do outro. Os exercícios de escuta ativa, como prestar atenção em diferentes sons ou identificar instrumentos, contribuem para o desenvolvimento da concentração”, lembra a terapeuta.
Luciane lembra que a música também colabora para o processo de inclusão nas escolas. Para estudantes dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA), a musicoterapia é uma aliada poderosa para facilitar a comunicação, estimular a socialização e ajudar na expressão de sentimentos, mesmo em casos onde a criança ou adolescente tem limitações de fala. Sessões de musicoterapia promovem contato visual, aumentam a capacidade de concentração e incentivam a interação com colegas, além de fortalecer a autoestima e a autonomia.
“Os efeitos positivos aparecem tanto no comportamento social quanto no desenvolvimento cognitivo e emocional dos alunos neurodivergentes”, explica.
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Bons exemplos da presença da música nos currículos e, especialmente, no cotidiano das escolas não faltam. O professor de música do Colégio Marista Rosário, Estêvão Grezeli, explica que a instituição oferta aulas para as turmas da Educação Infantil, Anos Iniciais e também para o 6º ano dos Anos Finais, todas dentro do currículo regular da instituição. “Até o 2º ano, o foco é na educação musical, instrumentalizando os estudantes com questões perceptivas, como escutar, usar o corpo, explorar e criar de uma forma mais livre. A partir do 3º ano, nosso foco é a prática instrumental e vocal”, conta o professor.
A história da música de Porto Alegre também ganha destaque nas aulas, com os alunos aprendendo sobre artistas e orquestras da cidade, além de referências a diferentes ritmos e etnias que ajudaram a moldar a cultura brasileira.
O colégio também oferece aulas de bateria, violão, teclado e técnica vocal no contraturno, e a Orquestra Rosariense, que seleciona estudantes a partir do 4º ano do Ensino Fundamental. Atualmente, a orquestra é composta por 120 estudantes. “Em 2025, o projeto completa 13 anos. Já participamos de muitos eventos, nos apresentando com bandas como Nenhum de Nós e Acústicos e Valvulados”, lembra Grezeli, que também é regente da orquestra.
Com uma cultura musical própria e consolidada, o Colégio Marista Rosário também ganha acordes em seus corredores nos momentos de pausa nos estudos. A sala onde ficam os instrumentos musicais está sempre de portas abertas para receber os estudantes e, recentemente, ganhou uma espécie de extensão, onde outros prédios da instituição passaram a ter também um espaço com violões, piano digital e cajon. Com a proibição dos celulares dentro das escolas, um novo ponto de encontro para os alunos nasceu, repleto de improvisos e até pequenos shows.
“É muito bonito ver as crianças e também alunos mais velhos em contato com os instrumentos e até realizando apresentações. A ideia é expandir essa proposta para outros pontos do colégio, inclusive estimulando os pais a participarem”, comenta o professor. Além de conviver diariamente com a música por conta de suas aulas, Grezeli também levou o tema para o mundo acadêmico. Sua dissertação de mestrado resultou em uma pesquisa inédita no país ao mapear a presença do ensino de música nas escolas particulares de Porto Alegre. Com quase 100 instituições pesquisadas, o professor traça um panorama do contato dos estudantes com a música dentro dos ambientes escolares. “A pesquisa será publicada em formato de livro e a nossa ideia é que todas as escolas privadas da capital recebam um exemplar”, informa Grezeli.
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