Os perigos do uso excessivo de telas na infância e na adolescência
Especialistas alertam sobre riscos ao desenvolvimento cerebral, da linguagem e adicção causada por exagero na utilização de smartphones e outros dispositivos
Nunca antes a humanidade foi tão dependente da tecnologia para obter entretenimento, conhecimento, bens e trabalho. Não à toa, muitas escolas ao redor do globo incentivam a alfabetização tecnológica, uma espécie de letramento em internet que seria útil ao aprendizado, comunicação e produção de conteúdos. O objetivo seria preparar as jovens mentes para um futuro ainda mais permeado por telas e softwares.
O discurso parece fazer sentido, mas as descobertas da ciência vão de encontro a ele. Sociedades de Pediatria do Brasil, Estados Unidos e Canadá recomendam restringir o uso de telas – especialmente na infância e na adolescência. O psicólogo Cristiano Nabuco, coordenador do grupo de dependências tecnológicas do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo, diz que, nos últimos 20 anos, a sociedade brasileira tem aumentado sensivelmente o consumo de internet e esse mau hábito reflete-se no comportamento das crianças
“Desde que a internet ganhou mobilidade, temos visto que o tempo de uso começou a se exceder de forma bastante significativa. O brasileiro gasta, em média, de 10 a 11 horas semanais em redes sociais. São três meses do ano somente olhando para as telas do computador e do celular. Isso traz desdobramentos diversos em diferentes faixas etárias, sendo especialmente danoso na Primeira Infância”, explica.
Conforme Nabuco, o cérebro humano só completa sua maturação após os 25 anos, com o total desenvolvimento do córtex pré-frontal. Localizado na região da testa, ele é o mecanismo onde se integram as informações sensitivas externas e internas, em que se processam o raciocínio lógico, a memória de curto prazo e o freio comportamental. Não à toa, quanto mais jovens, menos calculamos os desdobramentos de nossas ações. Desde a infância, o cérebro humano se alimenta dessas vivências e experiências – momentos que podem estar perdendo espaço para a solidão repetitiva que pode envolver o uso de telas.
“A Primeira Infância é um momento em que o cérebro está fazendo importantes conexões. Se eu perder essa janela, será para sempre, não ocorrerá novamente. O problema não é necessariamente o uso das telas, mas o que elas roubam do tempo das crianças. O uso de telas antes dos dois anos pode desencadear atrasos envolvendo a linguagem. Uma pesquisa da Universidade de Fortaleza indicou que, hoje, as crianças têm vocabulário 50% menor do que deveriam ter”, diz.
Segundo o especialista, o dado está relacionado ao fato de que no Brasil, crianças de dois anos ou menos chegam a passar 50 minutos por dia diante de telas. São 1.650 horas/ano nos quais deixam de exercitar o desenvolvimento das capacidades de interação, empatia e outros recursos interpessoais
Como se não bastasse esse prejuízo, é real o risco de que, assim como certos jogos, o uso de mídias digitais deixarem usuários viciados cada vez mais cedo.
A revista Sleep, da Universidade de Oxford, publicou estudo feito com 4 mil crianças de até oito anos e concluiu que 50% delas acordavam uma vez a cada noite querendo mexer no celular.
Nomofobia
A Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu a nomofobia – termo que define a dependência digital – como patologia. Conforme o órgão, pesquisas e evidências científicas revelam que, assim como o vício é semelhante ao de substâncias estimulantes (cocaína), euforizantes (ecstasy), sedativas (ansiolíticos) ou alucinógenas (cogumelos mágicos).
Entre os sinais de adicção às telas, está a preocupação excessiva em poder usar eletrônicos (estar sempre em local com wi-fi disponível, por exemplo), a perda de interesse em outras atividades, o isolamento e a ausência de fadiga ao uso das telas. Isso é facilmente identificável quando crianças e adolescentes viram as noites para jogar ou usar celulares e computadores.
“Isso é um grande problema. Os hormônios de crescimento são liberados à noite. Com sono entrecortado não conseguimos concluir processos cerebrais, levando ao desenvolvimento empobrecido e até inflamações. É exatamente no sono profundo que ocorre a consolidação da memória. Na medida em que o sono é superficial, temos uma receita do desastre, especialmente na Primeira Infância”, adverte Cristiano Nabuco.
A pesquisa Tic Kids Online Brasil, realizada em 2019 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br/NIC.br5), ligado ao Comitê Gestor da internet no Brasil, revelou outras preocupações. O trabalho entrevistou 2.964 crianças e adolescentes entre nove e 17 anos e seus pais. Dos entrevistados, 22% relataram contato com conteúdos sensíveis sobre alimentação, 15% em formas de machucar a si mesmo, 15% em formas de cometer suicídio e 10% sobre experiências com drogas. Ao redor de 26% sofreram discriminação ou cyberbullying, e 10% relataram acesso às imagens ou vídeos de conteúdo sexual. Ao todo, 20% admitiram deixar de comer ou dormir por ficar muito tempo na Internet e 25% não conseguiram controlar o tempo de uso, mesmo tentando.
Para a Sociedade Brasileira de Pediatria, esses dados servem de alerta sobre os riscos à saúde física e mental que o uso indiscriminado de telas pode causar. Mas na avaliação do psicólogo Cristiano Nabuco, as informações indicam que as famílias precisam ser mais enérgicas no controle de uso desses dispositivos.
“Os pais precisam exercer papel de pais e dizer aos filhos ‘Você vai usar esse aplicativo, esse não vai. Esse aparelho, esse, não. Agora, não. Celulares, computadores, videogames, TVs não podem servir de babás eletrônicas. E os pais (ao fazer a exigência) devem ser consistentes na fala e os primeiros a abrir mão do uso excessivo de aparelhos. Eles devem abrir mão de usá-los durante as refeições, por exemplo. Ou começamos de fato a agir de forma que faça sentido ou a tendência é termos uma geração de pessoas desajustadas”, adverte.
O papel da escola
Esse conjunto de fatores é mais uma oportunidade de a escola repensar sobre o uso racional e adequado de tecnologias digitais em sala de aula. Além disso, as instituições também podem apoiar as famílias, dando orientações sobre o tema.
No Colégio Marista Rosário, o projeto Nós na Rede exerce esse papel. O nome, que permite um trocadilho entre um tipo de amarração e o pronome pessoal, nasceu em 2018 justamente para debater as dificuldades ocultas nas redes sociais e na comunicação virtual como um todo. Com a ajuda de especialistas em psicologia, neurologia, neuropedagogia e áreas afins, a escola leva a pais e alunos evidências sobre os prejuízos da imersão.
Conforme a psicóloga Alessandra Paschoal, orientadora educacional do 3º ao 5º ano do Ensino Fundamental da escola, o assunto se tornou urgente, já que desde a pandemia as redes sociais são o principal canal de comunicação dos estudantes.
“Nesse período, o uso de telas aumentou de quatro a seis horas por dia. E não só pelas aulas, mas por jogos, Instagram, Tik Tok, Twitter. Esse uso excessivo pode acostumá-los a uma sensação de recompensa, e eles vão buscá-la o tempo inteiro. Quando a gente fala de dependência, estamos falando disso”, diz a orientadora.
A ideia do projeto não é demonizar redes sociais, esclarece Alessandra, mas sugerir que o equilíbrio é possível.
“Se as telas forem usadas corretamente, trazem benefícios, lazer, conhecimento; Mas é importante que essa exposição tenha limites. O uso excessivo gera um prejuízo muito grande, a criança imersa não tem o descanso cerebral necessário para desenvolver outras habilidades, o que pode gerar prejuízos no futuro”, diz.
O trabalho também sugere formas de os pais agirem de forma assertiva nas regras para uso de ferramentas digitais.
“Os pais têm de mostrar para os filhos que existe vida além da tela, há outras oportunidades de diversão. O primeiro passo é entrar no mundo deles e descobrir o que estão vivendo com tanto prazer e descobrir para propor uma alternativa, uma atividade de convívio. Podem propor ir ao cinema, brincar com jogos de tabuleiro, convidar amigos para vir em casa, fazer compras no shopping, dependendo da possibilidade de cada família e do gosto de cada jovem”, recomenda Alessandra.
A especialista reforça que os pais precisam ser exemplos no comportamento que querem ver seguidos. Assim, fica mais fácil para a escola dar o reforço positivo e complementar à orientação familiar.
“Gostamos de estar junto para auxiliar os pais a fazer uma intervenção assistida, entendemos que esse é o papel da escola também. Porque se a família faz um acordo em casa e ele chega na escola é o colega é livre, ou não ouve de outro adulto sobre os riscos da imersão, talvez não leve em consideração a importância disso”, finaliza.
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