Quando as Histórias em Quadrinhos encontram a educação
Plof! Bam! Pow! Das onomatopeias aos enredos envolventes, pesquisadores destacam o potencial das HQs como aliadas da aprendizagem em sala de aula
O que uma tese de doutorado publicada em 2014 e a série da Netflix O Eternauta, lançada este ano, têm em comum? A resposta é: histórias em quadrinhos! Isso porque o professor norte-americano Nick Sousanis foi pioneiro ao apresentar sua tese em formato de HQ na Universidade de Columbia, que deu origem a publicação Desaplanar, que chegou aos leitores brasileiros pela editora Veneta. Já a produção argentina protagonizada por Ricardo Darín é inspirada no quadrinho homônimo escrito por Héctor Germán Oesterheld com arte de Francisco Solano López.
Curiosidades à parte, essa introdução quer colocar os leitores do Educação em Pauta para pensar: onde mais as histórias em quadrinhos podem ser uma fonte de inspiração? Uma resposta possível é: na sala de aula!
Mas, antes, vamos brincar com o tempo e entender como tudo isso começou, bem ao gosto da Nona Arte? De acordo com o pesquisador, editor e roteirista Lielson Zeni, a origem dos quadrinhos é bastante debatida pelos pesquisadores, pois, para chegar a um ponto de origem, é preciso ter uma definição bastante apurada do que seria uma HQ.
“Hoje, a maior parte das discussões se satisfaz em apontar para Histoire de Mr. Jabot, do suíço Rudolf Töpffer, de 1833, ou para o trabalho do inglês William Hogarth, A harlot’s progress, de 1731, como as primeiras histórias em quadrinhos. O que se pode considerar como um ponto razoavelmente pacífico é que aquilo que se reconhece como uma história em quadrinhos hoje teve seu desenvolvimento sobretudo a partir do final do século 19 e começo do 20, com a expansão das artes gráficas e o avanço tecnológico da reprodução em massa”, esclarece.
Levar os quadrinhos para a sala de aula é uma tarefa que pode ter múltiplas funções, desde a ilustração de um fato histórico até a análise da linguagem e técnica de desenho utilizada pelo autor. Lielson, que lançou em 2023 a HQ Damasco, em parceria com o quadrinista Alexandre S. Lourenço, acredita que incentivar os estudantes a produzirem suas próprias histórias em quadrinhos permite que eles compreendam melhor a linguagem e a dinâmica dessa mídia. “A análise de algumas obras e a criação levam a uma compreensão mais profunda da leitura de quadrinhos, que é muito peculiar, diferente da leitura de um livro, por exemplo”, aponta.
Um caminho semelhante é destacado por Maria Clara Carneiro, professora do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e coordenadora de um grupo de pesquisa que promove oficinas de histórias em quadrinhos. Com mais de 15 anos de experiência em pesquisa e tradução, ela orienta que a observação da página, algo mais comum na literatura infantil, é parte do processo de leitura dos quadrinhos, e isso pode ser explorado pelos professores de inúmeras formas.
“A gente costuma dizer que a alfabetização acaba com a nossa vontade de desenhar. Mas as letras são desenhos também. O professor pode explorar a forma, as cores e os tamanhos das fontes com os alunos. A página do quadrinho é para ser explorada em várias direções e, a cada leitura, algo novo surge”, lembra a professora, que recomenda a publicação Imbatível, do autor Pascal Jousselin, em que o protagonista vai e volta no tempo e atravessa os quadros para cumprir suas missões de super-herói.
Integrantes do grupo de pesquisa conduzido pela professora Maria Clara Carneiro, da UFSM, apresentando o projeto da Jornada Internacional de Histórias em Quadrinhos da USP, em São Paulo | Créditos: Arquivo pessoal
E por falar neles, que ganham também as telas do cinema em adaptações nem sempre fiéis às versões em quadrinhos, buscar em Homem-Aranha e Superman inspirações para atrair a atenção dos estudantes para outras publicações pode ser uma alternativa interessante para os professores. Lielson afirma que os educadores devem provocar seus alunos sobre o que eles gostam de ler e, principalmente, sobre o que não gostam.
“Meus primeiros passos foram como crítico de quadrinhos, escrevendo sobre o que as histórias me provocavam. Isso foi importante tanto para a minha pesquisa quanto para criar as minhas próprias histórias. Entender o que nos atrai nos leva para outras obras e expande nosso repertório, algo importante no período escolar”, conclui Lielson.
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Expandir o repertório e fazer os leitores de quadrinhos pensarem é uma marca registrada do projeto Formiga Elétrica. Iniciado em 2014, em São Paulo, como um site que publicava resenhas de livros, filmes e, é claro, quadrinhos, hoje a iniciativa conta com um canal no YouTube e um podcast, o FormigaCast, onde quinzenalmente os editores se reúnem para debater assuntos relevantes da cultura pop e também jogar luz sobre obras não tão conhecidas do grande público.
Fundador do Formiga Elétrica, Daniel Fontana cresceu influenciado pelo irmão para a leitura de quadrinhos. Ele acredita que a Nona Arte pode integrar o currículo escolar por diferentes caminhos. “É preciso fazer os estudantes compreenderem a importância da atividade como algo lúdico. Em segundo, a validade das HQs como forma legítima de arte e expressão. A partir disso, desenvolver a noção de storytelling, que é absolutamente multidisciplinar e vai além da arte sequencial impressa ou audiovisual, aplicável em Marketing, apresentação de projetos, etc. Depois disso, o interesse por roteiro e desenho pode surgir naturalmente nos estudantes”, orienta.
Raphael Ranieri, que também integra o grupo de editores do Formiga Elétrica e foi professor por mais de uma década, aponta que o hiperestímulo causado pelas telas precisa ser levado em consideração na hora de propor atividades que envolvem leitura de quadrinhos, já que a atenção dos estudantes, que integram uma geração que utiliza cada vez mais cedo esses dispositivos, é limitada. Por isso, incentivar o acesso a toda forma de arte abre uma porta importante não apenas para trazer conhecimento técnico e histórico.
“Quadrinhos, cinema, música ou mesmo literatura são uma forma de acessar inteligências que normalmente não são trabalhadas, como a capacidade subjetiva, a inteligência emocional e ferramentas mais avançadas de comunicação. Os quadrinhos, por exemplo, são um ótimo meio de entender como formas de comunicação verbais e não verbais interagem para formar um todo, uma capacidade fundamental em diversos aspectos da vida e até mesmo de futuras profissões”, destaca Raphael.
Ele acredita que uma das missões do Formiga Elétrica é utilizar o espaço digital para trazer sugestões que fogem do óbvio. “Vemos nós mesmos menos como ‘detentores de conhecimentos obscuros’ de cultura e mais como facilitadores para que as pessoas possam compartilhar desses conhecimentos”, finaliza.
Brincar com as diferentes formas de expressão, mostrando que é possível transformar as histórias aprendidas em sala de aula. Foi com esse objetivo que o Colégio Marista Conceição, de Passo Fundo, encontrou nas histórias em quadrinhos uma forma de não apenas incentivar a leitura, mas colocar a criatividade dos alunos no centro da aprendizagem. Nas salas de aula, há um carrinho com livros e gibis, dando liberdade para os estudantes apreciá-los. Mas essa é a ponta de um fio que puxa outra história.
“Transformamos narrativas trabalhadas nas aulas em quadrinhos, com os alunos trabalhando em duplas ou grupos. Dependendo da característica da turma, também trabalhamos recontando histórias, em que a criança cria diálogos para os personagens, explora elementos visuais e até dramatizações baseadas nos quadros das HQs”, explica a professora Fernanda Carolina Petersen Machado.
Alunos dos terceiros anos do Colégio Marista Conceição, de Passo Fundo, fazem releituras e atividades lúdicas que envolvem HQs, que ficam disponíveis para os alunos dentro das salas de aula | Créditos: Colégio Marista Conceição / Divulgação
Ao trabalhar com as turmas de terceiros anos do Ensino Fundamental da instituição, ela acredita que os quadrinhos são um material importante nesta etapa da vida escolar, onde os estudantes estão consolidando o processo de alfabetização e aprimorando a fluência da leitura. Por trazerem textos curtos, envolventes e visualmente atrativos, o formato captura a atenção dos alunos, que também desenvolvem a interpretação da linguagem não verbal.
“É muito legal observar as expressões faciais dos estudantes enquanto leem, é possível ouvir até algumas gargalhadas”, lembra Fernanda.
Maria Clara Carneiro lembra que, nas oficinas de quadrinhos que promove, é comum alguns participantes apontarem os gibis da Turma da Mônica como o início de seu interesse pela leitura. Com uma pesquisa de doutorado voltada para autores franceses de quadrinhos, ela avalia que aquela ideia de que esse formato é uma leitura fácil é quebrada quando professores passam a ter acesso a obras como Escuta Formosa Márcia, de Marcello Quintanilha, vencedor do Fauve D’or, principal festival de quadrinhos da França.
A professora lembra que um quadrinho é, antes de tudo, uma produção criativa e artística, e o mercado brasileiro conta com inúmeras adaptações literárias nesse formato e autores que criam narrativas complexas e sofisticadas.
“Quem não tem o costume de ler um quadrinho, quando pega um quadrinho, por mais simples que seja, às vezes fica meio perdido. A relação com as cores, com a forma das letras. Entender essas relações, lendo a imagem e a letra como imagem, ajuda o estudante a ler o mundo”, conclui.
E que tal começar a ler esse mundo hoje mesmo? Turma da Mônica, Quarteto Fantástico e HQs de diversos autores brasileiros podem ser companheiros nessa viagem. O Educação em Pauta convidou os entrevistados desta reportagem (e também a repórter que a escreveu) a sugerirem alguns quadrinhos imperdíveis para usar em sala de aula e fugir do óbvio. Confira!
:: Chico Bento: Arvorada, de Orlandelli (Panini)
:: Imbatível: Justiça e legumes frescos, de Pascal Jousselin (Nanabooks)
:: Angola Janga, de Marcelo D’Salete (Editora Veneta)
:: The Spirit, de Will Eisner (DC Comics)
:: Desaplanar, de Nick Sousanis (Editora Veneta)
:: Damasco, de Alexandre Lourenço e Lielson Zeni (Brasa Editora)
:: O Maestro, o Cuco e a Lenda, de Wagner Willian (Editora Texugo)
:: Beco do Rosário, de Ana Luiza Koehler (Editora Veneta)
:: Sobreviventes da Fronteira, de Fred Rubim (Editora Hipotética)
:: Piracema, de Jéssica Groke (Editora Mino)
:: Ânsia Eterna, de Verônica Berta (SESI-SP Editora)
:: Tungstênio, de Marcello Quintanilha (Editora Veneta)
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