Unesco enfatiza formação de professores com foco em IA e ética

Guia orienta caminhos para o uso crítico e criativo da tecnologia em sala de aula e estimula a capacitação baseada em problemas reais

por: Eduardo Wolff | eduardo@padrinhoconteudo.com
imagem: Freepik

A Inteligência Artificial (IA) está redesenhando o presente, e os professores são protagonistas dessa transformação. Com esse olhar, a Unesco criou o guia AI competency framework for teachers (Estrutura de competências de IA para professores, em português), que não apenas orienta a formulação de políticas educacionais e programas de formação, mas também aponta caminhos para o uso ético, crítico e criativo da tecnologia em sala de aula.

Conforme comenta a diretora-Geral Adjunta de Educação da organização, Stefania Giannini, os professores precisam ser capacitados com uma certa urgência. Até 2022, apenas sete países haviam desenvolvido uma estrutura de competência em IA ou um programa de desenvolvimento profissional para docentes.

Com uma abordagem flexível e adaptável aos diferentes contextos, o documento propõe um roteiro estratégico e prático para redes de ensino e educadores navegarem pelas complexidades da era digital. A formação contínua de professores aparece como eixo central dessa mudança e é nela que reside o maior potencial transformador.

Esse guia foi elaborado por Fengchun Miao e Mutlu Cukurova, especialistas em educação e tecnologia vinculados à Unesco. Ele se apoia em marcos anteriores da organização, como o ICT Competency Framework for Teachers, as Recomendações sobre a Ética da Inteligência Artificial (2021) e o Beijing Consensus on Artificial Intelligence and Education (2019).

Breve análise do guia

Após analisá-lo, o professor e coordenador do Núcleo de Educação Online (NEO) da Faculdades Integradas de Taquara (Faccat), Sandro Cezer Pereira, ressalta que, em um momento em que a tecnologia avança rapidamente e modifica os papéis na educação, o documento ajuda a garantir que os docentes desenvolvam competências essenciais. Isso para manter o protagonismo no processo de ensino-aprendizagem, promovendo uma abordagem centrada no ser humano e alinhada aos princípios de direitos e ética.

Já a pesquisadora e professora da Escola Politécnica da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Lucia Giraffa, destaca que a Unesco estimula uma reflexão crítica ao apontar desafios éticos, limites e possibilidades resultantes do uso das IAs, especialmente das generativas. “Essas tecnologias vêm impactando significativamente o cotidiano das pessoas desde o final de 2022, mas já convivemos com a IA há décadas, muitas vezes sem perceber”, pontua.

Formação contínua, contextualizada e com sentido

O guia da Unesco sinaliza que a transformação digital nas escolas não acontece pela simples presença de computadores ou conexão à internet. Ela depende de quem está à frente da sala de aula. Por isso, o documento é enfático: investir na formação docente é acreditar no futuro da educação.

Mais do que ensinar a usar ferramentas, a proposta é formar professores capazes de integrar a tecnologia ao currículo, planejar aulas híbridas, produzir recursos digitais, analisar dados sobre a aprendizagem e desenvolver competências críticas, como ética digital, letramento midiático e segurança online.

Os formatos recomendados incluem formações híbridas, mentorias digitais, comunidades de prática e plataformas personalizadas. O tempo e o contexto dos professores devem ser respeitados, com apoio prático, reconhecimento formal (como certificações) e vínculo com a progressão na carreira.

Com essa estrutura, espera-se que os educadores se tornem mais confiantes no uso das tecnologias, inovem suas práticas com intencionalidade e contribuam para uma cultura digital colaborativa nas escolas.

Currículo vivo e conectado ao presente

O documento também convida a repensar o currículo e a prática pedagógica. Não basta digitalizar o modelo tradicional. É preciso refletir sobre o que, como e por que se ensina. A tecnologia deve ser usada com intencionalidade educativa, ou seja, promover autoria, participação ativa, personalização da aprendizagem e conexão com o mundo real.

Entre as práticas pedagógicas inovadoras sugeridas estão a aprendizagem baseada em projetos e resolução de problemas reais; metodologias ativas, como sala de aula invertida e gamificação, e aprendizagem entre pares. Também constam avaliação formativa com ferramentas digitais; produção de conteúdos pelos próprios estudantes (vídeos, blogs e podcasts) e ambientes híbridos e flexíveis, que combinem o presencial e o virtual, o individual e o coletivo.

A inovação precisa caminhar junto com a equidade. A proposta é usar a tecnologia para incluir. Isso significa garantir acessibilidade, atender ritmos de aprendizagem diversos e adaptar estratégias para alunos com deficiência ou sem acesso digital.

Apoio técnico e pedagógico no cotidiano

Só a formação não basta, os professores precisam de suporte constante no dia a dia da escola. A Unesco defende a criação de redes de apoio técnico e pedagógico que sustentem a inovação, ajudem na solução de problemas e garantam a continuidade das ações.

Isso inclui mentores pedagógicos digitais, professores multiplicadores e coordenadores de inovação e técnicos de informática nas escolas ou polos regionais, com manutenção regular de equipamentos. Além disso, são necessários curadoria de recursos digitais, ajuda no planejamento de aulas tecnológicas e uso pedagógico de dados para personalizar o ensino.

O trabalho conjunto entre áreas técnicas e pedagógicas é essencial. As soluções tecnológicas devem estar a serviço da aprendizagem, não apenas da infraestrutura. A meta é construir uma cultura digital integrada, em que tecnologia, formação e prática caminhem lado a lado.

Confiança, autonomia e protagonismo docente

A autonomia docente não é improvisação, mas sim a capacidade de fazer escolhas bem fundamentadas, éticas e criativas. E, para isso, é preciso respaldo, tempo e reconhecimento.

O guia reforça para que os professores tenham voz ativa na formulação de políticas digitais, na definição de currículos e na escolha de recursos. Que sejam autores de suas práticas, não apenas executores de decisões.

Para isso, são fundamentais a formação contínua de qualidade, o tempo para planejamento e a experimentação, valorização institucional, certificação e apoio técnico em redes colaborativas. Bem como criar um ambiente onde os educadores possam experimentar, refletir e ajustar suas práticas para o protagonismo florescer.

Escolas como laboratórios de inovação

Por fim, o documento convida as escolas a se tornarem espaços vivos de experimentação. Salas maker, laboratórios digitais, ambientes flexíveis e interdisciplinares são importantes, mas não suficientes. 

O fundamental é a cultura da inovação, que faz a diferença. Ela se constrói com estímulo à criatividade e curiosidade, liberdade para testar novas ideias, integração entre áreas do conhecimento e envolvimento da comunidade escolar.

Redes de ensino podem apoiar esse movimento criando escolas-piloto, núcleos de inovação, grupos de mentoria entre educadores e espaços de troca de experiências. A proposta é ousada, mas necessária: transformar a escola em um lugar de invenção, autoria e sentido.

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>> A Inteligência Artificial na prática dentro da sala de aula

Desafios a serem enfrentados

Diante das orientações da Unesco, a pesquisadora da PUCRS destaca que o maior desafio é o letramento em Inteligência Artificial, tanto para docentes quanto para discentes. A principal questão está na formação continuada dos professores, que precisam desenvolver um domínio crítico da IA. Já no caso dos gestores, o foco deve estar na definição de políticas internas claras sobre ética e privacidade no uso dos dados coletados pelas ferramentas.

Essa formação docente deve incluir oficinas práticas que incentivem o entendimento crítico da IA, com atenção aos limites éticos e aos riscos envolvidos. Também é essencial promover o desenvolvimento de habilidades para avaliar as ferramentas antes de incorporá-las ao cotidiano escolar. Mais do que dominar a tecnologia, trata-se de manter uma reflexão constante sobre o papel humano na educação, garantindo que a IA esteja sempre a serviço de professores e estudantes.

Não se trata de impor direções prontas, mas de apontar caminhos para uma integração consciente e eficaz. Para Lucia, a IA deve ser vista como uma aliada, capaz de oferecer subsídios para intervenções pedagógicas mais personalizadas, alinhadas às necessidades reais de aprendizagem.

Essa integração, no entanto, exige experimentação. É preciso estudar, testar e explorar diferentes ferramentas, compreendendo seu funcionamento e possibilidades. Superar o encantamento inicial é fundamental para adotar uma postura mais crítica. Os estudantes, por sua vez, devem ser estimulados a utilizar a IA como suporte ao aprendizado, sem abrir mão do protagonismo na construção do conhecimento.

Facilitador de aprendizagens

A IA deve ser encarada como uma ferramenta de apoio (não de substituição), reforçando o papel do professor como mediador e facilitador do conhecimento, de acordo com o coordenador do NEO da Faccat. Sua adoção deve priorizar a personalização do ensino, a transformação de atividades tradicionais em experiências mais interativas e o estímulo à autonomia do aluno. Assim, o professor permanece como figura central de orientação, enquanto a IA contribui para diversificar estratégias, oferecer feedback individualizado e ampliar o acesso ao conhecimento.

Dessa forma, o papel docente evolui de transmissor de conteúdo para orientador, facilitador e co-criador de aprendizagens. Isso inclui fomentar o pensamento crítico, a criatividade e a colaboração entre os alunos. “Ele precisará atuar na formação e supervisão do uso ético e responsável da IA pelos estudantes, além de se manter atualizado com as inovações tecnológicas e pedagógicas decorrentes desse avanço”, afirma Pereira.

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