Os desafios para fortalecer o ensino da Língua Portuguesa no país
Diante do cenário enfrentado por professores no ensino de gramática e literatura, pesquisadores apontam meios de driblar o analfabetismo funcional e incentivar a leitura
O Brasil alcançou o índice mais baixo de analfabetismo entre jovens e adultos dos últimos nove anos, em 2024. Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em junho, o indicador recuou de 5,4% em 2023 para 5,3% no ano passado. No entanto, o levantamento aponta que 9,1 milhões de brasileiros de 15 anos ou mais continuam sem saber ler e escrever.
Mas há ainda outro fator que precisa ser aferido quando se trata de conhecimento da Língua Portuguesa: a interpretação de texto. Em maio, o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) acendeu um alerta. O estudo apontou que três em cada 10 brasileiros com idade entre 15 e 64 anos não sabem ler e escrever ou sabem muito pouco a ponto de não conseguirem compreender pequenas frases ou identificar números de telefones ou preços. Esses são os chamados analfabetos funcionais – grupo que corresponde a 29% da população nacional (o mesmo percentual de 2018).
Já um estudo realizado por pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) apontou que, quando comparamos estudantes das redes privada e pública, há uma diferença de até um ano na fluência de leitura. A pesquisa avaliou resultados de 1.296 alunos do 2º ao 5º ano do Ensino Fundamental em todo o Brasil, considerando ainda os impactos da pandemia e o cenário pós-coronavírus.
Para além das desigualdades que perpassam as diferentes realidades socioeconômicas do país, contudo, os dados também refletem os desafios enfrentados por professores em sala de aula na contemporaneidade, como a dificuldade em reter a atenção dos estudantes e os lapsos de aprendizado deixados como herança pela pandemia de coronavírus.
Cláudio Primo Delanoy é doutor em Letras, com pós-doutorado em teorias do discurso e ensino pela PUCRS. Enquanto docente, ele já sentiu na pele a dificuldade de capturar e reter a atenção de alunos cada vez mais hiperconectados e com senso de imediatismo aguçado pelos dispositivos tecnológicos. Para driblar esse impasse, ele acredita no dinamismo pedagógico e, sobretudo, na produção textual.
“É um desafio fundamental para nós, professores, conquistar a atenção dos alunos. É preciso trabalhar com os estudantes para que eles entendam que não é só uma questão classificatória, como estudo gramatical, análise sintática e classificação de palavras. Precisamos cada vez mais valorizar a leitura. Em algum momento, vamos precisar daquilo que chamamos de metalinguagem. Em algum momento, vamos precisar falar do substantivo, mas o essencial é a produção textual. O desafio é fazer com que o aluno entenda essa importância”, frisa Delanoy.
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Um novo desafio se tornou recorrente para os professores que buscam estimular a produção textual junto aos alunos: o uso de Inteligência Artificial (IA). Embora existam ferramentas capazes de detectar textos produzidos com o uso do ChatGPT ou do Gemini, por exemplo, a busca incessante dos docentes se debruça não em coibir o uso da IA, mas em incentivar o estudante a utilizar essas ferramentas apenas como instrumentos auxiliares, não como substitutas.
“É só fazer o pedido certo que a Inteligência Artificial gera o texto. Mas estamos com estudantes em formação. Na PUCRS temos professores em formação. Queremos que a IA seja usada como ferramenta, não como substituta. Sempre buscamos atualizações, fortalecendo no aluno que aquele texto é dele e que ele precisa se responsabilizar por aquilo. Que aquele texto precisa ser significativo. Ele tem que ter voz”, pontua Delanoy.
Para a professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Daniela Favero Netto, o trabalho remoto com os alunos durante a pandemia serviu como uma espécie de ensaio para a transformação digital que hoje alcança as instituições de ensino. Ela pontua que o cuidado mais importante ao se utilizar a IA – seja em ambientes virtuais educativos, seja com recursos audiovisuais – é que haja um aprofundamento, uma mediação que conduza o processo formativo ao aprimoramento, a uma progressão de conhecimento. Isso vale tanto para estudantes quanto para professores.
“Para além do uso como recurso pedagógico em sala de aula, não tenho dúvidas de que a IA tem impacto positivo no planejamento docente, mas considero importante destacar que, antes do uso da tecnologia, há toda uma formação técnica, intelectual, cultural, social, emocional que constitui o fazer docente. Para todo “prompt” dado, há uma intencionalidade sedimentada em uma formação ampla, sustentada por referências estudadas, por um ponto de vista, por uma história de vida; isso não é pouco e precede a máquina”, diz a professora.
O professor Cláudio Primo Delanoy pontua que estudar uma língua é estudar formas de ver o mundo, uma vez que as questões culturais são divulgadas e materializadas por meio da linguagem.
“Os professores têm nas mãos a possibilidade de iniciar o estudante em outras culturas por meio de texto literário, de reportagens. É também um meio de o aluno perceber o seu mundo”, acrescenta.
Delanoy avalia que a divisão das disciplinas em Gramática (Língua Portuguesa), Literatura e Redação, como ocorre em algumas escolas, dificulta o aprendizado dos alunos. Segundo ele, com essa separação, com professores diferentes, se torna mais difícil para o estudante perceber de que forma um tema dialoga com o outro.
“O aluno deixa de perceber como um instrumento de análise sintática que ele aprendeu em uma aula de gramática, como orações coordenadas ou subordinadas, vai trazer sentidos distintos na literatura. Essa junção seria importante para que as aulas de literatura não sejam apenas uma mera expressão de subjetividade do tipo: ‘eu acho que esse livro quis dizer tal coisa’. Acaba tendo muito achismo e pouco respaldo linguístico”, analisa.
Delanoy lembra que, na literatura, nada é por acaso. Ele cita como exemplo um texto poético, onde cada conector tem a função de construir um sentido.
“Se nós temos uma sequência de “es” em um texto literário. O que essa sequência de “es” quer dizer? O que essa adição repetida quer dizer? A ideia é que o aluno perceba que se tem esse exagero de “es” no texto isso tem um significado. E ele tem que saber que isso significa uma adição”, exemplifica.
Outro exemplo ocorre quando o aluno lê uma notícia de jornal. O professor salienta que o estudante deve conseguir observar que não existe o mesmo volume de adjetivos que em um texto literário, porque não se trabalha com a mesma carga de subjetividade.
“Tudo isso é conhecimento de língua que vai transbordar tanto na análise do texto literário quanto na produção da redação. Claro que as disciplinas podem ter focos distintos, mas não se pode fazer literatura sem saber as normas da regra escrita”, sublinha.
O professor da PUCRS pontua que o aluno já ingressa na escola tendo o domínio da língua, a partir da fala. O que ele precisa aprender é a leitura (decodificação) e a escrita. Contudo, a metodologia de ensino que prioriza a gramática em vez da produção textual pode gerar impactos que são observados, inclusive, no Ensino Superior.
“O sistema da nossa fala e o sistema da nossa escrita são diferentes. Ao longo dos anos, o aluno vai aprender a metalinguagem, em que se começa a dar nomes para alguns desses elementos que compõem a língua. Ele começa a aprender o que são sujeitos, substantivos, mas quando se pede para escrever um parágrafo, ele não consegue. Então, essa falta deveria ser sanada nos primeiros anos e a metalinguagem deveria ser deixada para depois. Alguns alunos chegam ao Ensino Superior com dificuldade na escrita, sem um domínio de estrutura de texto”, comenta.
Já a professora Daniela Favero Netto, avalia que a defasagem no aprendizado de Língua Portuguesa decorre de diferentes fatores.
“O estudante, muitas vezes, já chega à escola com defasagens importantes, que refletem desigualdades sociais, econômicas e culturais vividas antes da alfabetização formal. Fatores como o difícil acesso à educação infantil, a falta de estímulo ao letramento no ambiente familiar, a insegurança alimentar, a violência, entre outros, influenciam diretamente no desenvolvimento cognitivo, físico e emocional da criança. Dito isso, a defasagem não se inicia na sala de aula nem decorre do trabalho pedagógico realizado nos anos iniciais. Trata-se de um fenômeno complexo, de raízes estruturais, que se reflete em todas as etapas escolares”, afirma a professora.
Daniela Favero Netto avalia que uma estratégia efetiva para superar as dificuldades de leitura e interpretação de texto enfrentadas por estudantes desde as séries iniciais ao Ensino Médio é a elaboração de um método de ensino que ultrapasse a ideia de apenas “passar de ano” ou “reprovar”.
“Um bom diagnóstico precisa considerar aspectos qualitativos, o desenvolvimento de habilidades cognitivas e socioemocionais, a participação nas atividades, além das condições sociais, emocionais e culturais que impactam o processo de ensino-aprendizagem”, diz a pesquisadora.
A professora Daniela reitera a importância do PNLD Literário, que é um programa do governo federal que possibilita que escolas públicas selecionem livros de qualidade para os estudantes, com uma obra por aluno em sala de aula, viabilizando que haja discussão ampla e aprofundada do texto pela turma.
“É um programa que deve ser exaltado, especialmente porque muitos estudantes não têm livros à disposição em suas casas, e as bibliotecas não dispõem de exemplares suficientes de uma mesma obra para uma turma cheia. Pode-se fazer muito com bons livros em sala de aula!”, frisa.
No Colégio Murialdo, de Caxias do Sul, na serra gaúcha, os alunos participam de uma série de atividades que visam a desenvolver suas habilidades linguísticas. Ao longo do ano, são realizados projetos interdisciplinares diferenciados para cada faixa etária com o objetivo de tornar a biblioteca um ambiente dinâmico, vivo e integrado à rotina escolar. Neste ano, as aquisições literárias da escola priorizaram títulos com maior valor literário e menor apelo comercial.
Os alunos da Educação infantil, por exemplo, participam de oficinas de leitura direto na biblioteca. No Ensino Fundamental I (do 3º ao 5º ano) as contações de histórias ocorrem em sala de aula. Para as turmas do 3º ano tem o projeto Contos Viajantes, em que cada turma recebe sacolas de contos destinados à leitura em momentos livres. Para os 4º anos, o projeto Passaporte Literário será desenvolvido como estímulo à leitura e à exploração de diferentes culturas. Já para o 5º ano, tem a Biblioteca Viajante em que as turmas recebem um carrinho com livros para leitura em sala, intercalando com visitas à biblioteca.
A cada trimestre a biblioteca promove um encontro literário noturno voltado aos alunos do 6º ao 9º ano. Aos estudantes do Ensino Médio também está previsto um encontro literário por semestre com espaço aberto para os alunos compartilharem suas leituras atuais. Serão adquiridos os livros exigidos nos vestibulares, a fim de apoiar os estudantes em sua preparação acadêmica.
Estudantes participam de dinâmica no Clube do Livro | Crédito: Colégio Murialdo/ Divulgação
Além dos alunos, há também um Clube do Livro destinado a professores e colaboradores, que ocorre sempre na última terça-feira de cada mês, promovendo reflexões sobre temas sociais relevantes, estimulando a empatia entre os educadores e fortalecendo os laços na comunidade escolar. Entre os títulos já debatidos estão alguns clássicos contemporâneos como: Tudo é Rio, de Carla Madeira; Suicidas, de Raphael Montes; e O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório. Além das atividades, a escola realiza a sua tradicional Feira do Livro – que, em 2025, traz o tema “Ler faz vibrar o coração”.
Já o Colégio Marista Conceição, de Passo Fundo, aposta em atividades em sala de aula, visitas de autores convidados, hora do conto, recital de poesias, teatro e práticas de oralidade para reforçar o aprendizado dos estudantes. O Clube da Leitura, que é realizado quinzenalmente nas sextas-feiras desde 2021, é um momento para conversar sobre as leituras feitas pelos estudantes dos anos finais e Ensino Médio que integram as atividades. Além das leituras, também são desenvolvidas outras atividades ligadas ao universo literário, como o Stop Literário, Quizz Literário e Dicionário Maluco.
A troca de experiência instiga o interesse dos participantes para novos títulos de livros e gêneros literários aos quais não estavam acostumados, além de criar laços de amizade e incentivar o hábito da leitura. Outra forma de incentivo à leitura no Marista Conceição é o projeto Dando Asas à Imaginação, uma iniciativa que promove o contato dos estudantes da Educação Infantil e dos anos iniciais com o universo literário com atividades lúdicas. A participação das famílias também é incentivada com tarefas que levam a magia dos livros para casa, fortalecendo o hábito da leitura em conjunto.
Diante dos múltiplos desafios que atravessam o ensino da Língua Portuguesa no Brasil – da persistência do analfabetismo funcional à influência crescente da tecnologia em sala de aula –, iniciativas pedagógicas comprometidas com a leitura, a escrita e a interpretação crítica tornam-se ainda mais urgentes e necessárias. Ao valorizar a produção textual, integrar a literatura à gramática e promover o acesso a livros de qualidade, escolas e educadores contribuem para formar leitores mais conscientes, preparados não apenas para os exames escolares, mas também para compreender e transformar o mundo que os cerca.
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