Apps de produtividade combatem a procrastinação com gamificação
Profissisonais da educação e da tecnologia detalham como aplicativos usam laços emocionais e elementos lúdicos para impulsionar o foco e o trabalho
Estudos apontam que 20% dos adultos são procrastinadores crônicos e que 75% dos estudantes universitários são procrastinadores habituais. No Brasil, o número de procrastinadores crônicos gira em torno de 20 milhões de pessoas. Embora possa ser uma prática puramente comportamental, quando acompanhada de outros fatores, a procrastinação pode ser indicativo de algum quadro clínico, como o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). O diagnóstico, contudo, deve ser feito por um profissional de saúde a partir de critérios clínicos.
Entretanto, o uso de aplicativos de produtividade pode ser um potente aliado no ganho de produtividade tanto para estudantes quanto para os profissionais. A gerente de Desenvolvimento de Ensino da Graduação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), Cristiane Maria Schnack comenta que esses apps podem ajudar na criação de novas rotinas, no estímulo à curiosidade e no desenvolvimento de outras formas de recompensas aos usuários, para além do uso de redes sociais.
“Aqui, precisamos entender que a conexão a redes sociais atua na forma de ‘recompensas’ de bem-estar instantâneas, gerando um ciclo vicioso para o cérebro, como bem explorado por Anna Lemke em sua obra Geração Dopamina, em que é preciso reaprender a encontrar o equilíbrio entre o prazer e a dor, e de gerir a compulsão pelo consumo excessivo e da gratificação instantânea que aplicativos e redes sociais geram”, pontua.
Contudo, ela alerta que esses apps podem auxiliar, mas podem também se tornar parte do ciclo vicioso se novas redes de recompensas e, em especial, de ‘sustentação da dor pela não gratificação instantânea’ não forem construídas.
Você precisa escrever um texto, mas as notificações de aplicativos de mensagens e das suas redes sociais não param de te desconcentrar. A solução para esse problema pode estar nas mãos de um feijãozinho animado que adora tricotar. É exatamente essa a proposta do aplicativo Focus Friend, criado pelo youtuber norte-americano Hank Green, que chegou ao topo da App Store em países como Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia em agosto. No Brasil, ele já figura entre os 50 mais baixados na categoria Produtividade.
A ideia é simples: você instala o aplicativo e dá um nome ao feijãozinho animado. Ele explica que precisa decorar a casa onde ele mora e que, para isso, ele precisa produzir meias de tricô, que serão trocadas pelos objetos desejados. Contudo, essas meias serão produzidas conforme o tempo que você se mantiver focado em alguma atividade. Você define o tempo para a execução da atividade e o app aciona imediatamente um cronômetro na tela do celular, enquanto o feijão tricota. Você é alertado diversas vezes de que, se precisar interromper a atividade, o feijãozinho ficará muito triste. Desse modo, o app se vale da culpa baseada na conexão emocional do usuário com o personagem para combater a procrastinação.
Na verdade, a redação deste texto contou com a companhia do Focus Friend. Para o teste desta reportagem, o amigo virtual foi batizado de “Feijoão”. O recurso, de fato, proporciona uma motivação palpável para a produção. Em um teste de 45 minutos, foi possível gerar 42 meias — o que (para a frustração deste repórter) não foi suficiente nem para comprar um tapete virtual. No entanto, essa sensação de que tempo estava sendo convertido em uma “moeda de troca” foi a principal chave para manter o foco, incentivando a conquista de mais mobília para a sala de estar de Feijoão.

Só no primeiro mês, o Focus Friend já havia ultrapassado a marca de 1 milhão de downloads | Crédito: Divulgação
Lançado em julho, só no primeiro mês o aplicativo já havia ultrapassado a marca de 1 milhão de downloads, somando os números da App Store (iOS) e da Google Play Store (Android). O sucesso de apps de produtividade como o Focus Friend está diretamente relacionado ao uso da gamificação e à construção de laços afetivos entre usuários e personagens.
Cristiane comenta que as pessoas tendem a criar vínculos emocionais com representações digitais simples, como o feijão do Focus Friend ou a corujinha do Duolingo, por exemplo, por que essas representações gráficas mais simplificadas facilitam o processamento de informações dos usuários, permitindo que se conectem mais rapidamente.
“Em geral, representações que apresentam iconografia mais lúdica também conectam a emoções de base do ser humano e criam uma ligação potente com o aspecto lúdico que aplicativos gamificados procuram”, diz.
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O professor do curso de Jogos Digitais da Feevale, João Mossmann, faz uma importante observação conceitual: gamificação não significa simplesmente usar jogos em alguma atividade, mas sim, aplicar estratégias e elementos de design de jogos em outros contextos, como ambientes de aprendizagem, para promover engajamento e motivação. Ele reitera que a consciência do avanço de fases é o que motiva um usuário a seguir jogando e traça um paralelo com o sistema de ensino convencional.
“O progresso de fases é algo presente nos jogos. Nós temos uma preocupação muito grande em dar esse feedback para o jogador, para que ele consiga saber que está evoluindo durante o jogo. Se pararmos para pensar, isso não é muito diferente, por exemplo, da maneira com que estão organizados, inclusive da maneira mais clássica, os anos escolares”, compara.
Mossmann explica que muitos aplicativos, como os de produtividade, empregam princípios da gamificação com o objetivo de criar hábitos nos usuários. Elementos como progresso visível e metas claras são fundamentais, segundo ele, pois são características típicas dos jogos que mantêm o jogador engajado e consciente de sua evolução. Quando um aplicativo permite que o usuário defina suas próprias metas e visualize seu avanço, ele promove autonomia e autorregulação, estimulando a pessoa a internalizar comportamentos desejáveis sem depender constantemente de lembretes externos.
O professor João Mossmann conta que vem trabalhando há uma década no jogo educativo As Incríveis Aventuras de Apollo & Rosetta no Espaço. O game foca na estimulação das funções executivas – habilidades cognitivas que controlam e regulam pensamentos, emoções, ações e impulsos – mais especificamente do controle inibitório, em crianças do Ensino Fundamental. O jogo conta a história dos irmãos Apollo e Rosetta, que são apaixonados pelo espaço. Toda sexta-feira à noite, eles acampam no quintal de casa, fantasiados de exploradores espaciais, para olhar as estrelas. Numa dessas noites, eles adormecem e sonham com o mestre vindo convidá-los para participar de uma escola de exploradores espaciais.
“Cada minigame dentro desse jogo é como se fosse uma etapa, para que a criança se torne, ao final, um explorador espacial. Nas escolas em que aplicamos o programa de estimulação cognitiva, é corriqueiro que as crianças comecem a brincar como se fossem os personagens. Então, elas se fantasiam na hora do intervalo de Apollo e de Rosetta, e começam a brincar com os exercícios que elas estavam fazendo no jogo. Isso é um fenômeno que a gente chama de transferência, que é quando aquela ludicidade que se tinha só no jogo, a criança consegue transferir para um outro momento de brincadeira dela”, pontua.
Mosmann também lembra do caso do jogo digital EndeavorRx, que promove a estimulação cognitiva e foi reconhecido pelo órgão regulador FDA (Food and Drug Administration), nos Estados Unidos, como parte complementar no tratamento de crianças com TDAH. Esse exemplo, semelhante ao projeto desenvolvido pela equipe da Feevale, demonstra que os jogos podem ter benefícios clínicos e educacionais comprovados, reforçando o valor das tecnologias interativas para além do entretenimento.
Ele conclui ressaltando que aplicativos que se valem da gamificação costumam ser lembrados apenas por seus possíveis aspectos negativos – como distração ou dependência –, mas salienta que é essencial reconhecer seu potencial positivo, tanto para o aprendizado de crianças quanto para o desenvolvimento de adultos.
Cinco aplicativos para combater a procrastinação
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