Como prevenir e se defender de casos de assédio no ambiente escolar

Responsabilidade civil recai sobre a instituição de ensino, que precisa dispor de mecanismos de prevenção, combate e gestão de casos de importunação sexual ou moral da comunidade escolar

por: Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com.br
imagem: Freepik

Os casos de assédio no ambiente de trabalho, em 2023, foram maiores do que a soma dos dois anos anteriores. A estatística, apresentada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em maio deste ano, leva em consideração tanto o assédio moral quanto o sexual. Foram mais de 15 mil registros no ano passado, ante pouco mais de 14 mil somando 2021 (com 8,1 mil casos) e 2022 (5,8 mil casos).

Assédio moral é a principal causa dos registros, com 13.743 casos em 2023 – os outros 1.384 foram de assédio sexual. O índice desperta o sinal de alerta entre os gestores das empresas de qualquer segmento. No caso do ensino, há ainda a preocupação com casos de assédio envolvendo estudantes (entre si ou com funcionários).

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A primeira questão é definir o que caracteriza assédio. Embora seja uma questão subjetiva, há sinais passíveis de identificação. Em linhas gerais, trata-se do ato de importunar alguém, de forma abusiva, com perseguições, propostas, declarações ou insistências, tanto de forma virtual quanto presencial.

O assédio pode ocorrer no ambiente de trabalho, por meio de conduta abusiva física, psicológica ou verbal, implicando em risco à dignidade, personalidade ou honra da vítima. Mas também pode ser praticada nas demais relações interpessoais da escola, com alunos, professores, coordenadores etc. 

Essa prática é moral quando, por exemplo, sobrecarrega um profissional com tarefas novas ou muito trabalho, causando sentimento de incompetência ou inutilidade. Fazer brincadeiras, com danças, prendas e afins, também pode ser enquadrado, devido a um eventual constrangimento.

Trazendo para o ambiente escolar, fazer brincadeiras sempre com o mesmo aluno, diante dos demais colegas, ou repreender contínua e publicamente o estudante, fica muito próximo da tênue linha que separa o que é assédio do que não é. “Cobrar um empregado para que trabalhe bem, atinja objetivos, não é assédio. Agora, se for uma relação abusiva, que ultrapassa a exigência do trabalho, pode ser configurado. Uma crítica fora do padrão, mesmo que ele esteja evoluindo. E com o aluno a mesma coisa: se o professor sempre insiste [em repreendê-lo], pode ser que precise estudar mais, mas também pode ser uma pegação no pé que ultrapasse o limite do bom senso”, entende a advogada Letícia Dalcin, especialista em Direito do Trabalho e assessora jurídica do SINEPE/RS.

O assédio sexual também consiste em constranfimento, mas com conotação sexual. Geralmente ele tem uma questão de hierarquia, que vem de forma descendente, ou seja, de chefe para subordinado. “Pode acontecer o contrário, ser ascendente, mas é menos comum. Além disso, infelizmente, quem mais sofre são as mulheres – não só, mas ainda a maioria”, frisa.

Relações de trabalho

Quando se fala em relações humanas, é preciso sempre ter atenção para atitudes que podem fugir de um comportamento ético e salutar. Por isso, a questão do assédio perpassa todos os setores da economia e os segmentos da sociedade. No entanto, o aumento do registro de casos mostra que há um caminho um tanto longo a ser percorrido.

“Acredito que esse aumento se dê pelas possibilidades criadas, no que tange a denúncias, e até mesmo ao encorajamento das pessoas para que manifestem situações sobre as quais, antes, se tinha até um desconhecimento do quanto mal podem causar”, analisa o advogado Gustavo Casarin, especialista em Direito do Trabalho e sócio do escritório MFO Advogados.

Casarin lembra que o estresse da vida moderna tem causado um adoecimento emocional muito grande nas pessoas. Nesse contexto, um ambiente de trabalho que não seja sadio pode colaborar para o agravamento da situação, trazendo um olhar especial para as questões de assédio.

A legislação tem andado no mesmo caminho. A lei 14.457/2022 ampliou o foco de atuação da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), obrigando a lançar um olhar mais atento a esse tipo de situação. É exigida uma carga horária mínima anual de capacitação sobre temas como violência, discriminação e assédio no ambiente de trabalho, normas internas e canais de denúncia para os empregados e todos aqueles que se relacionam com a empresa – sejam familiares, fornecedores, parceiros e demais possibilidades.

Esse canal precisa ser efetivo, independente e ter condições de acolher as situações relatadas. Devem atuar de forma sigilosa, evitando discriminações ou perseguições aos que fazem a denúncia. Além disso, é preciso construir uma política (e criar espaços) de diálogo, aberto a ouvir anseios trazidos pelos empregados. “No ambiente de trabalho, onde tem uma ampla gama de pessoas, muitas ideias não são factíveis ou compatíveis com a estrutura da empresa, mas é esperado que as pessoas deem essa resposta de forma que os empregados compreendam e não se sintam ofendidos ou agredidos. É a cultura do cuidado”, defende Casarin.

Cabe ao gestor adotar todas as medidas para conscientizar e evitar relações abusivas no ambiente escolar. Esse risco é mitigado por uma atuação preventiva, promovendo uma mudança cultural. Entre as possibilidades para fazer isso está a construção de um código de conduta genuíno, em que efetivamente a instituição escreve quais são os cuidados e as preocupações para com as pessoas – de forma ampla, não apenas com seus empregados. Outra sugestão é capacitar o setor de recursos humanos para ter um olhar mais humano, conduzindo esse trabalho no dia a dia.

Ainda que tome todas as medidas necessárias, toda instituição está sujeita a ter de enfrentar alguma situação de assédio. Nestes casos, tanto ela quanto o assediador podem responder judicialmente – mas é mais comum que se acione a empresa, enquanto responsável por todo o ambiente. Isso já é bastante ruim de lidar, mas talvez não seja o pior efeito. “Por maior que possam ser as indenizações na Justiça do Trabalho, elas não são suficientemente altas para inviabilizar uma instituição de ensino, por exemplo. O maior impacto para uma instituição de ensino é reputacional. Tanto o assédio sexual quanto o moral têm incompatitibilidade com o objetivo maior, que é educar. Entre as consequências está o problema com retenção e atração de talentos. Ou seja, os efeitos indiretos de uma situação grave de assédio são muito mais graves do que efetivamente uma ação judicial contra a empresa”, alerta o especialista.

Assédio envolvendo estudantes

O assédio pode aparecer em relações dos estudantes entre si ou deles com os profissionais da instituição de ensino. Salvo exceções, na Educação Básica se está falando de menores de idade que têm a percepção de estarem sendo alvo de abuso. Eles tanto podem ser vítimas como praticantes do assédio – como acontece com o bullying e o cyberbullying.

Depois de tipificado no Código Penal, o número de registros de bullying também aumentou. “As pessoas enxergaram a possibilidade de uma forma mais efetiva de combater isso contra seus filhos”, acredita o advogado Luciano Escobar, especialista em Direito Educacional e consultor de instituições de ensino.

Letícia ressalta que o entendimento do assédio é muito subjetivo e a linha que o separa do aceitável é tênue. “Tem alunos que ficam muito tempo na mesma escola, às vezes toda a educação básica, então acabam convivendo com alguns professores durante muito tempo. Essa intimidade pode ser positiva, por um lado, mas também negativa porque, quanto mais intimidade se tem, mais liberdade também – e às vezes se ultrapassa a linha do bom senso”, comenta.

Quando acontece entre os próprios estudantes, o caminho é trabalhar para entender e equacionar. Até porque, adolescentes são classificados como menores infratores, uma vez que não cometem crimes, mas atos infracionais. Nestes casos, a pena pode ser via medidas socioeducativas. 

Para Escobar, no entanto, dependendo da fase de desenvolvimento dessa criança ou adolescente, trata-se de um erro e não um ato infracional. “Pode ser pesado, ter repercussões sérias na vida da vítima, mas estamos falando de uma criança em desenvolvimento, em formação, então a premissa básica tem que ser essa”, sustenta. A responsabilidade da instituição de ensino, quando há assédio envolvendo estudantes, pode ser caracterizada se não houver mecanismos de combate no projeto pedagógico – legalmente, sempre é, mas sob o aspecto de responsabilização civil, como a aplicação de uma indenização. 

Os papéis da família e do sistema judiciário

A linha tênue que define o que é ou não é assédio também fica configurada quando se fala da responsabilidade de cada ente na formação das crianças e adolescentes. Luciano Escobar questiona o que separa a escola que tem práticas preventivas, ambiente de recomposição de relações e práticas restaurativas, da responsabilidade que a família tem pela conduta de seus filhos. “Todos aqueles valores éticos e morais que a família transmite, pelas ações ou discurso, influencia diretamente na formação da personalidade daquele indivíduo, do que ele vai fazer ou deixar de fazer”, lembra. A escola é, antes de mais nada, um ambiente de escolarização, com a obrigação de contemplar os conteúdos previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), no Plano Nacional de Educação e na Lei de Diretrizes e Bases. 

“São várias horas diárias, em que 15 minutos são de intervalo, descanso, e o resto tudo é conteúdo. Mesmo que tenha as práticas preventivas, inclusivas, elas não têm o mesmo efeito que as práticas educativas que a família deveria ter”, entende.

No aspecto judicial dessa questão, o que pode ser feito é a escola chamar a família à responsabilidade dentro do processo, solidariamente. Mas não é tão simples. Escobar explica que, por se tratar de uma relação de consumo – afinal, a instituição de ensino vende um serviço ao cliente –, uma vez processada por uma família vítima de assédio, não caberia discutir se há um terceiro responsável. Neste caso, ela responde, paga (literalmente) o preço em caso de condenação, e depois pode discutir com o praticante do ato abusivo em busca de ressarcimento.

Consolidou-se o entendimento de uma transferência tácita de responsabilidades. Em função disso, as escolas hoje passam muito mais tempo resolvendo problemas administrativos e burocráticos, criando ferramentas de prevenção e de proteção a elas mesmas – para comprovar que têm as práticas necessárias – do que realmente trabalhando com o fazer pedagógico.

“Falta dar para as escolas a oportunidade de expressarem tudo que estão passando, para serem construídas políticas públicas que promovam realmente essa inclusão. O assédio existe pela falta de inclusão. Existe o assédio porque o aluno não tem entendimento e respeito por questões racial ou de gênero, por exemplo. Dentro da LDB se prevê trabalhar cultura e história africana, indígena, está tudo posto em termos de responsabilidade”, conclui.

Ciente da importância de preparar os gestores para esse tipo de situação, o SINEPE/RS desenvolveu o curso “Assédio nas instituições de ensino: Definições e estratégias de prevenção”, ministrado pelos especialistas Luciano Escobar e Gustavo Casarin. Com carga horária de 3 horas, divididas em 11 aulas, o conteúdo está disponível na plataforma SINEPE/RS Play, com aula inaugural aberta e gratuita.

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