Escolas encontram alternativas ao uso recreativo do celular durante as aulas

Incentivo a atividades esportivas e recreativas analógicas despertam o interesse dos estudantes, que, aos poucos, reduzem o uso dos dispositivos eletrônicos

por: Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com
imagem: Freepik

A relação da sociedade com a tecnologia é motivo de debate constante. O uso dos recursos digitais sempre oferece duas faces, podendo contribuir substancialmente para o desenvolvimento humano, mas também com a capacidade de causar malefícios de toda ordem. No caso de crianças e adolescentes isso fica potencializado, uma vez que nem sempre dispõem da maturidade necessária para decidir o tempo dedicado ao lazer virtual, tampouco os serviços que serão acessados.

Diante desse contexto, e com o acesso cada vez mais precoce dos jovens aos smartphones, as escolas têm o desafio de manter o foco dos estudantes durante o período de estudos. Instituições ouvidas pelo Educação em Pauta contam que disponibilizar espaços e artigos para práticas analógicas, como jogos e brincadeiras, nos horários de intervalo, ajudam a mitigar esse problema.

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Acesso precoce

Um levantamento concluído em outubro de 2022 pela plataforma de conteúdo Mobile Time, em parceria com a empresa de pesquisas Opinion Box, apontou que a maioria das crianças já pediu um smartphone de presente. O índice começa em 30% no grupo de 0 a 3 anos e chega a 92% na faixa de 10 a 12 anos.

As famílias ouvidas no estudo atribuem esses números à influência dos amigos (47%), da publicidade (19%), de irmãos e primos (16%) e dos pais (12%). O relatório da pesquisa defende que, embora seja difícil admitir, provavelmente as crianças espelham o comportamento dos responsáveis. Ou seja: os adultos acabam dando o exemplo, não largando o celular quase nunca.

Menos celular, mais esporte

Foi com essa premissa que o Colégio ESI São Carlos, de Caxias do Sul, propôs a troca do smartphone pelos jogos recreativos durante os intervalos. Considerando estudos que revelam que os jovens têm problemas de saúde cada vez mais cedo, em função da falta de atividades físicas, a gestão da instituição optou pelo esporte como alternativa.

Até os anos finais do Ensino Fundamental, o dispositivo é proibido. Depois, é permitido, mas com restrições, tentando limitar. Cada professor tem uma estratégia e cada turma, suas particularidades.

“Acompanhamos o contexto de forma conjunta com os pais, para entender também deles quais são as principais demandas. Pensamos no ‘Menos celular, mais esporte’, usando o intervalo, por um pedido que veio tanto dos pais, quanto de alguns alunos que queriam ter alguma troca com os demais nessas horas”, conta a analista de marketing da instituição, Maíra de Azevedo.

O projeto consiste na distribuição de bolas e a disponibilização de espaços, como o ginásio e o pátio, para que os estudantes pratiquem atividades diversas. Para não comprometer o horário de descanso e integração dos professores, ficou definido que os representantes de turma seriam responsáveis por recolher tudo e devolver os utensílios à coordenação. 

Tudo foi conduzido de forma gradativa: no começo, os educadores supervisionavam e pediam para os estudantes guardarem os materiais, evoluindo organicamente até que eles tivessem capacidade de fazer uma autogestão. Vem dando tão certo que os monitores cuidam dos menores, pois até mesmo séries diferentes estão se integrando graças ao projeto.

Conforme o pátio vai ficando movimentado, mais estudantes pedem para participar. O número de espaços e bolas aumenta com frequência. “Agora eles já deixam o telefone até na sala de aula, mesmo podendo usar no momento do intervalo. Preferem a recreação”, conta Maíra. 

Segundo ela, a cada dia é proposta uma atividade – até o esporte olímpico badminton entrou na lista. De acordo com o que os estudantes pedem, a escola oferece. “Eles não fazem partidas, então não tem problema interromper quando acaba. É bem recreação, mesmo. Já os atletas que representam a instituição em competições levam um pouco mais a sério, aproveitam a oportunidade para treinar”, comenta, lembrando que outros, no entanto, desfrutam desses momentos para brincar sem a obrigação de ter performance.

Depositar o telefone para se concentrar na aula

Observando a distração dos estudantes em sala de aula, o Colégio Nossa Senhora da Glória, de Porto Alegre, que nunca foi contra o uso dos dispositivos eletrônicos (mas para fins pedagógicos), passou a se preocupar com os excessos. Depois de conversar com os pais sobre a questão, chegou à conclusão de que algo precisava ser feito.

A instituição instalou escaninhos, em que os estudantes depositam seus smartphones assim que chegam à sala de aula. Caso o professor ofereça alguma atividade que demande o uso, eles podem acessar os dispositivos, assim como nos intervalos. A questão do contato com a família também é solucionada de forma simples: basta que os responsáveis liguem para a escola. “Praticamente não houve reclamações. Foi um processo natural. Em geral, os estudantes aceitaram bem a nova regra”, lembra a professora Camila Schneider. 

Para incentivar os estudantes, o colégio adquiriu uma mesa de ping-pong. Não demorou para perceber que precisaria de outras unidades – e aproveitou para oferecer, também, o tradicional fla-flu (ou pebolim), além de também liberar o uso de bolas no intervalo. A adesão foi tão grande que já houve até campeonatos e gincanas.

A iniciativa não apenas tira as crianças e adolescentes da ociosidade, como agrega qualidade aos momentos de ensino. “Temos menos desgaste na relação entre professor e aluno, pois antes era preciso pedir o tempo todo para que guardassem o celular. A regra é deixar no escaninho”, pondera Camila. Nos raros casos de desobediência ao combinado, o aparelho é recolhido pela coordenação para uma conversa mais próxima com aquele estudante. Se houver reincidência, os responsáveis são chamados para o diálogo.

“No início, a gente percebia que existia essa dependência, como se o celular fizesse parte do corpo deles. Depois, foi um processo natural, o depósito do aparelho é automático. Temos alguns alunos que realmente são bastante dependentes, esses têm mais resistência de colocar lá. Mas são casos muito pontuais”, observa Camila.

Essa dependência pode ser, de fato, um caso clínico. A 11ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), da Organização Mundial da Saúde (OMS), que entrou em vigor em 2022, incluiu o distúrbio por jogos eletrônicos, sob o código 6C51. A patologia do gaming disorder foi definida pela OMS como sendo um padrão de comportamento persistente ou recorrente, com duração de 12 meses – pode ser menos, de acordo com a gravidade –, implicando em comprometimento funcional nos aspectos pessoal, familiar, educacional e ocupacional.

A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) acompanha de perto essa situação, especialmente por meio de um grupo de trabalho focado em saúde na era digital. Esses profissionais publicam um manual de orientação, que este ano ganhou mais uma edição revisada, com recomendações sobre o uso de telas por crianças e adolescentes.

Com diálogo, solução simples também funciona

Após conversar com os responsáveis, o Colégio Marista Roque, de Cachoeira do Sul, adotou uma medida bem objetiva e eficaz. O “Mente Presente” consiste em disponibilizar caixas, na sala de aula, em que o estudante deve guardar o smartphone e dispositivos como fones de ouvido e smartwatches (relógios digitais) assim que chega, podendo utilizá-los durante o intervalo.

A medida está ancorada nas normas de convivência do Regimento Escolar, que trata da correta utilização de objetos ou equipamentos, inclusive eletrônicos, para que não prejudiquem o bom desenvolvimento das aulas. “Comprometidos com uma educação de qualidade, reforçamos a normativa de não utilização destes dispositivos em sala de aula. A orientação visa melhorar a concentração, o foco e a atenção, qualificando, assim, as competências e o desempenho dos estudantes na aprendizagem”, explica a diretora da instituição, Jaqueline de Freitas Quandt

Orientação legal

Alguns países proíbem completamente o acesso a dispositivos eletrônicos pessoais nas escolas. No Brasil, ainda não há uma legislação específica sobre o assunto – por pouco tempo, se depender do Ministério da Educação (MEC), que prepara um projeto de lei a ser encaminhado ainda este ano para o Congresso. “É uma proposta inicial. Não acredito que se configure o banimento. Estamos acompanhando, enquanto sindicato”, observa a assessora jurídica do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (SINEPE/RS), Letícia Dalcin. 

Ela lembra que, a pedido das entidades que representam os professores, o SINEPE/RS avaliou as reivindicações que versavam sobre o uso do celular em sala de aula e incluiu, na cláusula décima sexta da convenção deste ano, a definição de que os estabelecimentos de ensino elaborarão protocolo para estabelecer as regras e condições para o uso do celular em sala de aula e orientarão os professores acerca do referido protocolo. “Cada instituição tem autonomia para estabelecer suas regras, mas a ideia é que o celular seja utilizado quando houver atividades pedagógicas que incluam o seu uso em sala de aula”, frisa a advogada.

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