Longe das telas: a experiência de escolas que limitaram o uso dos celulares

Instituições mostram que resultados são positivos e percebidos por famílias e pelos próprios estudantes

por: Bianca Zasso | bianca@padrinhoconteudo.com
imagem: Freepik

Quais os itens indispensáveis na mochila de um aluno da Educação Básica? A resposta mais comum seriam cadernos, livros e outros materiais para estudo. Mas o que não falta na lista de muitos estudantes é um aparelho pequeno, mas que ocupa um espaço cada vez maior na vida de adultos e crianças: o celular. Pensar a nossa vida sem tecnologia já não é uma alternativa. Da organização da agenda até o entretenimento, as telas de celulares e outros dispositivos eletrônicos são parte do nosso cotidiano. Porém, o ambiente escolar tem sido prejudicado em muitos pontos por conta da presença destes aparelhos, a ponto de preocupar organizações importantes. 

Em julho do ano passado, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou um relatório apontando preocupações sobre o uso excessivo de celulares em sala de aula. De acordo com a agência da ONU para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), tal uso impacta o aprendizado e também as relações sociais entre os estudantes. 

Mudanças para frear os problemas causados pelo uso de celulares nas escolas já começam a aparecer. No mesmo estudo, a Unesco aponta que pelo menos um em cada quatro países já proíbe ou limita dispositivos eletrônicos em sala de aula. Se a palavra proibição pode soar censuradora e até ofensiva, algumas escolas estão investindo na conscientização para que o celular seja utilizado como ferramenta pedagógica e não como um companheiro inseparável dos alunos. O diretor do Colégio Mauá, de Santa Cruz do Sul, e vice-presidente do SINEPE/RS, Nestor Raschen, vivenciou o início de um processo que a partir deste ano vai limitar o uso de celulares para os alunos, inclusive durante os intervalos. 

“Ao longo do ano passado, organizamos palestras para os pais, alertando para o uso excessivo dos eletrônicos. Eles participaram deste processo ativamente. Também realizamos uma pesquisa com os alunos do 5º ano do Ensino Fundamental para entender o tempo de uso dos celulares. Nos surpreendeu que 50% deles estavam utilizando o celular por mais de três horas por dia. Isso nos assustou”, lembra Raschen. 

Esse panorama fez com que a escola adotasse a recomendação de restringir o uso dos dispositivos ao mínimo, inclusive orientando os alunos a não levarem os aparelhos para a escola. Em caso da necessidade de uma pesquisa para alguma atividade proposta pelo professor, os alunos devem realizar a busca em casa e trazerem suas anotações para desenvolverem o trabalho em sala de aula. Isso já era uma praxe para as turmas até o 4º ano, mas 2024 marca uma mudança para os alunos do 5º ano, que não poderão utilizar celulares também nos períodos de intervalo. 

Colégio Mauá, em Santa Cruz do Sul, limitou o uso dos celulares para promover maior interação entre os estudantes, inclusive nos intervalos das aulas | Foto: Regina Colombelli / Divulgação

“A partir do 6º ano, recomendamos que eles sigam não utilizando os celulares. Mas nossa intenção é implantar essa normativa avançando a cada ano em uma nova etapa de turmas, até o final do Ensino Médio. Desejamos que eles tenham um espaço de convivência no intervalo e não ficar cada um no seu aparelho. Temos um espaço privilegiado aqui na escola e eles podem aproveitá-lo longe da tecnologia”, explica Raschen, que afirma que a resposta dos alunos à normativa tem sido positiva. 

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Mais do que trabalhar a questão da concentração dos alunos, a saúde também é um dos focos do Colégio Mauá com a normativa. A intoxicação digital e o cuidado com as fake news são temas discutidos por alunos e professores, que também são orientados a usarem seus celulares de uma forma inteligente. 

Desplugar para interagir

Um outro exemplo vem do noroeste do Estado. A escola La Salle Medianeira instituiu o projeto Desplugado, onde os estudantes deixam seus aparelhos em um porta-celular fixo nas paredes das salas de aula e personalizado com o nome de cada aluno. Em alguns casos, sob autorização dos professores, os aparelhos podem ser utilizados para atividades pedagógicas. Já no intervalo das aulas, os celulares podem ser utilizados para a compra de lanches por meio de PIX. A vice-diretora e coordenadora pedagógica da escola Marlete Gut destaca que o celular não é considerado material escolar, uma vez que a instituição disponibiliza Chromebooks para os estudantes e que a diretriz da escola é embasada em pesquisas que evidenciam os efeitos prejudiciais do uso excessivo de celulares e também nos feedbacks dos professores.

“Já é comprovado que o abuso dos dispositivos eletrônicos pode levar a danos cognitivos, dificuldades de socialização e aprendizado, e afetar a atenção, em todas as idades. Alguns dos nossos professores sinalizaram alguns pontos, como a falta de leitura e a desatenção em sala de aula”, afirma. 

Outro momento que evidenciou ainda mais a força dos eletrônicos foi uma experiência proposta pela professora Sandra Balbé de Freitas, da disciplina de Sociologia: um almoço na escola para os estudantes do Ensino Médio, em que os celulares não poderiam ser utilizados por, pelo menos, duas horas. 

“Alguns alunos acharam que seria impossível, mas essa dinâmica fez com que eles percebessem e enxergassem os outros. Conversaram e praticaram esportes, ao invés de cada um ficar no seu canto sozinho. Eles aprovaram a ideia e reconheceram que a interação com os colegas melhorou muito e que a ansiedade diminuiu”, relata Marlete. 

Alunos da La Salle Medianeira organizaram almoço “desplugado” para incentivar o diálogo entre os estudantes. O Momento também contou com música e jogos | Foto: Ir. Junior Schnorremberger / Divulgação

O resultado é que outros almoços e até um torneio foram organizados pelos próprios alunos, tudo isso longe das telas. Se “desplugar” passou a ser uma opção bem-vinda e que trouxe novas possibilidades de trocas. A partir do mês de abril, as sextas-feiras serão de música e conversa nos intervalos, momento em que os alunos serão orientados a sequer trazer o celular na mochila. E há ainda um projeto para incentivar que os livros físicos dominem as mãos tão hábeis em dar cliques. 

“Temos um projeto de um dia da semana ter um momento de leitura para todos que estão na escola. Vamos parar, inclusive os auxiliares, profissionais de serviços gerais e professores, para se dedicar à leitura de livros e reportagens. Após os porta-celulares, a próxima etapa será restringir o uso dos aparelhos durante um dia da semana, e aí até mesmo nos intervalos. A intenção não é proibir simplesmente, mas fazer com que os estudantes percebam que os aparelhos não são tão necessários quanto parecem”, finaliza a vice-diretora. 

As mudanças também foram sentidas em sala de aula. Para a professora de biologia da instituição, Tieli Menzel, as medidas de restrição ao uso de celulares têm estimulado interações mais significativas entre os estudantes, promovendo discussões e debates mais frequentes durante as aulas e garantindo uma nova, digamos, trilha sonora.

“Ao não poderem recorrer instantaneamente aos seus celulares para buscar informações, os alunos são obrigados a pensar de forma crítica e a dialogar entre si, o que fortalece o processo de ensino e aprendizado. Ou seja, a sala ficou mais “barulhenta”, mas no sentido bom: com mais discussões, debates e trocas de ideias”, avalia a educadora.

A tecnologia proporciona inúmeras possibilidades para a educação e professores e gestores têm investido nela como mais uma alternativa para chamar a atenção dos alunos para os conteúdos de diferentes disciplinas. Porém, olhar no olho, trocar experiências que vão além de emojis e figurinhas e se divertir e aprender com romances, contos e poesias em páginas de papel também têm um grande valor na formação dos estudantes. É de conhecimento que adultos também sofrem com o vício em celulares e outros dispositivos, mas há um trabalho árduo sendo realizado na educação para que a trend da vez seja descobrir o mundo no formato off-line. 

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