“O problema da educação brasileira é a formação de professores”
Em entrevista ao Educação em Pauta, o especialista português António Nóvoa traz sua visão sobre o que precisa mudar na formação docente e como enxerga a escola do futuro e os novos ambientes educativos
por:
Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com
Publicado em 22/02/24 às 07:01 - Atualizado em 22/02/2024 às 07:01
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Leandro Augusto Hamester / Colégio Teutônia
Uma conversa sobre os rumos da educação. Ou, pelo menos, aqueles que o setor deve buscar nos próximos anos. Essa é a tônica da entrevista que o Educação em Pauta fez com António Nóvoa – doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Genebra e História Moderna e Contemporânea pela Paris-Sorbonne. O português também é professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, da qual é reitor honorário.
Ambientado ao cenário brasileiro, por participar de projetos com universidades locais – alguns deles, citados durante a conversa –, Nóvoa foi um dos palestrantes do III Congresso Internacional de Educação, promovido pelo Colégio Teutônia nos dias 8 e 9 de fevereiro. Responsável pela primeira atividade, ele versou sob o tema “Do coração à razão: por uma Educação Inovadora”.
Foi sobre isso, também, que o autor de mais de 150 publicações, em 12 países – entre livros, capítulos e artigos – conversou com a reportagem do Educação em Pauta, por vídeo, diretamente do local do evento.
Para Nóvoa, a forma como a escola foi pensada no passado já não atende ao que o mundo exige de seus cidadãos. Cada ente cumpre um papel nesse processo evolutivo. É preciso que os professores tenham liberdade de criar, as famílias sejam parceiras e compreendam o papel independente e autônomo das instituições de ensino e os gestores proporcionem espaços que aflorem a criatividade.
Confira a entrevista:
Educação em Pauta – O senhor defende mudanças importantes no processo de ensino e aprendizagem. Quais são as principais?
António Nóvoa – O essencial, hoje em dia, no debate educativo, é a criação de novos ambientes educativos. O ambiente da sala de aula foi muito importante durante 150 anos – e continua sendo. Mas há muitas coisas para além do ambiente da sala de aula. Temos que criar ambientes mais próximos dos laboratórios, das bibliotecas. Lugares onde as crianças pesquisem, estudem, trabalhem, em vez de a rotina escolar ser a da aula.
A aula tem um papel importante na educação, mas a rotina diária da escola não pode ser essa. Tem de ser a do trabalho: trabalho de pesquisa, de reflexão, de realização de projetos, de criações. Assim deve ser o dia a dia das escolas. Acabo de visitar 44 instituições em Portugal. Em metade delas, vi professores dando aula. Na outra metade, vi alunos trabalhando à volta de uma mesa, uns com os outros, pesquisando e fazendo projetos. A evolução da escola do futuro vai ser muito por esse caminho.
Educação em Pauta – Qual o primeiro passo de um gestor de instituição de ensino para dar andamento a um projeto de transformação?
António Nóvoa – O que nos diz a história das inovações pedagógicas e educacionais é que o começo é quase sempre da mesma maneira: quando dois ou três professores, em colaboração, decidem fazer uma coisa diferente. Conversando, ensaiando, experimentando, conseguem iniciar dinâmicas diferentes de trabalho.
Isso, muitas vezes, implica um trabalho político, no melhor sentido do termo. Implica reivindicar, junto aos setores escolares, as condições de liberdade para fazer esse trabalho. E reivindicar junto aos responsáveis políticos as condições para ter essa liberdade de experimentação, de ensaiar. Mas, de um modo geral, na história da educação ao longo dos últimos dois séculos, foi sempre a partir de uma conversa entre dois ou três professores que se iniciaram dinâmicas diferentes de trabalho dentro das escolas.
Educação em Pauta – O senhor defende que se quebre as paredes da sala de aula, no melhor dos sentidos. Um gargalo importante no Brasil é a qualificação dos professores. Como capacitá-los para que conduzam esse processo?
António Nóvoa – A formação de professores tem vivido problemas em todo o mundo, mas, na verdade, esses problemas são maiores no Brasil, com grande parte das licenciaturas, mais de 80%, em cursos a distância, em instituições sem grande qualidade. Eu não gostaria de usar essa palavra, mas é a única que me vem à cabeça: é um desastre. E é um desastre anunciado há muito tempo, não é de agora. É um desastre que muitos têm anunciado, diagnosticado há muito tempo.
Quando estive em Brasília em 2014, há dez anos, nós fizemos um diagnóstico sobre isso. Mas parece que ficamos incapazes de agir nessa matéria.
Há cinco anos, desenvolvi um projeto junto à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com uma nova política de formação de professores, que gostaria que fosse inspiradora para o resto do Brasil. Essa nova política incide na ideia de que precisamos de um terceiro espaço na formação do professor, que junta as universidades e as escolas da Educação Básica, dando maior protagonismo ao professor da Educação Básica na formação dos novos professores. E que permita criar uma dinâmica verdadeiramente inovadora, que reforça o conhecimento profissional dos educadores e pensa a formação a partir dessa ligação entre os pares, o partilhar de experiências e de histórias.
Com muita felicidade, vi, nestes últimos meses, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) abraçar, também, este projeto e tentar expandi-lo para as 19 instituições mineiras de educação superior, contando os institutos federais e as universidades. Acredito que este seja o caminho certo. As universidades públicas não vão conseguir resolver todos os problemas, mas podem mostrar o caminho a percorrer, o que é preciso fazer e, com isso, inspirar as políticas educativas e outras instituições. É preciso, urgentemente, tomar medidas de fundo sobre a formação de professores no Brasil. Estou convencido, hoje, de que este é o problema mais grave da educação brasileira.
Educação em Pauta – O senhor tem estudos importantes sobre a estrutura física das escolas. Como deve ser pensada a arquitetura desses espaços, daqui para a frente?
António Nóvoa – A estrutura física das escolas vai mudar muito nos próximos anos, inevitavelmente. Na verdade, quando olhamos para a história da educação, em um certo sentido, quem inventou a escola tal como conhecemos hoje foram os arquitetos. Quando fizeram a sala de aula e as escolas – que na verdade eram um somatório de salas de aula – influenciaram profundamente o trabalho do professor, a pedagogia, a didática, a organização curricular etc.
Há um colega nosso, francês, que escreveu um texto sobre as escolas dizendo que as paredes falam. Elas influenciam, e muito. Claro que, dentro das paredes que temos, se pode fazer muita coisa. Mas a tendência, no futuro, vai ser ter espaços de maior diversidade, espaços pequenos para trabalho individual, grandes para trabalhos coletivos e outros para pequenos grupos. E não apenas a sala de aula.
Na verdade, mesmo, sequer temos escolas. Temos conjuntos de salas de aula. Em Portugal, e creio que no Brasil também, durante muito tempo, o Ministério da Educação planejava as escolas com duas, quatro, oito ou doze salas de aula, como se não precisasse mais nada: laboratórios, bibliotecas, espaços diversos e outras coisas. A estrutura física da escola do futuro terá de se adaptar a uma realidade mais diversa e menos normalizada.
Foi preciso normalizar a escola no século XIX. Tratou-se de um grande avanço civilizacional. Mas, hoje, o nosso projeto não é de normalização e sim de diversificação, de atender à diversidade de culturas, de origens, de maneiras de pensar e de ser. E a pedagogia, para ser inclusiva, tem que conseguir compreender essa diversidade – e isso se traduz, também, em uma diversidade de espaços físicos, de formas diferentes de trabalhar. Essa diversidade é uma das marcas principais da escola do futuro.
Educação em Pauta – Em termos pedagógicos, o que é preciso avançar? Muito se fala no aluno protagonista de sua caminhada, de aprendizagem por projetos… Que caminhos o senhor vê como ideais?
António Nóvoa – A resposta é muito complexa ou muito simples. E a resposta muito simples é que nenhum de nós, aqui, teria a insensatez de pensar que eu poderia ensinar uma criança a tocar violão sem essa criança nunca ter tocado violão. Eu sentaria 20 crianças em uma sala, a verem o professor tocar violão, e enquanto ele tocasse, nós aprenderíamos a tocar também. É impossível. Ninguém aprende a desenhar vendo um professor desenhar. Para aprendermos, precisamos desenhar. Precisamos dos conselhos e da orientação do professor? Sim. Mas precisamos pegar no lápis, na caneta, no pincel.
Agora, o que é verdade para a música ou o desenho, também é verdade para história, matemática, ciências… é verdade para tudo. Ninguém pode aprender história ouvindo um professor falar de história, o mesmo com matemática e ciências – nós temos de fazer ciência, história, matemática. A grande mudança é conseguir colocar os alunos nessa situação de trabalho e de relação com o conhecimento que lhes permitirá aprender coisas que de outra maneira nunca aprenderão. Sentados em uma carteira, ouvindo um professor falar, não chegarão lá. E por isso a ideia de colocar os alunos em uma situação de trabalho, que aqui quer dizer leitura, pesquisa, estudo, projetos, não quer dizer trabalho manual, mas no sentido mais amplo do termo. Isso é absolutamente central.
Os pioneiros chamaram essa ideia de Escola Nova em todo o mundo, antes disso a chamaram de Escola do Trabalho. Aliás, esse termo, arbeitsschule, em alemão, é um termo muito mais interessante do que o termo Escola Nova. E este é um termo que precisamos resgatar hoje. A pedagogia, hoje, é a do trabalho, da cooperação, da convergência em termos de temas e de temáticas. É o que se pede para a educação do futuro. A aula do professor é importante, sim, mas de vez em quando. Uma vez por dia, a cada dois dias, uma vez por semana. Ela não pode ser a totalidade do trabalho na jornada escolar, que precisa ser organizada de outro modo, com outra presença e participação dos alunos.
Educação em Pauta – Isso é suficiente para aumentar o interesse dos alunos?
António Nóvoa – Inevitavelmente, porque se eu sento três ou quatro alunos à volta de uma mesa e lhes peço para realizarem uma atividade, é impossível o aluno não estar envolvido nessa atividade. Mas, se eu sento um aluno na última fileira da sala de aula, ele pode estar em outro lugar qualquer, pensando em outra coisa. Eu vi, aqui no Brasil, algumas aulas de robótica, por exemplo, com alunos que, ao fazerem cálculos de matemática, ao programarem esses robôs, têm um interesse absolutamente extraordinário. Agora, se eu coloco um professor a falar sobre robôs, e os alunos todos sentados, o mais certo é que estejam todos distraídos, que ninguém aprenda nada, que estejam com a cabeça em outra coisa qualquer.
Educação em Pauta – A pandemia impactou demais a vida das pessoas. Como isso se reflete na relação entre aluno e professor, e na relação dos alunos com todo o processo de aprendizagem?
António Nóvoa – Ainda não sabemos todas as consequências da pandemia. Sabemos que afetou profundamente os resultados, muitos meninos e meninas saíram da escola e já não voltam mais, em determinadas regiões do mundo. A pandemia teve consequências dramáticas, embora ainda não saibamos toda a dimensão desses problemas.
Mas temos que tentar, na medida das nossas possibilidades, olhar para as dimensões da empatia, do encontro, a dimensão humana, emocional, como uma parte integrante do nosso trabalho. Quer dizer, não como uma separação, mas como algo que anda em conjunto. Trabalhar a matemática, por exemplo, mas com uma dimensão emocional dentro dela.
Não adianta dar duas horas de aula de matemática e depois cuidar das emoções. Trata-se de integrar essas duas dimensões, isso é central para o nosso futuro. Há muita coisa da pandemia que ainda não conhecemos. Já estudamos e escrevemos muito, fizemos muitas pesquisas, e ainda há muita coisa que não conseguimos apreender. Temos de continuar a estudar e pensar nisso.
Educação em Pauta – Ainda dentro desse contexto da convivência, qual o papel das famílias e de que forma essa relação também foi atravessada pelo isolamento social provocado pela pandemia?
António Nóvoa – A pandemia teve um duplo efeito. Por um lado, trouxe muitas crianças para dentro das casas, levando os pais a perceberem a importância das escolas. Ajudou, em parte, a chamar atenção para a importância dos professores e das instituições de ensino. Por outro lado, criou relações um pouco mais difíceis, tensas e conflituosas, às vezes. É muito importante que a família esteja presente na educação, mas que respeite a autonomia da escola. Porque a escola não existe para fazer o mesmo que a sociedade ou as famílias. Ela existe para ser diferente da sociedade e das famílias. O valor da escola consiste em experimentar um tempo e um espaço diferentes.
Não devemos nunca cair na tentação de achar que a escola é um prolongamento ou uma continuação da família. Não. Ela é diferente. Os pais têm que colaborar conosco, e nós com os pais. Mas colaborar com os pais nessa complementaridade, nessa diferença. Eu tenho aqui, à minha frente, esta garrafa [apanha uma garrafa de água mineral] e esta tampa. As duas são necessárias porque se a garrafa ficar sem tampa, a água vai vazar. Estas duas coisas são importantes juntas, porque são diferentes. Se eu tivesse duas garrafas ou duas tampas, de nada adiantaria. Não haveria complementaridade. A gente precisa saber que escola e família devem estar juntas porque são diferentes e cumprem missões diferentes.
Educação em Pauta – Crianças e adolescentes têm convivido, cada vez mais, com questões como a ansiedade, a depressão e outros fatores com os quais as escolas nem sempre sabem lidar. Como as instituições podem ajudar a mitigar esse problema?
António Nóvoa – A escola deve ser um lugar de convivialidade, como diz o conceito de Ivan Illich, um amigo do Paulo Freire na década de 1970. Ou seja, um lugar onde aprendemos a viver – e vivemos – uns com os outros. É a ideia de um lugar de convívio, de encontro, onde falamos uns com os outros, produzimos a ideia de uma unidade comum na nossa diversidade, onde trabalhamos juntos porque somos diferentes uns dos outros. Instaurar a escola como esse lugar é certamente um elemento central para reduzir a ansiedade, os conflitos, as agressividades. E isso é uma tarefa central para os próximos anos. Devemos pensar a escola como esse lugar onde ainda é possível dialogarmos e vivermos uns com os outros. Isto, certamente, contribuirá muito para diminuirmos os níveis de estresse, burnout ou ansiedade.
Educação em Pauta – Como os gestores da educação podem estar alinhados ao que há de mais avançado no mundo, seja no âmbito pedagógico, seja no administrativo ou mesmo de inovação?
António Nóvoa – Em todo lugar há coisas positivas que estão acontecendo. No Brasil, também. O que os gestores escolares podem fazer de melhor nos próximos anos é criar as condições, dentro das escolas, para que os professores possam ensaiar novos métodos, colaborar uns com os outros, construir novas propostas pedagógicas. Nem todas vão dar certo, mas essa dinâmica de transformação, de criação e de liberdade de iniciativa e de propostas, em que o professor se sinta envolvido em coisas novas e diferentes, é o melhor que os gestores podem oferecer. E é por isso que a ideia de colaboração é tão importante, hoje, para enfrentarmos os desafios do futuro da educação.
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