“Formação continuada não é para ensinar professor a dar aula”, diz Cris Vieira

Doutora em Educação reflete sobre bagagem cultural dos educadores e aponta caminhos para suprir lacunas na formação inicial

por: Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com
imagem: Thaís Machado

Com 30 anos de experiência em educação e gestão educacional, Cris Vieira conversa com Educação em Pauta sobre essa trajetória e uma série de aprendizados advindos do percurso. 

Pedagoga de formação, Cris deu continuidade à formação com os cursos de mestrado e doutorado, na PUCRS, além de se especializar em neurociências e MBA em Gestão de Negócios. Foram 15 anos no mundo acadêmico, entre as salas de aula e os gabinetes de gestão.

Ela também foi responsável pela modernização pedagógica promovida pela L’Oreal do Brasil, que forma e capacita profissionais de beleza. Além disso, criou uma metodologia própria para mentoria de empreendedorismo feminino.

Palestrante sobre temas como o novo mundo do trabalho, aprendizagem, educação institucional e corporativa, empreendedorismo e inovação, Cris Vieira traz na bagagem experiências que perpassam toda a rotina das instituições de ensino. Com tudo isso, também empreendeu: é fundadora da CODE.Educação, que entrega soluções digitais para o desenvolvimento de culturas de aprendizagem e projetos multimídia e, por meio da CODE.Editora, lança livros físicos voltados à Educação.

Nesta conversa, ela se diverte lembrando do primeiro contato profissional com uma instituição de ensino, para logo em seguida tirar lições de tudo o que viveu até aqui. Refletindo tanto sobre o trabalho de gestão, quanto o de docente, chama atenção para a importância de agregar valências complementares para se ocupar cargos executivos e, também, para onde deve estar o foco da formação continuada dos professores.

Como foi seu primeiro contato com a Educação?

Sou pedagoga por formação e toda a minha carreira foi na área da Educação. Cursei aquele magistério que não existe mais, de quatro anos. Venho de uma família de professores, então já conhecia a labuta e fui um pouco resistente no começo. Minha primeira experiência profissional foi na área da publicidade, mas resolvi seguir, mesmo, pela Educação. Então fiz mestrado e doutorado na área.

Meu primeiro trabalho foi com 17 anos, em uma escolinha de educação infantil perto de casa. Eu já tinha começado a estudar o magistério, bati lá e perguntei se tinha vaga para mim. A dona da escola disse “esteja aqui amanhã, às 7h”. Quando contei para minha mãe, ela me orientou a avisar a diretora que eu era inexperiente, mas nem deu tempo. No dia seguinte, antes das 7h eu já estava lá. Perguntei qual seria minha turma e, como resposta, recebi uma vassoura. A vaga era para trabalhar na limpeza.

Pensei: “por algum lugar eu preciso começar, vou estar aqui dentro para ver como funciona”. Fiquei duas semanas trabalhando na limpeza, até o dia em que meu pai passou, viu aquela cena e me disse para parar. Bom, mas por que estou contando essa história: para dizer que conheço o universo da escola desde onde tudo começa. Dali fui crescendo, atuei como professora auxiliar, titular, em escolas de bairro e, já com a formação completa, trabalhei nas maiores escolas de Porto Alegre.

Além de educadora, você também tem experiência na gestão de instituições. Como isso aconteceu e quais os principais aprendizados?

Eu estava no colégio de aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) quando passei em uma seleção para dar aula em outra universidade, saindo da escola básica. Na academia, fiz uma nova carreira. De professora, depois de um tempo passei para a gestão, como coordenadora de curso. Passado mais algum tempo eu já tinha mais de 500 professores, 21 mil alunos e 300 funcionários sob minha responsabilidade, foi quando concluí que não tinha formação para aquilo tudo.

São zonas de atuação muito diferentes. Todo mundo fala em Educação porque, de fato, ela tem muito impacto em tudo. Mas as pessoas da área entendem de Educação e não têm experiência com gestão, administração, não têm conhecimento porque isso não se aprende na faculdade [nos cursos que formam educadores]. Aliás, hoje menos ainda. A partir dessa conclusão, resolvi puxar o freio de mão e, mesmo já estando no doutorado, dei continuidade a ele e busquei, concomitantemente, um MBA voltado para gestão. Comecei a me infiltrar – literalmente, porque minha turma tinha 40 pessoas e eu era a única da Educação. 

São áreas que não são afetadas, mas alguém precisa ser diretor ou diretora das instituições de ensino, trabalhar na gestão de pessoas, tudo isso. É importante se qualificar nesses quesitos. No caminho inverso, é a mesma coisa: o gestor pode ser um economista ou administrador por formação, mas, neste caso, deve buscar uma formação em Educação para entender de um segmento tão específico e importante. Hoje, não se consegue sustentar um trabalho se ficar só com o conhecimento de uma determinada área. 

E por onde o educador começa essa qualificação para ser um bom gestor na Educação?

É diferente da época em que eu comecei a me meter nisso. Fiz o MBA em gestão e depois fui à Itália fazer outro, em inovação social, envolvendo também questões como administração e gestão de pessoas. Estamos falando de oito ou dez anos atrás, quando não havia um leque de opções como hoje. Primeiro, eu diria que é preciso buscar outros campos de conhecimento, que conversem com a Educação. Essa noção vem da leitura de cenário, o educador deve buscar o que faz mais sentido para ele e para a instituição.

Hoje tem uma infinidade de possibilidades. Por exemplo, se fala muito em design de inovação, eu acho bacana. Assim como gestão de pessoas, voltado para a área da neurociência, da psicologia positiva. Não é a “Educação Escola”, mas tudo que tem a ver com o processo educativo. Eu não consigo imaginar, hoje, um gestor de uma instituição de ensino que vai conseguir argumento e sustentação durante muito mais tempo se ele não buscar essas alternativas, independentemente da área.

Você defende que a educação do futuro está ligada à aprendizagem. Parece óbvio, mas existem muitas camadas por baixo dessa ideia. Quais os entraves que o educador enfrenta nesse processo?

A escola é o espaço legitimado, totalmente, para a gente aprender. Quem quer aprender a dirigir não vai a uma farmácia, mas à auto-escola. Desde que o mundo é mundo, a sociedade dá essa legitimação para a escola cumprir sua função social de preparar os sujeitos. Não é apenas por força de lei, é uma acreditação de que se o meu filho vai aprender em algum lugar, é na escola.

A função da escola é entender que momento estamos passando no mundo e, com as ferramentas e estratégias que tem, com as figuras humanas, que é o mais importante, dar conta de preparar o sujeito para o seu tempo. Pode perguntar em qualquer lugar do mundo, inclusive nos mais críticos econômica e socialmente: se bater em cada casa e perguntar se tem carteira de identidade, muitos não terão; se perguntar pelo registro de nascimento, talvez alguns não tenham; mas, se perguntar quem está na escola, todas as crianças dirão que sim.

Cumprindo essa função social, a escola precisa trabalhar com a aprendizagem, que é a base de tudo. Por mais lógico que pareça, não vem sendo assim porque, principalmente na forma digital, a escola vem sendo atravessada por outras formas de aprender, de se produzir conhecimento e de ensinar. A escola tem tido muita dificuldade de lidar – aliás, as organizações, como um todo – porque ninguém teve preparo para dizer “olha, vamos continuar aqui, ocupando esse lugar, mas vamos dividi-lo com outras plataformas”.

Nenhum professor estava preparado para isso, porque a era digital, se a gente colocar uma data, foi ali pelo meio ou fim dos anos 1990, com computadores chamados 386 e 486. Muitos ainda não tinham acesso. Essa criança hoje tem cerca de 30 anos. O tempo que passei na escola, não tinha essa transformação digital. Agora, vamos um pouco adiante: o filho desse estudante dos anos 1990 tem, agora, seis ou sete anos. Ele já brinca com o celular desde que nasceu, tem uma noção muito maior de como funciona.

Entende onde quero chegar? O professor desse aluno de seis anos começou a ter uma noção do que é isso mais recentemente, então temos uma lacuna aí que, talvez, seja a última geração de professores que terão dificuldade de entender essas linguagens. 

Quais as dificuldades para se ter esse professor compreendendo e empregando a linguagem e a cultura digital?

A minha maior preocupação, há 30 anos, está justamente nesta área. Mas ela passa longe da tecnologia: minha preocupação é o capital cultural. Sabe por quê? A gente até fala que isso acontece em outras áreas, mas eu trabalho há muitos anos com cursos de Pedagogia, História, Letras, muitas licenciaturas. É impressionante a defasagem cultural que essas pessoas chegam para iniciar uma graduação. Isso acontece porque não é uma carreira atraente financeiramente, então só está conseguindo se conectar com pessoas de classe popular.

Uma faculdade de Publicidade, por exemplo, a pessoa consegue pagar, digamos, R$ 700 de mensalidade. Vai remando, trabalha de dia para estudar à noite, talvez assim consiga concluir. Nas licenciaturas, muitas pessoas estão pagando R$ 200 ou até menos. Vamos falar a verdade, eu já fui gestora em universidade: não tem como entregar qualidade com esse valor.

Outro ponto é que, se não for dentro da universidade, esse capital cultural é muito curto vindo de onde essas pessoas vieram. São pessoas que não têm acesso a cinema, literatura, viagem. Simplesmente não dá, as pessoas precisam trabalhar de dia e estudar à noite, são alijados disso. A universidade precisa ser o lugar que vai tentar apropriá-la minimamente dessa cultura.

A questão da formação de professores teria que ser revisitada totalmente. O conteúdo da formação de qualquer licenciatura precisava trabalhar com apropriação de cultura popular:  música, cinema, arte, teatro, sabe? Para que esse repertório, que depois não só facilita o diálogo, mas também cria um encantamento no aluno, para que ele também busque conhecimento. Até chegar na tecnologia nós teremos que ter uma caminhada.

E quanto à formação continuada? Ela preenche lacunas, corrige algo, ou deve ser pensada de um ponto de partida mais avançado?

Vejo muita gente falando sobre a formação do professor, mas a grande maioria das pessoas fala em currículo, ensinar a usar a tecnologia, enfim. Quando eu falo em formação de professor, trago dois pontos distintos. Tem a formação inicial, na academia, sobre a qual já falei antes; e tem a formação continuada. Só que na formação inicial esse educador deve formar repertório que seja aprimorado na formação continuada.

Na grande maioria das vezes, é gente querendo ensinar o professor a dar aula. Mas, gente, ele tem que saber dar aula, e nós temos que partir desse ponto. Porque se ensinar a dar aula for pauta, então nós temos um grande problema. Na formação continuada, aí sim, nós vamos trabalhar com outras coisas, porque a vida inteira estamos aprendendo.

No ano passado, fui procurada por um município para dar palestra a um grupo de professores. Expliquei que há alguns anos essa não é uma das minhas pautas principais, já que prefiro trabalhar com neurociência da aprendizagem e educação empreendedora, entre outros temas, mas poderia tentar ajudar. Perguntei qual era a ideia que tinham e ouvi que era “trabalhar os princípios da alfabetização”. Questionei qual era o público e a pessoa respondeu que eram alfabetizadores. Eu estou entendendo o movimento dela. Minha crítica não é a quando essas coisas acontecem, porque é bom que alguém esteja atento a essa necessidade de buscar aperfeiçoamento para a equipe. Eu falo muito mais da formação inicial do que das capacitações que vêm depois.

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