Mario Sergio Cortella fala sobre ética e protagonismo do aluno

Em entrevista exclusiva ao Educação em Pauta, educador e filósofo brasileiro também traz reflexões filosóficas, diversidade e os papéis da escola e da família

por: Eduardo Wolff | eduardo@padrinhoconteudo.com
imagem: Divulgação

Autor de frases e pensamentos que permitiram que milhares de brasileiros refletissem sobre diversos aspectos da vida, Mario Sergio Cortella se tornou uma grande referência da filosofia no país. 

Formado em Filosofia na Faculdades Anchieta, Cortella fez mestrado e doutorado em Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), na qual começou a lecionar em 1977, com docência e pesquisa na Pós-Graduação em Educação e no Departamento de Teologia e Ciências da Religião. Entre 1991 e 1992 foi secretário municipal de Educação de São Paulo.

Atualmente é professor convidado da Fundação Dom Cabral e do GVpec da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). Também é comentarista e colunista em programas de rádio e televisão, além de ter um canal no YouTube e perfil no LinkedIn. Ao todo, possui 47 livros publicados no Brasil e no exterior.

Com o intuito de abordar temas que envolvem a educação, bem como o comportamento humano, a reportagem do Educação em Pauta fez uma entrevista exclusiva com o filósofo e educador.

Educação em Pauta – No pós-pandemia, como você avalia as relações humanas? E como foi o papel da escola para essa convivência social? 

Mario Sergio Cortella – Nesse tempo pandêmico, havia algumas expectativas em função das agruras, das dificuldades, das turbulências que iriam nos deixar mais sábios em relação à convivência, ao modo de partilha, às ações da comunidade, mas assim não foi. Nós já repetimos em várias situações essa conduta em tempos anteriores e costumo dizer que pior do que aprender pela dor é com ela nada aprender. Algumas pessoas modificaram ações de solidariedade, foram capazes de ter uma percepção mais empática, mas, no conjunto, passamos como se isso não tivesse acontecido. 

Já que os grandes impactos não foram sentidos exclusivamente no mundo adulto, no campo das crianças e dos jovens, a escola, sem dúvida, teve uma série de danos. Não foram provocados por medidas de saúde institucional, porque o afastamento e a salvaguarda eram necessários, mas sim evidenciou algumas formas muito negativas daquilo que é a educação escolar. Mostrou que temos uma fragilidade ainda na escolarização a tal ponto que, no mundo da tecnologia, a nossa capacidade de atendimento remoto foi limitada. 

Olhando os dois lados da sua questão, primeiro, a gente tinha uma possibilidade até de sairmos todos melhores. Segundo, as pessoas que eram tolas antes da pandemia persistiram com essa tolice durante a pandemia e guardam agora uma fidelidade a essa tolice também no pós-pandêmica. 

Educação em Pauta – Você já comentou sobre a motivação na vida e nos estudos. Como atingir esses focos? 

Mario Sergio Cortella – Eu e o jornalista Gilberto Dimenstein, já falecido, escrevemos um livro chamado A Era da Curadoria. Mas o que vale aí é o subtítulo: O que importa é saber o que importa. Por isso, o que se faz para que haja um estímulo a um aluno de qualquer nível de educação? Quem participa da educação dessas crianças, jovens ou adultos entende o que a eles importa. Não é para reduzir o ensino apenas aquilo ao que importa à pessoa, mas a partir daquilo que a ela importa, para chegar a dimensões mais ampliadas do que também deve importar. 

Por isso, é preciso sair do universo imediato em que se está e compreendê-lo. Ver o que emociona uma criança ou um jovem, isto é, o que o toca, o que é que mexe com ele e, partindo dessa emoção, aquilo que pode ser no campo da arte, da ciência, da filosofia e do esporte, chegar às dimensões de que é necessário por uma formação técnico-científica. Uma base de solidariedade social, compreensão de cidadania consciente. 

Ninguém em sã consciência supõe que essa nova geração seja despossuída de capacidade, de clareza do que ela precisa e que ela gosta, apenas que precisa e gosta não é suficiente por uma formação ampliada. Aliás, se assim o fosse, não teria necessidade de estar no processo de escolarização. A nossa humildade pedagógica tende a nos colocar a aprender o que interessa para a gente, chegando a uma amplificação do que deve interessar na formação de alguém.

Confira abaixo o vídeo “O Tempo e a vida”, do Canal do Cortella no Youtube:

Educação em Pauta – Você defende a ética no projeto pedagógico da escola. Como é viável na prática? 

Mario Sergio Cortella – A ética não se reduz a ser uma disciplina, tende a aparecer como uma prática cotidiana. Algumas escolas quando querem trabalhar valores como cooperação, colaboração e solidariedade desenvolvem ações nessa direção. No lugar de ficar apenas discutindo o conceito, vão em busca de um exercício daquilo e fazem, digamos, naquilo que é o Ensino Fundamental. Por exemplo, ter a noção de jogos cooperativos na área de Educação Física de maneira que não se fique apenas naquilo que é a disputa e que se permita ser uma brincadeira e não uma forma de humilhação de outra pessoa. 

Na Educação Básica, a ética tem que aparecer como um conteúdo ou, se houver um ensino de Filosofia, que venha especialmente no último ano do Ensino Médio, como contributivo à reflexão, trazendo aí as teorias. No entanto, a prática da decência só pode ser exigida e ensinada quando se pratica a decência. É assim que se tem um impacto cognitivo muito mais intenso.

Educação em Pauta – Já que você mencionou a Filosofia na escola, em que momento é importante ela entrar na vida de um jovem? 

Mario Sergio Cortella – A reflexão filosófica tem que aparecer desde sempre, em todos os níveis da educação. A Filosofia como formalização do conteúdo, isto é, como matéria, é mais adequado que apareça no final do Ensino Fundamental ou dentro do Ensino Médio. Tende a aparecer como um componente que se compreenda uma parcela dos tempos e modos em que o pensamento filosófico veio à tona e de que forma o foi. 

À medida em que se deseja, no Ensino Médio, formar a atitude científica e atitude reflexiva, a Filosofia aparece como matéria e dará uma formalização à reflexão. No entanto, a atitude filosófica, a compreensão da vida a partir de uma identidade humana, mas não exclusivamente humana. É a percepção daquilo que nos rodeia como consciência tende a aparecer desde sempre e isso acontece de forma quase que espontânea nas crianças na Educação Infantil. Traduzindo o que o Renato Russo (músico) trouxe na música Pais e Filhos “por que o céu é azul? por que as coisas acontecem?”. São coisas que uma criança vai trazendo e que pouco a pouco vão tendo outras percepções como “por que tem gente que não é boa?” e “qual é a origem do mal?”. Então, a atitude filosófica tem que ser feita de forma com a intenção de identificar a capacidade de liberdade e consciência humana.

Educação em Pauta – Qual é a sua visão referente à diversidade e à intolerância no ambiente escolar?

Mario Sergio Cortella – A escola é lugar de inclusão, agrega, reúne, faz com que as pessoas participem da vida, proporciona conhecimentos e vivências necessárias. Portanto, a escola é um lugar de promoção da fertilidade da vida. Não é o único local para isso, mas é especialmente destinado para essa condição. 

A escola agrega muitos modos de ser e que não podem ser excludentes. A escola realiza o acolhimento das diferenças em relação à capacidade física, à etnia, à percepção religiosa, ao sotaque que se usa, à condição econômica. É um lugar de presença e convivência em que ninguém será separado por conta de alguma diferença, como trago à tona em meu livro infantil, o Diferente sim, desiguais, jamais!

Cabe à escola também dar seguimento a isso e uma das coisas que é necessária é que se faça isso na formação das famílias. Não basta que as crianças sejam formadas só para a aceitação, mas também para o acolhimento da diversidade. É interessante chamar os pais, os responsáveis, os adultos para dialogar sobre o tema de maneira que aquilo que a escola faz a promoção da diversidade não se assemelhe a uma intromissão nas coisas que a família carrega. 

Em 1989, quando Paulo Freire era o Secretário de Educação de São Paulo, a primeira escola inaugurada por ele foi com o nome de Henfil (cartunista e quadrinista). A comunidade não tinha tanta noção de quem era ele, pois era uma região mais distante do centro social da cidade. Pouco a pouco apareceu a ideia de quem enfim ele era, uma pessoa que faleceu vítima do HIV. Claro que, na época, não havia informação de que ele havia recebido o HIV devido às transfusões de sangue contínuas por ser hemofílico. Mesmo que não fosse por hemofilia a sua morte, que fosse por consumo de droga ilegal ou pela orientação sexual, ele deveria ser acolhido. Eu conto isso por uma razão, quando uma parte da comunidade teve ideia de quem era o Henfil, depois da rejeição, alguns meses após a inauguração da escola, pelo fato dele ter morrido de HIV, mudou a atitude em relação a ele. O esclarecimento, a conversa, a comunidade, de maneira geral, costuma afastar o que é o prejuízo, o preconceito, a segregação para esse tema. Temos que educar coletivamente crianças, jovens e adultos.

Mario Sergio Cortella é filósofo, educador e autor de 47 livros

Educação em Pauta – E qual seria o envolvimento da família na educação dos jovens? 

Mario Sergio Cortella – Não podemos confundir a educação com escolarização. A educação é um processo ampliado de formação de pessoas. Não nascemos prontos, por isso temos de nos formar como humanos. A educação é da família e, de modo secundário, do poder público. A educação se dá na família, na amizade, no clube, na mídia, na igreja, no lazer, no trabalho. Cabe à escola um modo específico de educação, que é a escolarização. 

A responsabilidade sobre a educação parte da família, mas isso não significa que a família e a escola estejam em polos opostos, são atividades diferentes com a mesma intenção. Daí, a urgência sempre de uma parceria que esse esforço educacional, que é feito cada um no seu caminho, tenha uma convergência no bem-estar e na capacidade naquilo que é exatamente o afeto por essas crianças e jovens que são ali formados. 

Educação em Pauta – Cada vez mais, se salienta o aluno ser protagonista do seu ensino. O que é preciso para isso?

Mario Sergio Cortella – Para que o protagonismo tenha a presença e não seja apenas uma intenção que fica distante da prática, é necessário que as tarefas do dia a dia tenham empenho nessa direção do protagonismo, da iniciativa, do empreendedorismo e da proatividade. Por isso, é necessário romper com uma postura aqui ainda presente que é a passividade discente, que não se manifesta em outras instâncias que essa geração mais jovem tem no mundo digital, em que tem uma presença ativa, tem a possibilidade fazer a sua produção, suas postagens por meio do uso da tecnologia. A escolarização não pode se furtar de produzir situações que não substituem a docência, mas que necessitam dar a cada criança uma perspectiva emancipatória, em que ela não apenas aprenda, mas que aprenda a aprender. 

Desde o início do século 20, se debate esse tema na área de educação. No século 21, isso é mais urgente e necessário ainda. É só olhar os grandes conselhos traduzidos por Jean Piaget, Maria Montessori, Paulo Freire e pessoas que estudaram essa questão e sugerem a importância de cada criança ou jovem ser a autora do seu caminho. Não apenas consumidora de algo que é externo a ela, porque a emancipação é decisiva para a esfera da educação. Para usar uma expressão do Rubem Alves: “há escolas que são gaiolas, e há escolas que são asas”. Nós desejamos que as escolas sejam asas e que as pessoas voem de modo consciente e colaborativo em direção a um futuro melhor.

Educação em Pauta – Para proporcionar essas “asas” aos alunos, os professores são fundamentais. De que forma os docentes podem atuar e como podem se reinventar?

Mario Sergio Cortella – A tarefa da docência é colaborativa, não abre mão da autoridade docente, o que é o inverso de autoritarismo, que não abre mão da capacidade de gerir. É ser uma espécie de curadoria da atividade dentro do trabalho escolar e, claro, da atualização de alguém que atua na docência. Só é um bom ensinante quem for um bom aprendente. A nossa formação continuada é decisiva para que a nossa ação não perca relevância social e nem atualidade em relação ao exercício. O grande risco na minha atividade como docente é que eu fique fora do tempo, isto é, anacrônico. Ter essa percepção e dispor-se a atualizar a ação, a recriação e a reinvenção é a marca decisiva de alguém que tem no magistério, não apenas uma profissão, mas um propósito. 

O ambiente escolar tem que ser permeável para essa formação conjunta. Não pode ser um ambiente fechado, a comunidade pedagógica não pode estar dentro de processos de isolamento entre si em relação à comunidade escolar como um todo e não apenas a pedagógica interna. Esse tipo de fronteira existe como operação, mas não pode ser barreira. Fronteiras não são barreiras, apenas determinam os limites, de maneira alguma são impeditivas da circulação, da necessidade de que haja cada vez mais ações de trabalho coletivo que rompam eventuais isolamentos que só trazem danos àquilo que se tem como intenção em educação escolar. 

Educação em Pauta – Professor, para finalizar a entrevista, até onde a educação pode agregar na vida de uma pessoa? 

Mario Sergio Cortella – Olha, a educação, de maneira geral, e a escolarização, de maneira particular, podem fazer com que a pessoa escolha seus caminhos, construa ferramentas próprias ou uso de ferramentas de vida que tenham sido produzidas por outras pessoas. Ela tem de ser um campo de autonomia. A educação não tem possibilidade absoluta. Há dois grandes mitos que temos que tirar do nosso cenário no campo da influência da educação. O primeiro deles é tudo podemos fazer, porque é falso. O segundo é que nada podemos fazer, porque também é falso. Entre o nada é possível e o tudo é possível, a gente encontra o caminho daquilo que não só pode ser feito e como deve ser feito.

TAGS





Assine nossa newsletter

E fique por dentro das novidades