O que são neuromitos e de que forma eles prejudicam o desenvolvimento
Em entrevista, André Hedlund, especialista em ciência da aprendizagem, fala sobre a importância de embasar o ensino em métodos cientificamente comprovados
Crenças são importantes sob diversos aspectos. Na história da humanidade, elas ajudaram a explicar fenômenos até então inexplicáveis – se não tinham embasamento científico, pelo menos aplacavam a ansiedade de uma comunidade por respostas. Mas, na educação, não pode ser assim. Por décadas, algumas crenças orientaram a definição de metodologias de ensino, impedindo que se explorasse todo o potencial de aprendizado dos estudantes. As afirmações que não se confirmam caem na classificação de neuromitos, já que se referem a como o cérebro aprende.
Referência no campo da educação e da ciência da aprendizagem, André Hedlund tem se debruçado sobre este tema há alguns anos. Nesta entrevista, ele compartilha sua visão sobre os neuromitos, o impacto das emoções no processo de aprendizagem e os desafios da formação continuada dos professores.
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Há quem chame os neuromitos de “edumitos”, por estarem relacionados à educação. Seja como for, o fato é que o melhor caminho consiste em aliar diferentes estudos – mais notadamente a tríade mente, cérebro e educação – para, aí sim, definir métodos de ensino que sejam capazes de reter a atenção e contribuir para o pleno desenvolvimento tanto de estudantes, quanto de professores.
Nesse contexto, André destaca a importância de embasar o ensino em métodos cientificamente comprovados e ressalta a necessidade de acolhimento emocional nas salas de aula. Por meio de sua experiência, o mestre em Psicologia da Educação pela Universidade de Bristol e professor de Bilinguismo e Cognição na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) inspira a repensar práticas pedagógicas e a buscar um ensino cada vez mais conectado à ciência e à realidade de nossos alunos.
Educação em Pauta – O que são os neuromitos?
André Hedlund – Um mito, se a gente for pensar, é uma afirmação falsa ou distorcida sobre algo; e, pensando em neuro, é o funcionamento do cérebro. Daí vem a expressão, mas, mais especificamente, temos usado esse termo dentro de um contexto educacional. Na literatura, ou mesmo nas redes sociais, você encontra o neuromito como uma ideia falsa sobre como o cérebro aprende.
A gente começou a falar sobre neuromitos quando a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) fez um relatório, na virada do século, dizendo que muitos educadores aplicavam metodologias e abordagens porque acreditavam que o cérebro aprendia de determinada maneira – mas o documento questionava se isso de fato procedia. Vários pesquisadores, principalmente da neurociência e da psicologia cognitiva, foram chamados para explicar como o cérebro funciona e dizer o que fazia sentido.
Muitas pessoas chamam de edumitos, justamente porque eles têm uma relação mais direta com a educação – e não necessariamente com ciências cognitivas. Existem mitos de que a criança para aprender precisa fazer “assim ou assado”, e isso não diz respeito necessariamente ao cérebro. Mas, se a gente for pensar, tudo é controlado pelo cérebro, ele é o centro operacional do nosso corpo, então, de maneira muito prática, podemos chamar tudo de neuromito.
Educação em Pauta – Segundo seus estudos, alguns neuromitos podem levar os professores a decisões mal-informadas quando planejam e dão suas aulas. Esses mitos também podem desviar nossa atenção das coisas que funcionam, comprovadamente, quando estamos estudando e ensinando. Toda informação sem rigor científico, no ambiente de ensino, pode ser perigosa?
André Hedlund – Esse é um ponto essencial. A nossa melhor ferramenta para descobrir processos e abordagens é o método científico. Nós o aplicamos para entender a natureza – seja dos planetas, do universo, mas também das pessoas. Eu diria que o rigor científico deve estar, sim, na base. Mas ele, sozinho, não deve ser levado como a única verdade absoluta porque não é assim que a própria ciência funciona. Ela dialoga com outras áreas, científicas e não-científicas.
Existe uma área interdisciplinar chamada mente, cérebro e educação, que é interessante. O que o cérebro nos dá de informação pela neurociência, tem de ser analisado pela psicologia e pela pedagogia. O que um cientista descobre em um estudo de neuroimagem, por exemplo, passa pelo crivo do psicólogo, que estuda a mente humana, o indivíduo.
Sendo assim, um estudo que fala sobre a ativação de determinada parte do cérebro, identificada por meio de uma ressonância, pode não ter uma tradução prática para a sala de aula. Isso porque a maneira com a qual aquele resultado foi obtido talvez não se mantenha, não possa ser replicada dentro de uma sala de aula, que tem muitas outras variáveis e muitos seres humanos e mentes.
Muitos neuromitos surgiram por um entendimento superficial da ciência. Por se adotar um estudo e dizer que, a partir daquele momento, era daquela forma que as pessoas aprendiam. E isso determinava as abordagens pedagógicas. As estratégias, os métodos que os professores usam não devem ser negligenciados, pois eles têm mais experiência do que qualquer pessoa naquele ambiente de ensino, já passaram por muitos desafios e sabem melhor do que ninguém como ensinar. Mas eles também precisam olhar para a ciência, que traz respostas com uma frequência muito maior hoje em dia. O caminho é o diálogo entre tudo isso.
Educação em Pauta – A pesquisa sobre emoções foi ignorada, por muito tempo, devido à visão predominante de que as emoções eram subjetivas, vagas e não relacionadas à razão. Isso mudou nas últimas duas décadas, segundo um artigo seu. Como esse mito ainda prejudica o ensino e de que forma podemos transformar esse comportamento?
André Hedlund – A gente tem um caso muito interessante, na literatura, de um trabalhador ferroviário que sofreu um acidente bizarro, no fim do século XIX: uma barra de ferro passou pelo crânio dele. Isso afetou regiões do cérebro, principalmente do lobo frontal, que tem a ver com o controle das emoções, a tomada de decisão, enfim, as chamadas funções executivas.
Esse cara não teve, aparentemente, nenhum declínio cognitivo (inteligência, raciocínio), mas começou a ter atitudes e comportamentos diferentes. Mostrou-se agressivo, impulsivo, não conseguia controlar suas emoções.
Uma série de pesquisadores estudaram o crânio desse homem, fizeram simulações. Um dos mais famosos foi o neurologista António Damásio, que publicou o livro “O Erro de Descartes”. Ele subverteu a lógica cartesiana “penso, logo existo” alegando que, em seu entendimento, “nós sentimos, logo aprendemos”. Em um artigo, ele constatou que as emoções e a cognição não podem ser separados, isolados, pois trabalham juntos.
De maneira muito prática, um aluno em estado emocional intenso, seja negativo ou positivo, não vai conseguir fazer o melhor uso de sua cognição. Ignorar isso é perder uma oportunidade de ensino efetivo. Se ele perdeu o cachorro, tem dificuldade em casa e o professor fala que não é hora disso, ele perde a atenção e simplesmente não consegue, fisiologicamente falando. Está com a memória cheia. Desligar a emoção para acessar o potencial cognitivo completo é uma coisa que não existe.
Educação em Pauta – Isso quer dizer que o acolhimento na sala de aula é importante?
André Hedlund – Precisamos acolher as emoções dos nossos alunos. Gosto muito de uma analogia que vem dos estudiosos de emoção, principalmente Lisa Feldman. Podemos analisar as emoções como nuvens: às vezes o tempo está aberto, a gente sabe que não vem tempestade; às vezes tem nuvens carregadas e sabemos que precisamos nos preparar.
As emoções preparam nosso corpo. A gente tem um equilíbrio em que se prepara para gastar energia a fim de lidar com certas situações. Esses sinais, na questão do clima, são as nuvens escuras e cheias, o vento. Isso me diz que preciso de roupa mais adequada. Mas precisamos lembrar que as nuvens passam. Se elas ficarem muito tempo, talvez estejamos em uma condição mais crônica de estresse e devamos buscar soluções, inclusive um tratamento. Mas todo ser humano passa por estados emocionais diversos ao longo do dia para se preparar para essas situações. Ser humano significa abraçar e lidar com as próprias emoções.
Educação em Pauta – Voltando aos neuromitos, o que fala sobre a necessidade de ser multitarefa não só é real, como uma exigência, em muitos casos. No que consiste e como está presente na sala de aula ou no processo de ensino?
André Hedlund – Isso tem a ver com um cenário assustador hoje em dia, que é a rotina multitelas. A gente sabe que o cérebro não tem condições de focar em duas coisas ao mesmo tempo. A gente tem essa impressão, dependendo das tarefas, porque de acordo com o canal da memória ocupado até conseguimos conciliar diferentes tarefas.
Olhando para a estrada enquanto dirijo, por exemplo, ainda consigo com certa facilidade usar meu canal fonológico. Enquanto corro no parque, a alça visuoespacial está em uso, mas consigo conversar ou ouvir um podcast.
O problema maior acontece quando tento fazer duas tarefas no mesmo canal. Se estou dirigindo e recebo um texto no WhatsApp, é fisiologicamente impossível prestar atenção nas duas coisas ao mesmo tempo. Nesse meio segundo, pode passar alguma coisa na estrada e eu não consigo ver.
A multitarefa está sendo promovida e virou praxe. Quando a aula começa a ficar chata, que realmente preciso me esforçar para prestar atenção, eu pego o celular. No computador, usamos várias abas, sempre tem alguma coisa roubando um pedaço da minha atenção. E como ela tem ligação direta com a memória de trabalho, e essa tem espaço limitado, quer dizer que estou perdendo muitas coisas, não aprendo de forma eficaz.
Por isso, já existem muitos estudos interessantes mostrando que há uma queda generalizada nos níveis de QI da população global. Ele sempre aumentou, conforme as gerações foram aumentando, por uma questão social, de acesso à informação. Mas agora tem sido o contrário, com QI médio menor do que em gerações anteriores. É difícil estabelecer causalidade, mas existe uma relação com a aparição das telas, do celular. A atenção é uma commodity muito valiosa que o professor tem que lutar por ela.
Educação em Pauta – Os estilos de aprendizagem também são um neuromito ou edumito? Quanto pesam para brecar o desenvolvimento?
André Hedlund – O que temos de evidência, e isso já está mudando: os estilos de aprendizagem vêm dos anos 1950, com um framework que olha muito para os estilos visual, auditivo e cinestésico. Tem pessoas que aprendem melhor somente ao receber estímulos visuais, estímulos auditivos e outros precisam se levantar e tocar, ter experiências de movimento.
“Então a gente não tem estilo de aprendizagem?” Tem pesquisas que dizem que sim, se vê diferença no estímulo neural. O que não podemos dizer, e esse é o grande mito, é que nós aprendemos melhor ou de maneira mais eficaz quando a gente recebe a informação de acordo com nosso estímulo preferido.
Digamos que uma pessoa afirme não gostar de fazer anotações, só precisa ouvir porque é auditiva. Aí você coloca ela em um grupo onde ela ouve, interage e anota, e em outro no qual só ouve. Adivinha em qual ela vai aprender melhor? O cérebro codifica melhor quando usa pelo menos duas alças: a visuoespacial e a fonológica. Precisamos de imagens e sons para codificar as coisas. Então não adianta isolar um estilo, todos aprendem melhor combinando todos os tipos de mídia.
Educação em Pauta – Como você vê a questão da formação continuada? Que aspectos devem ter maior atenção dos gestores?
André Hedlund – Um desafio central tem a ver justamente com esse tópico que estamos falando, que é a ciência da aprendizagem, ou a ciência da mente, cérebro e educação. Entender os processos que são mais eficazes para o ensino-aprendizagem. Todas essas áreas, juntas, estão dizendo o que funciona melhor. Isso é o mais central e essencial. Mas também acho que os professores têm em seus cenários demandas irreais e surreais.
Eles têm de lidar com algumas condições de trabalho, ou com uma interferência muito grande de famílias, que não têm nenhum treinamento em pedagogia, ciência da aprendizagem, mas que acham que têm o direito de intervir. Essa questão clientelista deve ser muito bem revista e transformada. A gente precisa das famílias como suporte, como apoio. Talvez uma formação voltada para educar as famílias, também, chamando para participar da comunidade escolar. Além de uma formação voltada para boas práticas de sala de aula, para o entendimento de como o cérebro e a mente funcionam.
As escolas têm focado as formações em tecnologias digitais para a educação há pelo menos duas décadas. Computadores, lousas interativas, chromebooks, tablets, realidade virtual, realidade aumentada e inteligência artificial. Todas essas coisas podem ser usadas na escola, com certeza, mas precisam de um cuidado muito maior porque elas não substituem um bom professor, o relacionamento humano.
A tecnologia que substitui o esforço do aluno não é válida, ou não deveria ser. A gente tem que construir as sinapses dentro do cérebro, não uma tecnologia que faça isso por nós, como o ChatGPT. Sem a experiência de construção do esforço a gente não aprende e não podemos delegar isso para uma máquina. Não podemos deixar de memorizar e decorar – uma palavra temida pelos professores. Senão a gente cai mais facilmente em falácias, em fake news.
Educação em Pauta – Seu livro “Fator Coruja” fala sobre a filosofia de ensino. No que consiste essa reflexão?
André Hedlund – Esse foi meu primogênito, lançado há dois anos. A ideia foi criar uma filosofia de ensino que olha para três estágios essenciais: saber, mostrar e crescer. Em qualquer experiência educacional, eu sei dos meus conteúdos, dos meus métodos. O aluno, por sua vez, sabe de várias outras coisas, tem conhecimento prévio, não é uma tábula rasa. Eu sei, o aluno sabe. Quando a gente se junta em um contexto educacional, a gente mostra o que sabe. Então, eu falo sobre abordagem técnica, estratégica, método. E, depois disso, a gente cresce porque o aluno passou a saber de coisas novas – e eu sei mais sobre meus alunos, sobre o que posso ou não fazer com aquela turma.
Educação em Pauta – E como se pode reformular a filosofia de ensino?
André Hedlund – A minha dica central é que procure dois termos: primeiro, a ciência da aprendizagem, science of learning. Diversos autores falam sobre isso, temos alguns muito importantes no Brasil, como a Roberta Ekuni e a Mirela Ramacciotti, que estuda a mente, o cérebro e a educação. São duas pessoas que divulgam bastantes pesquisas sobre como aprender a ensinar com base na evidência. E também vale pesquisar o termo “Mente, Cérebro e Educação”, uma ciência transdisciplinar que junta tudo isso.
Importante lembrar que a formação docente é uma busca interminável. Como diz a reflexão: “se você tem 20 anos de experiência como educador ou professor, será que tem de fato 20 anos de experiência ou um ano, repetido 20 vezes?”, ou seja, usa sempre o mesmo material, o mesmo planejamento? Precisamos nos atualizar o tempo todo. Os novos tempos trazem novas demandas e desafios.
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