Como evitar o apagão de professores?

Especialistas examinam as causas e apontam soluções para a queda no número de docentes no Brasil

por: Tatiana Py Dutra | Especial
imagem: Freepik

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) do Ministério da Educação (MEC) publicou estudo recente mostrando que faltam professores habilitados para a docência na Educação Básica em todas as regiões do país. O quadro mais grave está nas regiões Norte e Nordeste, onde apenas 47,4% e 46,5% dos professores que atuam nas séries finais do Ensino Fundamental têm formação adequada na área. Em seguida, o Centro-Oeste, com 65,8%, e as regiões Sul e Sudeste em melhor condição, com 69,9% e 70,8%, respectivamente.

Em relação ao Ensino Médio, o Nordeste conta com 63,4% de professores habilitados, enquanto o Norte tem 66,2% e o Centro-Oeste, 66,3%. Em seguida, em melhores condições, porém ainda deficitárias, estão as regiões Sudeste, com 69%, e Sul, com 72,4%.

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Conforme o Inep, as maiores lacunas estão nas disciplinas de Literatura, em que faltam 54,5% do contingente docente com a respectiva habilitação, e Artes, com falta de 51,4%. Em seguida ficam as disciplinas de Geografia e Matemática, com as lacunas de 35,9% e de 34,7%, respectivamente. Em Ciências, a falta de professores habilitados chega a 30%.

Esses dados vêm a corroborar uma impactante projeção divulgada pelo Instituto Semesp em 2022: até 2040, o Brasil deve enfrentar um “apagão” de professores na Educação Básica. Faltarão 235 mil docentes nas escolas do país. Só no Rio Grande do Sul, conforme cálculos do Serviço Social da Indústria (Sesi-RS), o gap da Educação Básica será de 10 mil profissionais.

Faculdades fechadas

Essa crise já pode ser sentida no dia a dia das instituições de ensino. O diretor do Centro Tecnológico Frederico Jorge Logemann (CFJL), que completa 95 anos de atividades este ano, Sedelmo Desbessel, diz que a cada seleção de professores aparecem menos interessados. Segundo ele, o problema se repete em todo o Noroeste gaúcho. 

“A nossa região é a que tem mais defasagem de professores no Estado, e tudo indica que no futuro será muito mais sério. As grandes entidades e instituições formadoras, como Unijuí e Dom Bosco, encerraram seus cursos [de licenciatura] porque eram deficitários. A falta de estímulo para buscar a docência causa essa falta de professores”, relata.

Conforme dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2012 houve 16,6 mil ingressos em cursos presenciais de formação de professores no Estado, número que despencou para 6,6 mil em 2022. No mesmo período, o número de cursos caiu de 532 para 373. Além disso, há uma má distribuição dos cursos de formação no território gaúcho, como pontuou Desbessel. Há cada vez menos oportunidades para quem quer ser professor no Interior. Na região das Missões, por exemplo, já não há cursos presenciais de Geografia.

O diretor da Faculdade Instituto Ivoti, Jorge Augusto Feldens, considera que o apagão já é realidade, de alguma maneira. A instituição é 100% dedicada à formação de professores. “Também precisamos olhar para a qualidade dos professores que estão sendo formados. Faltarão em número, nos próximos anos, mas neste momento já estão faltando em termos de qualidade”, alerta.

Feldens chama atenção para o que chama de escassez oculta, que é a falta de professores certificados dentro das áreas do conhecimento em que atuam, como referido no começo deste texto. “Como é que o sujeito que não é da área vai estimular um jovem a seguir essa carreira depois, se nem ele a escolheu?”, questiona.

Possíveis causas

A preferência dos estudantes por cursos a distância – cujas taxas de evasão são superiores às do ensino presencial – é um dos quatro fatores que o Semesp elencou como  preponderantes no esvaziamento da carreira docente. As outras causas seriam o desinteresse dos jovens brasileiros por cursos de licenciatura, que teve queda de 62,8% para 53% entre 2010 e 2020; baixos salários e más condições de trabalho, além do envelhecimento dos profissionais da categoria. Segundo o levantamento do instituto, o número de professores com mais de 50 anos, em vias de se aposentar, aumentou 109% de 2009 a 2021.

A professora do programa de Pós-Graduação em Educação da Escola de Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Andreia Mendes dos Santos ainda atribui a fuga de talentos da docência a uma crise global na educação.

“Temos de pensar qual o papel da educação e como ela desempenha esse papel. No meu ponto de vista, um deles, o papel social, vem sendo desqualificado. Hoje, se substitui a sala de aula por vídeo no YouTube. O conhecimento do professor, as estratégias pedagógicas, por entretenimento. Para a sociedade, um vídeo é melhor do que uma aula e ela não se dá conta que está consumindo vídeos de senso comum”, avalia.

A professora pondera que um efeito colateral dessa situação é que mesmo que repense suas estratégias de ensino, propondo aulas mais motivacionais e criativas, ainda se percebe o desinteresse do estudante. 

Possíveis soluções

No entendimento de Andreia, a possibilidade de reversão desse cenário passa pela valorização da escola como um todo. “Temos de deixar claro qual o significado da escola para o campo da infância, sobre a  importância do ambiente escolar. A educação da criança começa desde o berçário, quando ela vai sair do mundo privado para o campo coletivo. Aprender a segurar o talher na educação infantil vai ajudá-la a segurar o lápis. A escola é fundamental para a formação da criança, precisamos valorizá-la”, diz.

“Precisamos ter o compromisso de estimular os nossos jovens, aqueles alunos que se destacam, a buscar a docência. E, evidentemente, temos de pensar em dar uma valorização maior aos estudantes, oferecendo intercâmbios, residências universitárias, criando estratégias para motivar as pessoas a buscarem a docência”, acrescenta Desbessel.

Incentivar a carreira docente ainda passa, sem dúvidas, por políticas públicas. Iniciativas como o Programa Professor do Amanhã e o professor Mentor de Estágio Supervisionado – criado pelo governo do Estado para atrair jovens para cursos de licenciatura – têm sido muito bem recebidas pelos especialistas. Mas espera-se mais ação do governo federal no fomento à formação de professores. 

Desbessel acredita que os institutos federais, que se multiplicam pelo país, deveriam se dedicar a ofertar cursos de licenciatura, por exemplo. Outra ação favorável, segundo ele, seria desestimular a criação de licenciaturas EAD – que muitas vezes promovem uma formação deficiente.

“A formação de professores é urgente e temos problemas muito sérios. Estão chegando ao mercado de trabalho pessoas formadas em EAD que nunca pisaram em sala de aula, sem as mínimas condições de domínio de turma, de habilidade presencial. As escolas hoje estão tendo de preparar o professor para trabalhar”, revela.

Andreia destaca ainda a importância das trocas geradas pela educação presencial, fundamentais para a formação dos professores. 

“Quando a escola surge, na antiguidade, ela surge na intenção da interlocução. Ela vem não para a transmissão, mas para a construção do conhecimento, da investigação, da pesquisa e da transformação do aluno. O próprio princípio da formação do professor vai contra a formação de um professor que não se alia. Você contrataria um médico, ou um engenheiro que só assistiu em vídeo como fazer sua prática? Na educação é a mesma coisa. A escola é muito maior que suas quatro paredes. A EAD é um convite à tragédia na educação”, afirma.

Problema é global

A escassez de professores não é uma exclusividade do Brasil. Relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) revela que seriam necessários mais de 44 milhões de professores no mundo para atender a demanda. A África Subsaariana e o Sul da Ásia são as regiões mais afetadas, mas mesmo países ricos como Israel têm dificuldade em educar suas crianças; Por lá, desde os anos 60, o governo treina pais e responsáveis para dar aulas em sistema de homeschooling. O programa “Instruções em casa para pais e crianças em idade pré-escolar” hoje é reproduzido em 12 países, abrangendo 30 mil famílias.

A instituição alerta sobre a necessidade de formação de milhões de novos docentes até 2030, que é o prazo para as metas estabelecidas pelos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU). Para isso, recomenda a tomada de sete medidas: 

  • Maior investimento na formação inicial e contínua de professores(as);
  • Programas de mentores que promovam a colaboração entre educadores(as) experientes e novatos;
  • Salários competitivos face a profissões semelhantes e oportunidades de progressão na carreira;
  • Eliminação de trabalho burocrático para permitir um maior foco no ensino;
  • Maior equilíbrio entre vida pessoal e profissional, cuidados de saúde mental para lidar com o estresse 
  • Lideranças fortes nas escolas que valorizem os profissionais

“Entender que o professor exerce um papel importante na sociedade e municiá-lo de ferramentas para legitimar a educação como o maior ativo para o desenvolvimento do país faz toda a diferença na construção de uma gestão em que há coparticipação na estrutura educacional”, opina a diretora da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) Rosilene Corrêa.

O presidente do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (SINEPE/RS), Oswaldo Dalpiaz, lembra que o Conselho Nacional de Educação (CNE) já publicou orientações para que as instituições formadoras revejam e aprimorem seus processos, atualizando currículos. Por sua vez, essas instituições nem sempre conseguem colocar no mercado profissionais preparados para o momento histórico. 

“Por exemplo: há muitos professores que saem agora das faculdades e não têm competência suficiente para administrar as situações de inclusão que existem nas escolas. Em termos de capacitação, se não existir uma atualização constante por parte do professor, no sentido de aperfeiçoar suas metodologias, suas plataformas, fica muito difícil. E o professor precisa de recursos para buscar subsídios que o ajudem a enfrentar a situação”, contextualiza Dalpiaz.

Na prática

O presidente conta que, a fim de mitigar os danos atuais – e prevenir os futuros –, o SINEPE/RS tem proporcionado momentos de formação aos professores e gestores, por meio de seminários, congressos, encontros e lives. “É uma preocupação constante nesse sentido. Também temos mantido diálogo com as entidades formadoras, para ver se elas conseguem modificar o currículo e formar professores para as necessidades atuais”, conta.

Quem também está de olho nesse cenário é a Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP), que demonstra preocupação com os números do estudo Números da Educação Privada Brasileira, publicado pela entidade em 2022. O presidente da federação, Antônio Eugênio Cunha, ressalta que vem acompanhando a escassez de mão de obra não apenas de professores, mas também de auxiliares administrativos, que cuidam de processos como matrículas.

O contexto é complexo. Além dos motivos já mencionados pelos outros especialistas, Eugênio destaca que a capacidade de investimento é limitada. “Nosso cliente gosta de bom professor, mas não está disposto a pagar mais. Até porque o orçamento familiar também é limitado”, pondera.

Para se proteger, as instituições devem cuidar muito bem do material humano de que já dispõem, além de preparar novos profissionais que já estejam em seus quadros. “Contratar é caro, demitir também”, resume o presidente da FENEP. Sendo assim, é recomendável evitar a rotatividade no quadro docente. 

“Primeiro, devo procurar garantir a longevidade desse profissional na minha escola. Como conquistar isso depende da criatividade de cada gestor. Na minha instituição, por exemplo, temos benefícios como tíquete alimentação e pagamento de uma parte do plano de saúde”, compartilha Eugênio.

O dirigente explica que é importante fazer isso de forma diferenciada, criando categorias. O profissional que está há dez anos na instituição pode ter novos benefícios, motivando os que ainda não alcançaram essa posição para que permaneçam no quadro. Saber as possibilidades de ganho futuro também diminui o risco de perder esse professor para a concorrência.

Na outra ponta, é preciso ter consciência de que os novos contratados não saem da graduação totalmente preparados. A forma de lidar com isso é qualificar esses profissionais, dando suporte e fazendo uso das práticas de ensino supervisionadas, para que ganhem performance. O jeito é fazer a melhor contratação possível e já saber o que tem de fazer para manter aquele profissional, com perspectiva de evolução, pois nenhum chega pronto.

“As escolas têm de estar profissionalizadas, com a finalidade de deixar esse professor mais antigo motivado e os que estão entrando ganharem motivação – e, ao mesmo tempo, preparar esse professor para a tarefa que ele tem. Não é um trabalho fácil, é árduo, mas não acredito que tenhamos outra opção”, sentencia Eugênio. “O provável apagão já está presente, contratar não está fácil. Instituições, ouçam o que aflige seus professores. Quando o professor não é feliz, a sala de aula não é feliz”, aconselha.

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