Como fica com a derrubada dos vetos na lei das filantrópicas

Considerada uma vitória da categoria, agora está em vigor o texto final da legislação que rege o setor. Especialistas analisam mudanças substanciais nas regras

por: Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com
imagem: Depositphotos

Agora é oficial: a lei que regulamenta as atividades filantrópicas no Brasil está consolidada e valendo. Após a sanção com alguns vetos, em dezembro de 2021, a matéria voltou para o Congresso, que os derrubou. Chegou o momento de analisar as regras do jogo e se preparar para atendê-las na hora de emitir ou renovar o Certificado de Entidades Beneficentes de Assistência Social (CEBAS), instrumento que permite a atuação no terceiro setor.

A expectativa por um texto que trouxesse segurança jurídica era grande. Até então, a lei que regia a filantropia era de caráter ordinário e inconsistente em alguns aspectos. Esse regramento frágil dava margem para que muitas questões chegassem ao Judiciário na hora de renovar ou conceder o CEBAS.

O objetivo era contar com uma legislação atualizada, que compreendesse o maior número possível de nuances que envolvem a atividade e desse sustentação para fiscalizar as iniciativas sem criar amarras. Para isso, entidades fizeram diversas rodadas de debate com os Ministérios da Educação, Economia, Saúde e Cidadania e com a Secretaria da Receita Federal.

“O projeto, em si, foi uma aquisição muito grande da sociedade civil porque havia sido negociado. Fizemos muitos ajustes de comum acordo. Isso passa no Congresso, com dois terços dos votos, vai para o Senado e é aprovado por unanimidade”, relata o diretor jurídico do Fórum Nacional das Instituições Filantrópicas (Fonif), Thiago Ferreira Cabral.

Atenção aos detalhes

É preciso que os gestores do ensino filantrópico façam uma leitura minuciosa da lei, sob risco de deixar algo passar e comprometer a renovação do CEBAS. Um dos pontos que merecem destaque é a renda dos alunos atendidos: os parâmetros não sofreram alteração, mas um termo que surge no texto muda muita coisa.

O consultor financeiro Roberto Medeiros chama atenção para o artigo 19, que trata dos requisitos para concessão da bolsa de estudos. O texto diz que terá direito a bolsa integral o aluno “cuja renda familiar bruta mensal per capita não exceda o valor de 1,5 (um inteiro e cinco décimos) salário mínimo”. Para bolsas parciais, o limite é de “renda familiar bruta mensal (…) de 3 (três) salários mínimos”. “Essa questão afasta e muito a capacidade de enquadrar alunos, porque agora fala de renda bruta. Antes era descontado da renda o pai que pagava pensão alimentícia, INSS, entre outros”, pontua. 

Especialista no atendimento ao terceiro setor, ele também destaca a mudança nos benefícios complementares. Além da bolsa propriamente dita, as entidades podiam abater até 25% da cota estipulada com a oferta de transporte, alimentação, uniforme e material escolar. Isso mudou significativamente com a atribuição de categorias a esses itens:

– Tipo 1: benefícios destinados exclusivamente ao aluno bolsista, tais como transporte escolar, uniforme, material didático, moradia e alimentação.

– Tipo 2: ações e serviços destinados a alunos e a seu grupo familiar, com vistas a favorecer ao estudante o acesso, a permanência, a aprendizagem e a conclusão do curso na instituição de ensino.

– Tipo 3: projetos e atividades de educação em tempo integral destinados à ampliação da jornada escolar dos alunos da educação básica matriculados em escolas públicas que apresentem índice de nível socioeconômico baixo estabelecido nos termos da legislação.

Segundo o texto, “as entidades que optarem pela substituição de bolsas de estudo por benefícios de tipos 1 e 2, no limite de até 25% das bolsas de estudo, deverão firmar Termo de Concessão de Benefícios Complementares com cada um dos beneficiários”. Já aquelas que optarem pelas atividades em tempo integral deverão firmar “termo de parceria ou instrumento congênere com instituições públicas de ensino” – atendendo esses alunos no turno inverso.

Outra mudança diz respeito à comprovação da condição socioeconômica dos bolsistas, especialmente para as (muitas) mantenedoras que atuam por meio de convênios com prefeituras ou governos estaduais. Pela lei anterior, a indicação do aluno bolsista cabia ao ente público, então a partir do convênio bastava atender àquela quantidade de vagas definida na certificação. Desde dezembro, com a sanção da nova legislação, a responsabilidade desse enquadramento à condição de beneficiado é da portadora do CEBAS.

TAG foi maior motivo de preocupação

Mesmo com todos os cuidados, é possível que a instituição não cumpra todos os requisitos para a renovação do CEBAS – muitas vezes até mesmo por motivos que fogem de sua alçada – a cada quatro anos. Para não interromper a oferta de vagas nestes casos, existe o Termo de Ajustamento de Gratuidade (TAG), que esteve entre os vetos presidenciais e foi o maior motivo de preocupação para os gestores. Derrubados os vetos, a ferramenta volta a valer. 

Funciona da seguinte forma: anualmente, a instituição precisa entregar um relatório de atendimento do CEBAS. Caso a oferta de benefícios prevista pelo MEC não tenha sido alcançada, a instituição deve conceder os 20% de sempre, mais o tanto que havia faltado, acrescido de 10% como penalidade. Isso até a renovação seguinte.

“É aí que entra o papel do contador: ele tem que fazer uma evidenciação específica dessas bolsas e justificar também em notas explicativas. Atendido o TAG, continuo com o processo de renovação de bolsas, da condição de entidade filantrópica”, pontua Medeiros. “O TAG é importante principalmente para aquelas instituições que não têm um grupo de mantidas, já que 1% ou 2% pode colocar em colapso econômico e financeiro”, completa.

O administrador da Rede de Escolas São Francisco, Ademar Joenck, conta que adota o controle permanente para não haver sustos na hora de comprovar a oferta de bolsas. O acompanhamento é feito a cada trimestre e, depois, semestre, para chegar ao fim do ano com uma prestação de contas total satisfatória. O cuidado deve começar já na época de matrículas. “Se está aumentando o número de alunos, deem mais bolsas. Preferencialmente a mais, para evitar essa situação de um TAG”, sugere.

Diligências fazem parte da rotina

É consenso que os questionamentos feitos pelo MEC depois de cada prestação de contas são naturais e até mesmo positivos, uma vez que prezam pela correta aplicação das regras. A possibilidade de as questões em aberto serem analisadas à luz da nova lei também deu dor de cabeça, mas foi igualmente vetada. Cada diligência será analisada com base na legislação vigente quando do fato gerador da discussão. 

Medeiros faz uma leitura positiva. “Por vezes somos surpreendidos por coisas que não nos dávamos conta. Os minicurrículos dos diretores, por exemplo, o MEC quer ver e com toda razão”, defende. Ele completa que também é comum que as instituições deixem passar o credenciamento dos cursos junto ao Ministério, como nos casos em que passam da gestão municipal para estadual. O corpo técnico do MEC, que ele define como extremamente competente, ajuda a manter tudo em ordem.

“Não podemos encarar como uma punição, às vezes é um puro esclarecimento e faz parte de um processo de renovação”, concorda Joenck. “Não tive nenhuma renovação de CEBAS sem que houvesse alguma diligência, ainda que repetitiva. Coisas que já mandei, mando assim mesmo e pronto. Não se discute diligência. O MEC é exigente, mas não está exigindo nada que não seja coerente”, garante.

Entre os pontos observados, Joenck destaca que se os benefícios oferecidos ficarem abaixo de 20% da receita efetivamente recebida, vai haver questionamento. “É preciso fazer esse acompanhamento principalmente no início do ano, mas também periodicamente”, recomenda.

O Ministério da Educação tem um site dedicado ao assunto, onde é possível conferir a documentação necessária e outras informações. Há, inclusive, uma calculadora que ajuda os gestores a saberem se estão cumprindo a oferta mínima de vagas para manter o CEBAS.

Em busca do justo reconhecimento

Em recente pesquisa conduzida pela DOM Strategy Partners, o Fonif apurou que para cada R$ 1 de imunidade concedido às entidades filantrópicas, a sociedade tem um retorno de, em média, R$ 5,92. Além disso, as notas obtidas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) são 17% superiores aos setores privado e público, ou seja, todas as outras instituições de ensino.

“Uma pessoa que tem nota melhor e está mais bem colocada em instituições de renome e referência até mundial, se coloca no mercado de trabalho melhor do que formados em outras instituições, com melhores salários e são pagadores de imposto”, reflete Cabral.

Outra questão é a quantidade de vagas dedicadas a bolsas filantrópicas e o que seria feito desses alunos com um colapso no sistema. São quase 600 mil vagas que precisariam ser atendidas pelos ensinos privado e público.

Ademar Joenck conta que há mais de uma década a Rede de Escolas São Francisco supera em mais de 60% o índice de vagas e benefícios instituído pelo MEC para que a instituição mantenha o certificado. “O governo precisa saber que o que nós fazemos é em parceria com ele. Não somos instituições que estão querendo tirar vantagem da filantropia. Confiem mais em nós, somos do bem e vamos continuar praticando uma filantropia responsável para que muitos e muitos alunos possam ter uma educação de qualidade”, pede. 

Medeiros, que acompanha instituições filantrópicas em todo o Brasil, complementa: “além de fazermos percentuais muito acima do mínimo necessário, o fazemos ao custo equivalente a um quinto do custo da máquina pública, quase um sexto”. Segundo ele, para cada bolsa oferecida, pelo menos 11 alunos são inscritos. Com as devidas condições estruturais e econômicas, muitas delas também poderiam ser atendidas.

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