Para especialistas, revogação do Novo Ensino Médio é retrocesso

Lideranças e gestores educacionais concordam que há ajustes a serem feitos, como em qualquer novidade, mas garantem que experiência já mostra resultados

por: Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com
imagem: Freepik

Fruto de debates que levaram cerca de 20 anos, o Novo Ensino Médio está em seu segundo ano de implantação. Antes mesmo que o primeiro ciclo se feche, com as primeiras turmas concluindo os estudos, surgem algumas frentes questionando a validade do modelo. Especialistas, no entanto, defendem que a construção é sólida e não pode ser perdida – pelo contrário: precisa de mais incentivo e estrutura para ser levada adiante, colocando a educação brasileira em um patamar mais próximo ao do resto do mundo.

Entre os gestores, é unânime que o diálogo precisa ser fortalecido. O Ministério da Educação abriu canais para conversar com entidades e instituições de ensino, o que é saudado pelo setor. “Acho importante a decisão do ministro de abrir as audiências públicas para discutir aperfeiçoamentos do Novo Ensino Médio, especialmente em relação aos itinerários formativos, que têm sido mais discutidos no momento”, destaca a ex-presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE) Maria Helena Guimarães de Castro, titular da Cátedra Instituto Ayrton Senna de Inovação em Avaliação Educacional do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).

Ela lembra que o modelo está entrando no segundo ano de implantação, mas os Estados e a rede privada já vinham investindo bastante em planejamento, estudos, infraestrutura e recursos humanos. “Sou totalmente a favor dessa concepção, que é muito mais atual, valoriza o protagonismo do aluno, unindo a parte fixa do currículo com uma parcela mais flexível. É um formato que permite alinhar a formação dos alunos às novas demandas do nosso século”, sustenta Maria Helena, que esteve à frente do CNE entre 2020 e 2022.

“A simples revogação seria voltar para o modelo antigo, que lá atrás já foi sinalizado que não funcionava”

Eduardo Deschamps – professor da Universidade de Blumenau

O professor da Universidade de Blumenau Eduardo Deschamps também participou ativamente do debate sobre o Novo Ensino Médio. Ele presidiu o CNE entre 2016 e 2018, quando a reforma estava em discussão, e considera pouco prática uma revogação a esta altura – inclusive porque as organizações que questionam a efetividade do modelo não apresentaram proposta para substituí-lo. “A simples revogação seria voltar para o modelo antigo, que lá atrás já foi sinalizado que não funcionava”, alerta.

De fato. Segundo levantamento do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb), apenas 5% dos concluintes do Ensino Médio tinham rendimento satisfatório em Matemática, em 2021. Em Português, o índice ficou pouco acima dos 30%. “Como vou querer resultados melhores se faço sempre a mesma coisa? Se vamos para dados mais macro, entre os adolescentes com idade escolar, até 25 anos, só metade concluiu o Ensino Médio. Então alguma coisa precisa ser feita”, enfatiza o presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), Bruno Eizerik. 

Ele faz questão de destacar que em lugares como Estados Unidos, Canadá, Europa e Ásia o ensino se dá por meio de áreas do conhecimento, e não mais por disciplinas estanques. “Criam-se algumas lendas, como ‘serão demitidos muitos professores’ e ‘acabaram com História e Geografia’. Não é isso. Eu só não preciso mais ter uma caixinha chamada ‘História’. Posso trabalhar com instrumentos gerais, é muito mais legal para o aluno estudar junto com Geografia. A Mesopotâmia só existiu porque tinha os rios Tigre e Eufrates. Geograficamente consigo explicar aquela civilização”, exemplifica.

Outra lenda que atrapalha o debate é a da demissão de professores. Eizerik rebate facilmente: se há aumento de carga horária, como as escolas vão abrir mão de professores? É justamente o contrário.

O presidente do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe/RS), Oswaldo Dalpiaz, também lembra que as avaliações nacionais e internacionais mostravam que o nível de aprendizagem no Ensino Médio do Brasil estava muito fraco. Portanto, uma nova abordagem era necessária.

“A partir disto surge uma nova arquitetura, com a Formação Geral Básica (FGB) e os Itinerários Formativos. Isso significa mudar o jeito de encarar o aluno e todo o processo educacional. Quando você introduz uma nova arquitetura, há necessidade de nova postura, de se estudar, e também de infraestrutura, porque isso exige ambientes diferentes”, salienta Dalpiaz, explicando o período de estranhamento e de adaptações ao Novo Ensino Médio.

Segundo ele, na maioria dos Estados não houve investimento na capacitação dos professores, nem na comunicação com pais e alunos. A implementação acabou comprometida porque os coordenadores pedagógicos e gestores escolares simplesmente não entendiam como montar essa nova arquitetura. 

“Houve, de fato, falhas neste processo. Agora, se olhar a nova estrutura, ela apresenta uma perspectiva diferente. Se fizermos pesquisa nas escolas do sistema privado, a reforma está sendo aplicada, há um grande contentamento. Então é um questionamento que devemos fazer: revogar e deixar as mesmas condições? Ficar no mesmo lugar? Muito mais do que revogar, deveria haver um movimento para que, de fato, os governos colocassem em prática a prioridade para a educação”, aponta o presidente do Sinepe/RS.

Deschamps coloca na balança o fato de que o processo de implementação ainda está incompleto e lamenta a falta de definição, por parte do Governo Federal, sobre o novo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que passará por adaptações para testar o aproveitamento tanto na Formação Geral Básica (FGB) quanto nos Itinerários Formativos, de acordo com a escolha de cada aluno. 

“Ainda que o Novo Ensino Médio não tenha sido completamente implementado, o ideal é esperar um ciclo. Essa política pública está sujeita a avaliação periódica e análise do que pode ser melhorado. Sobre essa discussão, não vejo problema nenhum. O próprio MEC, ao criar escutas, pode fazer o diagnóstico e analisar pontos que merecem algum tipo de apoio, atenção”, sugere.

Efeitos já são percebidos

Diante de um modelo nitidamente esgotado, o mínimo a se fazer é tentar algo diferente – mas o Novo Ensino Médio se mostra mais do que uma aposta. A Escola Educar-se lança mão dos laboratórios da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), que é da mesma mantenedora, para oferecer conhecimento de forma atrativa. Essas e outras dinâmicas são frutos de muito planejamento, rodadas de estudos e escuta de alunos e familiares. O reflexo disso é que já aumentou a procura por matrículas.

“Nossa preocupação era não cair em um esvaziamento do conhecimento científico e acadêmico, como estava se colocando. Era muito preocupante porque não tínhamos, e ainda não temos, nem noção de como será o ENEM”, lembra a diretora da escola, Cristiane Iserhard. “Nosso compromisso é salvaguardar uma série de elementos e impulsionar a continuidade de estudo. Como propor algo que poderia dar prejuízo ao ritual de saída da Educação Básica?”, questiona.

“Essas discussões, ao invés de criarem um ambiente de tranquilidade, levam a uma instabilidade muito grande, uma sensação de descrença. Tenho conversado com diretores de escolas, ninguém pensa em voltar atrás. Pensam em ter liberdade para fazer adaptações dentro do que está contido na própria lei”

Oswaldo Dalpiaz – presidente do Sindicato do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinepe/RS)

A solução foi se cercar de especialistas e consultores que ajudassem a compreender o conjunto de regras. Ao cabo dessa fase, e partindo para a prática, foi promovida o que ela define como uma verdadeira revolução na forma de fazer o ensino.

“A gente teve um trabalho de muito envolvimento dos profissionais nessa construção. Uma revogação, para nós, não é bem vista. A grande questão de estar se pensando nisso é o esvaziamento de conteúdo dentro do itinerário formativo. Neste sentido, a gente não é favorável à revogação, mas reconhecemos que nos preocupa como o processo está ocorrendo em outras redes, especialmente a pública”, completa a coordenadora pedagógica da Educar-se, Geovane Aparecida Puntel. 

Ela concorda que alguns ajustes naturalmente devem acontecer, e dá um exemplo: a instituição revisou a oferta das trilhas do conhecimento para que fossem semestrais e os alunos passassem, obrigatoriamente, pelas quatro áreas – partindo do entendimento da escola que deixar alguma de fora seria prejudicial.

Já a vice-diretora da escola, Karen da Costa Sippel, destaca o relato dos próprios alunos para evidenciar a boa impressão que o Novo Ensino Médio já tem deixado na comunidade. “Os estudantes que sairiam do nono ano para o Ensino Médio tiveram contato com os que já estão estudando nesse novo formato. Foi lindo ver os relatos, experiências, crescimento, postura, a paixão por algumas eletivas escolhidas, e muitos já traçando caminhos para as escolhas futuras. Tudo muito alinhado com o projeto de vida. É um trabalho bem coletivo. A gente vê o crescimento do estudante protagonista, pensante, articulado”, enaltece.

A diretora executiva do Instituto Reúna, Katia Smole, destaca que o Novo Ensino Médio abre portas para uma escola que permite aos alunos fazerem escolhas, o que define como uma instituição mais antenada e conectada às demandas da juventude atual. “Longe de ser uma solução definitiva e para todos os problemas que a etapa apresenta, o Novo Ensino Médio é parte importante de uma estratégia maior para melhorar o cenário dos três anos finais da Educação Básica. A estrutura expande o universo escolar sem deixar de garantir uma formação comum  a  todos, referenciada na Base Nacional Comum Curricular”, pontua Katia, que é membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e ex-secretária de Educação Básica no Governo Federal.

Possibilidade de revogação

Não é um processo simples. Para que uma lei deixe de vigorar, ela precisa ser substituída por outra. Além disso, o rito é demorado: passa por discussões, apreciação em comissões, aprovações nas casas do Congresso Nacional. Sem uma proposta concreta de alternativa tanto ao modelo antigo e fracassado, quanto ao novo, ainda em implantação, a tendência é que o tema não avance.

Por tudo isso, Dalpiaz não vê chance de revogação, principalmente no curto prazo, mas acredita que as adaptações vão aparecer. “Essas discussões, ao invés de criarem um ambiente de tranquilidade, levam a uma instabilidade muito grande, uma sensação de descrença. Tenho conversado com diretores de escolas, ninguém pensa em voltar atrás. Pensam em ter liberdade para fazer adaptações dentro do que está contido na própria lei”, observa.

“Não quero trabalhar com esse cenário [de revogação]. Primeiro, porque o Congresso Nacional não vai dar nenhuma prioridade a isso. Mas seria um retrocesso gigantesco, uma vez que há muito tempo o Brasil está discutindo mudanças e a melhoria do Ensino Médio”, comenta Maria Helena.

Para Deschamps, a quebra de paradigma proposta pela reforma demanda tempo para as coisas se assentarem, mas nada justifica a anulação desse processo. “Quem faz uma defesa de simples revogação quer voltar para um passado que não existe mais. E não vai atender as demandas da sociedade”, alerta.

A vice-diretora da Escola Educar-se, Karen Sippel, concorda. “Seria um retrocesso porque a gente já via que precisava de uma mexida, embora não se soubesse como, ainda.Foi muito positivo poder se estruturar e rever o Ensino Médio, agora precisamos avançar e ajustar o que precisa ser melhorado, sermos colaborativos e pensarmos coletivamente”, acredita. 

A preocupação vai no sentido de que todas as instituições de ensino, públicas ou privadas, estejam na mesma página. Em vez de abrir mão dos avanços do Novo Ensino Médio, que sejam cobrados os entes públicos para que todos tenham condições de avançar juntos.

Para Katia Smole, revogar o Novo Ensino Médio é voltar a um passado que não apresentou bons resultados. Em vez da revogação, segundo ela, é preciso exigir a correta implementação do Novo Ensino Médio e colocar em debate o que é possível fazer para aprimorar a proposta em vigor. “Com exceção do ENEM que ainda não está finalizado, a implementação está seguindo o cronograma previsto na portaria Portaria Nº 521, de 13 de julho de 2021. Ainda que as redes tenham muitas dúvidas, e que haja implementações distintas, a maioria das redes segue implementado a nova arquitetura”, ressalta.

“No momento que der material, infraestrutura, condições aos professores, a reforma acontece. Somos contra a revogação e a favor de melhorias, de união para criar ambientes favoráveis para que, de fato, esta mudança de educação aconteça não só no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil”, conclui Dalpiaz.

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