Como uma professora usou robôs recicláveis para democratizar o ensino
Com mais de 20 anos de experiência, Débora Garofalo conta como transformou o que iria para o lixo em acesso à tecnologia e à inovação
Como democratizar o acesso à tecnologia e à inovação? Um desafio muito pensado para a rede pública de ensino, mas que também preocupa escolas privadas que não têm tanta infraestrutura e recursos financeiros. Para isso, a professora Débora Garofalo criou o projeto Robótica com Sucata, que utiliza materiais recicláveis para criar protótipos com funcionalidades específicas, estimulando a responsabilidade social e o pensamento científico.
Com 19 anos de experiência como professora da rede pública de ensino de São Paulo, Débora é formada em Letras e Pedagogia, com pós-graduação em Língua Portuguesa pela Unicamp e mestrado em Linguística Aplicada pela PUC-SP. Também é FabLearn Fellow pela Columbia University e professora universitária convidada da Universidade de São Paulo (USP) para curso de especialização em Computação Aplicada à Educação, pelo ICMC, ministrando a disciplina de Robótica com Sucata.
Confira a seguir a entrevista exclusiva para o Educação em Pauta:
De onde veio a ideia para dar início ao projeto de Robótica com Sucata?
A ideia nasceu a partir da escuta atenta dos próprios estudantes, que relatavam como o lixo impactava diretamente suas vidas. Ao chegar à escola, percebi que muitos viviam em situação de vulnerabilidade social, com pouco interesse pelas aulas e um grande distanciamento do processo de aprendizagem. Diante disso, comecei a refletir sobre como tornar o ensino mais acessível, significativo e conectado à realidade deles. Foi então que surgiu a proposta de transformar o problema em solução: usar a sucata, os resíduos descartados pela própria comunidade, como ponto de partida para construir conhecimento.
A ideia era unir criatividade, currículo escolar e consciência socioambiental, mostrando que aprender não precisa ser algo distante ou inacessível. Com elementos simples, como tampinhas, garrafas PET e motores reaproveitados, os estudantes passaram a explorar conceitos de física, matemática, ciências e linguagem, ressignificando o território onde vivem.
Mais do que montar circuitos, a robótica passou a ser uma ferramenta de desenvolvimento da autonomia, do protagonismo e do pensamento crítico. Ao longo desses dez anos, esse percurso foi sendo construído de forma coletiva – com escuta, tentativas, erros, afeto e muito aprendizado. Hoje, o projeto se consolidou como uma metodologia de ensino reconhecida e vem inspirando políticas públicas que transformam realidades em diversas redes de ensino pelo país.
Quais foram os primeiros desafios? E quais ainda se mantêm?
Um dos primeiros grandes desafios foi quebrar a ideia de que inovação exige alta tecnologia e grandes investimentos. No início, muitas pessoas, inclusive dentro da escola, duvidavam que fosse possível ensinar robótica com materiais reutilizados. Havia uma resistência em compreender que o foco não era o equipamento sofisticado, mas, sim, a aprendizagem ativa, criativa e significativa, conectada à realidade dos estudantes.
Outro obstáculo foi o engajamento dos próprios estudantes, muitos em situação de vulnerabilidade social, com histórico de evasão e baixa autoestima escolar. Era preciso resgatar o interesse pela escola e mostrar que eles podiam ser protagonistas do próprio processo de aprendizagem, mesmo com recursos limitados. Nesse sentido, a escuta ativa e a valorização do território foram fundamentais para construir vínculos e motivação.
Esses desafios foram superados com o tempo, mas alguns ainda permanecem na realidade da educação brasileira e refletem questões estruturais. A falta de infraestrutura tecnológica continua sendo uma barreira importante: segundo a pesquisa TIC Educação [de 2022], apenas 38% das escolas públicas possuem laboratórios de informática funcionando plenamente, e a conexão à internet ainda é instável ou inexistente em muitas regiões do país.
Além disso, a formação docente é outro ponto crítico. Ainda segundo a TIC Educação, seis em cada dez professores afirmam não se sentir preparados para integrar tecnologias em suas práticas pedagógicas. Isso evidencia a necessidade contínua de investir em formações contextualizadas, que dialoguem com a realidade das escolas e empoderem os educadores como agentes de inovação.
Há também o desafio de transformar boas práticas em políticas públicas estruturantes. Muitas vezes, projetos inovadores ficam restritos a experiências pontuais. É preciso avançar em modelos de escala e sustentabilidade, garantindo que iniciativas como a Robótica com Sucata não dependam apenas da vontade individual, mas sejam incorporadas de forma sistêmica pelas redes de ensino.
Apesar dos avanços, seguimos enfrentando a urgência de promover uma educação mais equitativa, inovadora e conectada aos desafios atuais, e esse compromisso continua sendo diário.
Como a abordagem STEAM pode ser aplicada mesmo com recursos limitados?
Mesmo na rede privada de ensino, sabemos que nem todas as instituições contam com laboratórios equipados ou recursos abundantes para implementar a abordagem STEAM (sigla em inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharia, Artes e Matemática) em sua plenitude. No entanto, o maior valor dessa abordagem está menos na tecnologia de ponta e mais na metodologia ativa, interdisciplinar e investigativa que ela propõe.
Aplicar STEAM com recursos limitados é perfeitamente possível quando se aposta em projetos criativos, contextualizados e centrados no protagonismo dos estudantes. O uso de materiais acessíveis ou reutilizáveis, como papelão, garrafas PET, sucata eletrônica ou objetos do cotidiano, já permite a construção de protótipos, experimentos científicos e desafios de engenharia simples. O que importa é a lógica da investigação, do erro como parte do processo, e da solução de problemas reais.
Minha própria experiência com o projeto Robótica com Sucata é um exemplo disso. Ele nasceu em uma escola pública, mas já foi adaptado por várias escolas privadas como uma forma de democratizar o ensino de robótica e a cultura maker. Em vez de kits caros, os estudantes trabalham com criatividade, pensamento computacional e consciência socioambiental, desenvolvendo competências alinhadas à BNCC e às exigências atuais. Além disso, recursos digitais gratuitos, como simuladores online, ferramentas de programação visual (como Scratch) e plataformas colaborativas, oferecem suporte para experiências STEAM mesmo sem um laboratório físico.
O mais importante é que o professor atue como mediador, propondo situações-problema, estimulando a curiosidade e promovendo a articulação entre as diferentes áreas do conhecimento. Segundo o Relatório da OCDE (2023), estudantes que participam de atividades interdisciplinares e de resolução de problemas em grupo tendem a apresentar melhores índices de engajamento, aprendizagem e desenvolvimento de habilidades socioemocionais. Isso reforça que não é o custo do recurso que determina a qualidade do ensino, mas, sim, a intencionalidade pedagógica e a forma como os estudantes são convidados a pensar, criar e resolver desafios.
Dessa maneira, a abordagem STEAM pode ser implementada em qualquer realidade escolar. O essencial é garantir um olhar criativo, inclusivo e transformador sobre os recursos disponíveis e sobre o papel da escola na formação de estudantes autônomos, críticos e inovadores.
O que muda na sala de aula quando fazemos a relação entre inovação e engajamento dos alunos?
Quando estabelecemos uma relação direta entre inovação e engajamento da turma, a sala de aula se transforma. O ambiente deixa de ser centrado apenas na transmissão de conteúdos e passa a ser um espaço de experimentação, protagonismo e construção coletiva do conhecimento. Na prática, isso significa estudantes mais curiosos, participativos e motivados. A aprendizagem ganha sentido porque está conectada ao mundo real, aos interesses dos estudantes e aos desafios contemporâneos.
Projetos interdisciplinares, uso de tecnologias, metodologias ativas e espaços maker, por exemplo, criam um cenário em que os estudantes não apenas aprendem, mas aplicam o que sabem, colaboram entre si e desenvolvem habilidades como criatividade, pensamento crítico e resolução de problemas.
Na rede privada, isso também representa um diferencial: famílias percebem o valor de uma escola que forma para além do conteúdo, e os próprios alunos passam a enxergar mais propósito na escola. Inovação, quando bem conduzida, gera pertencimento, e o engajamento passa a ser consequência natural de um processo mais significativo e humano.
Qual a importância de conectar o conteúdo escolar com os problemas reais do território?
Conectar o conteúdo escolar com os problemas reais do território é essencial para tornar a aprendizagem significativa. Quando os estudantes percebem que aquilo que aprendem em sala tem relação direta com sua vivência, seu bairro, sua comunidade e sua realidade, o conhecimento ganha propósito, deixa de ser algo abstrato e passa a ser ferramenta de transformação. Essa conexão fortalece o senso de pertencimento, desperta o olhar crítico e amplia o engajamento deles, que passam a entender que podem ser protagonistas de mudanças.
Além disso, trabalhar a partir dos desafios locais permite desenvolver competências como empatia, pensamento crítico, colaboração e responsabilidade social, todas alinhadas à BNCC. Na prática, isso pode acontecer por meio de projetos interdisciplinares que envolvam temas como sustentabilidade, mobilidade urbana, consumo consciente ou desigualdades sociais. Foi exatamente essa lógica que inspirou o projeto Robótica com Sucata: partimos do problema do lixo, tão presente na realidade dos estudantes, para construir caminhos de aprendizagem criativa, tecnológica e engajada com o território.
Como gestores escolares podem levar a iniciativa para suas escolas?
Eles são peças-chave para fomentar uma cultura de inovação nas escolas. E para começar uma iniciativa como a Robótica com Sucata – ou qualquer proposta baseada em metodologias ativas e aprendizagem significativa – é preciso começar com o que se tem: escuta, intenção pedagógica e criatividade.
O primeiro passo é envolver a equipe pedagógica e os professores, criando espaços de diálogo sobre os desafios e potências da escola. A partir dessa escuta, é possível identificar temas relevantes do território, materiais disponíveis e possíveis conexões com o currículo. Em seguida, o gestor pode estimular projetos piloto, começando em pequena escala, com turmas ou professores que se mostrem mais abertos à experimentação. Não é necessário ter um laboratório de robótica: materiais reutilizáveis, espaço de sala de aula e vontade de fazer diferente já são suficientes para começar.
Também é fundamental garantir formação continuada e apoio pedagógico, seja com parceiros externos, professores da própria rede ou com base em experiências que já deram certo. O papel do gestor, nesse processo, é garantir tempo, escuta e incentivo para que as ideias ganhem corpo e se transformem em prática. É importante criar uma cultura de valorização das iniciativas, compartilhando os resultados com a comunidade escolar, promovendo momentos de troca entre os educadores e mostrando que inovação não depende de grandes recursos, mas de propósito e ação.
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Como educadores podem inovar na sala de aula?
Inovar não significa, necessariamente, usar tecnologia de ponta. Significa mudar a forma como ensinamos e como nos relacionamos com o conhecimento. Pode começar com a criação de projetos interdisciplinares, o uso de metodologias ativas, como aprendizagem baseada em projetos, ou o aproveitamento de materiais acessíveis e reaproveitáveis para propor desafios reais e contextualizados.
Trazer o mundo para dentro da sala de aula e levar a escola para fora dela é um caminho potente. Trabalhar temas como sustentabilidade, cultura digital, cidadania, saúde mental ou desigualdade social, por exemplo, aproxima o conteúdo da vida do estudante e o torna mais significativo.
Além disso, o educador pode inovar ao valorizar o protagonismo dos estudantes, criando espaços de escuta, investigação e experimentação. Projetos como a Robótica com Sucata nasceram justamente desse princípio: usar o que está disponível, escutar as necessidades reais e transformar desafios em oportunidades de aprendizagem.
Como o Robótica com Sucata pode ser replicado em escolas privadas que buscam projetos com propósito e impacto social?
A iniciativa representa uma oportunidade de ir além da tecnologia de ponta e trabalhar com propósito, mostrando aos estudantes que é possível inovar com sensibilidade ambiental, olhar crítico e empatia. Ao usar sucata no lugar de kits específicos, os alunos são desafiados a resolver problemas, criar soluções e refletir sobre temas como consumo, descarte, desigualdade e sustentabilidade, valores essenciais para a formação integral.
Além disso, o projeto pode ser ampliado com ações de engajamento comunitário, como parcerias com cooperativas de reciclagem, ONGs locais ou escolas públicas, promovendo experiências de aprendizagem com impacto real. Essa abordagem fortalece o compromisso da escola com a cidadania e prepara os estudantes para atuar com ética, colaboração e visão de futuro.
Replicar o Robótica com Sucata em uma escola privada é incorporar inovação com sentido, promovendo uma educação conectada aos desafios contemporâneos e que forme não apenas estudantes mais competentes, mas também mais conscientes e comprometidos com o mundo que os cerca – e que também forme empreendedores.
E quais os próximos passos na sua atuação?
É seguir nesse mesmo propósito: ampliar o impacto, fortalecer redes de educadores e garantir que boas práticas se transformem em políticas públicas sustentáveis. Estou envolvida em projetos de implementação de espaços makers, formação de professores em territórios de alta vulnerabilidade e no apoio técnico a secretarias e instituições do terceiro setor. Além disso, tenho buscado expandir o debate sobre tecnologia com propósito, garantindo que inovação na educação seja sinônimo de acesso, justiça social e transformação coletiva. Levar o Robótica com Sucata a novos territórios – inclusive internacionais – e continuar dialogando com diferentes redes sobre inovação com equidade são passos que sigo construindo com muita escuta, colaboração e senso de urgência.
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