É possível ensinar sem aulas, séries, turmas e provas?

Com a valorização da “comunidade de aprendizagem”, a Escola Aberta de São Paulo adotou um modelo que envolve ativamente alunos, educadores e familiares

por: Eduardo Wolff | eduardo@padrinhoconteudo.com
imagem: Gabriela Pantana / Divulgação Escola Aberta São Paulo

Formar jovens autônomos, responsáveis e solidários. Um modelo baseado nas qualidades de cada aluno. Em linhas gerais, esse é o conceito adotado pela Escola Aberta de São Paulo.

A sua origem vem quando a atual diretora, Edilene Morikawa, recebeu um convite do educador português José Pacheco, fundador da Escola da Ponte, de Portugal, conhecida por ser um modelo educacional que foge dos padrões convencionais. 

Em 2010, Edilene começou uma iniciativa com os mesmos princípios no Brasil: o Projeto Escola Âncora. Realizada no contraturno, o intuito era tornar a escola um lugar não só com currículo objetivo, mas sim subjetivo e comunitário, ou seja, que respeitasse cada criança em seu tempo, momento, condições e potenciais. O foco era trabalhar suas necessidades educacionais, cognitivas e psicossociais. 

Dentro do contexto sem aulas, férias, turmas e provas, esse método é pautado nas relações humanas, pelas competências gerais da educação, em que não existem conteúdos programados.

O projeto evoluiu e, em 2019, deu início à Escola Aberta de São Paulo. Com caráter filantrópico e totalmente gratuita, a instituição recebe, em maioria, jovens em situação de vulnerabilidade social, que são moradores dos bairros Paraisópolis e Jardim Jaqueline. Atende crianças e adolescentes de seis até 13 anos, correspondendo ao Ensino Fundamental I e II. 

José Pacheco segue contribuindo com a Escola por meio de orientações.

>> Saiba mais sobre o Projeto Âncora nesta reportagem: 

Modelo tradicional x Escola Aberta de São Paulo

Normalmente, as escolas se organizam por séries e são divididas por idade, com cada criança aprendendo do mesmo jeito, tempo e tipo de avaliação. Para Edilene, essa forma tradicional contradiz todas as teorias de educação, que indicam que as crianças são únicas, possuem histórias de vida e necessitam de uma aprendizagem e avaliação qualitativa de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

A Escola Aberta de São Paulo propõe reconfigurar essas práticas, deixar o conteúdo ou as crianças como centros principais e estimular que todos desenvolvam uma comunidade de aprendizagem. 

Cronograma de estudos 

Com base no Currículo Paulista, os conteúdos essenciais têm a ver com as necessidades e características da comunidade. Toda a criança tem que ter passado por esse currículo essencial em algum momento e ter dado conta do mesmo, sem que se tenham as aulas. No cronograma são desenvolvidas situações como competências e habilidades, que estão relacionadas à valorização do pensamento crítico e científico, à curiosidade, à comunicação, à cultura digital, ao autoconhecimento, à argumentação com base em fatos, entre outras. 

Para exemplificar como se trabalha essas competências, a diretora da Escola lembra de uma pesquisa que as crianças estavam fazendo sobre a história do videogame. Houve toda uma preparação para apresentar suas descobertas. Ao invés de apenas chamar outros alunos para a assistir a essa apresentação, o grupo de estudantes elaborou cartazes, explicou o que fariam aos educadores e definiu data e número de pessoas para olhar os murais no auditório. Também estipularam um momento para o tira dúvidas, com espaço para contribuições de alunos do nível de aprofundamento.

Como é feita a avaliação?

Conforme sinaliza Edilene, a avaliação é contínua, formativa e sistemática. A continuidade está relacionada a todo o momento, desde uma tutoria do que quer aprender, do que já se sabe. Desta maneira, o estudante vai apresentar o seu repertório de conhecimento. Tem formação no sentido de ser integral, não só o “conteúdo pelo conteúdo”, mas por compartilhar e produzir novas informações. Por fim, tem uma sistemática, pois é transversal e dá conta de todas as crianças, cuidando dos lados emocional, cognitivo e social.

E se não tem prova, como sabe se aprenderam? O tutor avalia os processos por meio de registro, um portfólio e as evidências de aprendizagens, que podem ser fotos ou gravações de apresentação do estudante. De tempos em tempos, o educador usa o Currículo Paulista para verificar quais competências e habilidades foram desenvolvidas em um determinado período, não importando a idade ou qual o tipo de aprendizagem. 

Resultados mensuráveis

Os depoimentos favoráveis das famílias, o alto índice de felicidade e os educadores engajados, são algumas das formas mensuráveis, segundo Edilene. Mesmo assim,  não achando adequado o modelo de avaliação, a Escola tenta se inscrever na Prova Brasil para mostrar as evidências dos desempenhos dos seus estudantes, porém, devido às regras estipuladas, existem dificuldades para participar. Uma forma encontrada foi por meio de simulados e os resultados, segundo a gestora, são impressionantes. “O vocabulário deles é muito rico, o entendimento do que fazem e do que os colegas realizam são ótimos. Vivem a escola o tempo todo”, celebra. 

Os primeiros alunos que irão migrar desse modelo da Escola Aberta de São Paulo para o Ensino Médio tradicional se “formam” em 2024. Para ela, os jovens estão muito tranquilos nessa transição, pois, por mais que critiquem esse tipo de sistema, sabem que precisam ingressar para continuar os estudos.

Atuações da “comunidade de aprendizagem”

Em relação à forma como atuam os docentes, a ideia é deixar o aluno ter “luz própria”, ou seja, não é preciso “planejar para”, mas sim “fazer como”; além disso contam com o auxílio dos outros educadores, em um trabalho conjunto. 

Todas as crianças possuem suas responsabilidades: o pensamento não é “meu”, mas sim “nosso”. Os professores também têm espaços para externar seus medos e suas potencialidades.

Várias responsabilidades são distribuídas a quem participa da Escola. Além de educadora, a diretora é responsável pela mediação do grupo de responsabilidade de visitas e de uma comissão de novas vagas, e ainda leciona uma oficina de violão. Outro educador contribui com oficinas de literatura e matemática, além de cuidar da biblioteca.

Com esse entendimento de que a família e a comunidade são essenciais para o funcionamento da instituição, as participações dos mesmos são estimuladas, isso dentro do respeito aos valores da Escola, construindo códigos de convivência. As famílias, por exemplo, são responsáveis pelo setor de comunicação, pelas redes sociais e pelos materiais de divulgação.

Toda essa coordenação do que fazer tem uma articulação por assembleias. Uma vez por semana, os encontros são organizados pelos próprios estudantes que votam propostas. “Se está acabando o lápis, ao invés de ser só a diretora a responsável por repor esse material, é um problema de todos, não basta colocar de volta e não resolver. Essas reuniões precisam de discussão com argumentos, além do consenso da maioria”, explica.

E a Escola, como se sustenta?

O maior aporte financeiro vem da família Lazarte, que possui um instituto de empreendimentos sociais. Pelo Envolva-se, a Escola Aberta de São Paulo estimula doações de outras empresas, bem como as parceiras de serviços, como um seguro de segurança para acidentes ou um clube para atividades de verão dos jovens.

Quanto ao orçamento, Edilene comenta que nada falta, mas também nada sobra. Tudo é muito justo e feito com cuidado por meio de uma contabilidade rigorosa. “Fazemos isso justamente para que outros empresários invistam nesse modelo de educação”, enfatiza.

Especialistas avaliam o modelo de ensino

“É interessante, mas para contextos muito específicos”, é o que pondera o doutor em Educação, fundador da Meta Aprendizagem e co-fundador da Moonshot Educação, Paulo Tomazinho. Para o especialista, a educação é um setor complexo, pois possui uma interdependência para todos os lados: cultura, família, governo, regulação, vontade e financiamento.

Na sua visão, esse sistema ainda não foi possível escalonar e, muitas vezes, reproduzi-lo em outros lugares. Entre empecilhos estão: a cultura das famílias que entende a educação como instrução e provas, e a dificuldade de encontrar professores que entendam e consigam adotar esse modo de ensinar. “E, principalmente, pela burocracia regulatória que exige avaliações padronizadas como Prova Brasil, Enem e Enade”, pontua.

Em janeiro do próximo ano, Tomazinho visitará a Master Academy, na cidade de Calgary, no Canadá, na qual é considerada, há 20 anos, a melhor escola daquele país. Ele faz uma reflexão: “com todos resultados que tem, não deveria ter mais escolas com o mesmo modelo?” E o mesmo responde: “o tipo de cultura que as famílias possuem favorece em acreditar neste modelo, mas não existe um público para duas ou mais escolas assim, apesar dos resultados de aprendizagem serem inquestionáveis.”

Já a pedagoga e diretora de Ensino Superior no Instituto Ivoti, Doris Gerber, reforça que é habitual o pensamento de que a aula pressupõe uma exposição sobre determinado assunto e, geralmente, realizada por um professor. No caso de uma escola “sem aulas”, são proporcionadas múltiplas aprendizagens, mas não sem docentes. “Isso porque a educação escolar acontece na interação e na convivência entre pessoas de diferentes gerações”, reforça. 

Doris ressalta que os educadores devem ter formação e preparo suficientes para realizar com muita qualidade esta relevante missão. “Fiquemos atentos à qualidade da formação docente para não fragilizar a qualidade de ensino e da aprendizagem das crianças e jovens em nosso país”, conclui.

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