Instituições dão prova de resiliência em meio ao caos

Abrindo suas portas para amparar desabrigados ou arrecadando doações, ensino privado atua à altura do papel que tem junto à sociedade gaúcha

por: Pedro Pereira | pedro@padrinhoconteudo.com
imagem: Divulgação

De 10 unidades, a Rede de Escolas São Francisco tem duas atingidas diretamente pelas cheias que castigam o Rio Grande do Sul há mais de uma semana. Uma está debaixo d’água, enquanto outra ficou ilhada em um bairro de Porto Alegre que jamais convivera com a suspeita de alagamentos. Ainda assim, o assunto agora passa longe dos problemas estruturais, pois outras cinco unidades cuidam do mais essencial: a vida.

Não significa que a administração da rede não esteja preocupada e montando um plano de recuperação. Enquanto o momento de colocá-lo em prática não chega, o foco está em ajudar as pessoas. Três escolas recebem abrigados, diretamente, e outras duas servem como apoio para paróquias vizinhas, com recebimento, triagem e organização de doações, além de atendimentos diversos para o bem-estar daqueles que precisaram abandonar suas casas.

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A maior tragédia climática da história do Rio Grande do Sul pegou todo mundo de surpresa. Instituições de todas as naturezas e finalidades pensáveis abriram portas para receber pessoas desalojadas. Com a rede de ensino privada não foi diferente. 

Dezenas de escolas e milhares de estudantes, pais, professores, funcionários, gestores e parceiros se mobilizam para dar conta de tantas pessoas fora de seus lares. Aos poucos, Educação em Pauta vai contando algumas dessas histórias e os desdobramentos desse evento climático tão histórico quanto trágico.

Embora o Estado tenha sofrido com o volume das chuvas e as cheias dos rios no segundo semestre de 2023 e alguns prognósticos apontassem desafios neste período, ninguém pensou que a bacia do Rio Jacuí, um conjunto de rios que descem em direção à região metropolitana de Porto Alegre, viveria sua maior enchente, superando até mesmo o emblemático do ano de 1941.

Foi assim que no sábado, 4, a direção da Rede São Francisco recebeu o pedido para abrigar algumas pessoas. O que era uma medida emergencial logo se transformou em um acolhimento com processos definidos. Fruto da experiência em lidar com pessoas.

“Começamos a ligar para ex-alunos. Em determinado momento, tínhamos egressos das mais diversas áreas formando equipes com voluntários. Temos atendimento multidisciplinar de saúde aqui dentro, com enfermeiros, médicos, psicólogos e vacinas. Isso sem contar as equipes de cozinha, acolhimento, cadastro, limpeza e doações”, conta o diácono Luciano Silva, coordenador de pastoral da Rede São Francisco. 

Ação de mobilização de Dia das Mães na Rede São Francisco (Divulgação/Rede São Francisco)

Com o apoio da comunidade, que chega o tempo todo com alimentos, roupas, colchões e toda sorte de materiais que são importantes neste momento, sequer foi necessário contar com a ajuda oferecida pelo poder público. O atendimento tomou um nível de qualidade que, na segunda-feira seguinte ao começo dos trabalhos, um fenômeno orgulhou os voluntários. “Fomos descobrindo rotinas dentro desse processo. No primeiro dia de visitas, familiares e amigos convidavam os abrigados para se transferirem para suas casas, mas eles diziam que estavam se sentindo bem acolhidos aqui”, comenta o diácono.

Outros, no entanto, admitem que a garantia de ter todas as refeições diárias é o que os prende ali. Relatos como esses, além dos horrores de quem viveu de perto a chegada da água, chegam o tempo todo e exigem muito do psicológico de abrigados e voluntários. Como se não fosse o suficiente, há os que insistem em espalhar informações falsas, para agravar a situação.

“O que nos estressou foram os golpes, as fake news, influencers buscando likes. Isso nos atrapalhou muito, mas pequenas postagens nas nossas redes resolviam todos os problemas. Nossos alunos em peso começaram a desmentir as fake news. Eles já são da era digital e viam antes da gente, começaram a denunciar perfis”, lembra o diácono Luciano Silva. 

Ação de entrega de marmitas aos abrigados (Divulgação/Rede São Francisco)

Foi o momento em que os estudantes puderam colocar em prática o que aprendem na própria escola e agir em prol do bom uso das mídias digitais. Juntaram-se a eles os próprios cidadãos que estão abrigados na instituição que, também revoltados, começaram a postar que estavam bem atendidos e desmentir as publicações maliciosas.

Ciente de que o confinamento pode trazer novos desafios com o passar do tempo, a equipe da Rede São Francisco conta com assistentes sociais e apoio do Conselho Tutelar para mapear possíveis focos de conflito. Além disso, famílias, especialmente com crianças, e pessoas solteiras ficam em locais isolados.

“Oferecemos todas as refeições, temos horários para banho, alimentação, lanche da tarde, atividades com recreacionista e cinema, para as crianças. Criamos um atendimento como se fosse para os filhos da gente”, garante o diácono.

O presidente do SINEPE/RS, Oswaldo Dalpiaz, acredita que os anos de 2023 e 2024 serão lembrados pelas enchentes e pela destruição – que virá à mente como algo que não pode se repetir. “Neste cenário de destruição física e emocional, há algo que mostra que a solidariedade e a esperança ainda estão presentes num mundo tão fragmentado e dividido como temos visto ultimamente”, observa. 

Para Dalpiaz, esta solidariedade e as contínuas mensagens que trazem uma mistura de lamento e de otimismo mostram que ainda podemos acreditar num outro mundo possível. “E é por acreditar neste mundo possível que inúmeras instituições educacionais abriram suas portas  para acolher os irmãos desalojados e sofredores; e dezenas de incansáveis educadores, voluntariamente, se dedicam a atendê-los e acompanhá-los. É esta atitude que cria uma nova cultura e educa mais do que muitas horas dedicadas ao estudo e leitura”, exalta.

O complexo do Colégio São Luís Guanella, também em Porto Alegre, conta ainda com santuário, salão paroquial e um educandário. De uma forma ou de outra, toda a estrutura está empregada no acolhimento de famílias desabrigadas.

O objetivo inicial era distribuir itens como roupas, cobertores e colchões, conforme a comunidade procurasse o local para doar. No entanto, diante da demanda que se apresentou conforme a água avançava sobre a cidade, o atendimento teve de crescer na mesma medida.

“Chegou o momento em que precisamos recusar roupas porque não havia mais onde armazenar e como organizar. Ao mesmo tempo, começaram a chegar outras necessidades: fraldas geriátricas, infantis, produtos de higiene, limpeza e todo tipo de alimentação”, lembra o diretor-geral do Colégio São Luis Guanella e pároco do Santuário Nossa Senhora do Trabalho, Padre Antônio Francisco de Melo Viana.

Na sequência, o trabalho ganhou força no preparo de alimentos. Muitos abrigos não tinham onde fazer comida e perguntavam se a instituição poderia cuidar dessa tarefa. Em uma semana, a distribuição ultrapassou a marca de cinco mil refeições, graças às doações da comunidade. 

“Nem carne faltou nesses dias”, comemora Padre Antônio. Em meio a tantos desafios, também houve tempo para perceber o insólito. “Recebemos doação de um restaurante que inundou e veio até carne de rã. Para quem consegue comer, mas nunca imaginou comer um prato chique em casa, agora vai comer de graça. Para ver as coisas da vida”, tenta descontrair.

Mas o destaque, mesmo, não é a carne de rã. Padre Antônio faz questão de destacar a equipe incansável que prepara almoço e jantar, diariamente. A demanda cresceu a ponto de a instituição precisar limitar os pedidos, sob pena de não conseguir cumprir ou, ainda, levar os voluntários à exaustão completa.

Enquanto intramuros os itens recebidos são organizados e as refeições, preparadas e distribuídas, no portão não faltam pedidos individuais. Famílias passam em busca de doações. “Não temos como saber se de fato estão precisando. Como vamos ter controle? Isso gera uma aflição. Não queremos que falte para os abrigos com quem nos comprometemos, mas também temos receio de que alguém que esteja precisando de ajuda fique desatendido”, desabafa Padre Antônio.

Depois que todos os processos estavam bem sedimentados – e porque a demanda por abrigos só fazia aumentar –, o educandário foi aberto para também receber famílias desalojadas. “Tivemos de fazer algumas exigências porque não temos recursos para segurança, essas coisas. Em vários abrigos houve problemas sérios. Estamos dando preferência a senhoras, senhores mais idosos, crianças e famílias”, explica o pároco. No momento em que falava com Educação em Pauta, a instituição já tinha 35 pessoas sob seus cuidados – e estrutura para chegar a 60.

Como a paróquia está amparada pela arquidiocese, uma outra paróquia, de Torres, no Litoral Norte, enviou uma carreta com doações. A carga foi tão expressiva que o excedente em itens como água e colchões foi redistribuído. “De uma frente que pensamos [receber e distribuir doações], já abrimos três. Agora temos o abrigo e também uma espécie de posto de saúde, com médicos, enfermeiros, distribuição de medicamentos, assistência psicológica e psiquiátrica. Os próprios voluntários, em meio a tudo isso, notícias, críticas, fake news, ficam um pouco abalados e precisam desse apoio”, pontua.

O presidente do SINEPE/RS, Oswaldo Dalpiaz, destaca o sentimento de comunidade que aflora em meio a um dos maiores desafios da história da sociedade gaúcha. “Enquanto lamentamos a destruição provocada pelo clima, nos alegramos pela solidariedade humana demonstrada por milhares de pessoas desconhecidas a milhares de pessoas também desconhecidas. Ao fazerem assim, as instituições mostram que o que está escrito na sua proposta pedagógica se realiza nos abraços do acolhimento a tantos que, neste momento, não têm uma casa com cama e comida”, conclui.

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