A descoberta do mundo: os desafios de ser criança na atualidade

Em comemoração ao Dia da Criança, o Educação em Pauta conversou com especialistas da educação e da saúde sobre como educadores e famílias podem contribuir para o desenvolvimento saudável dos pequenos

por: Bianca Zasso | Especial
imagem: AdobeStock

O poeta Manoel de Barros escreveu que “as coisas que não têm nome são as mais pronunciadas por crianças”. Essa arte de descrever (e entender) ao seu modo questões complexas até para pessoas adultas é uma das questões que mais geram debates entre profissionais da educação e da saúde que se dedicam aos primeiros anos da infância. Nas redes sociais, perfis de pediatras, educadores e psicólogos estão repletos de dicas para auxiliar pais, mães e demais cuidadores na tarefa de educar os pequenos. No meio de tanta informação, será que estamos acolhendo nossas crianças da melhor forma nesse momento de tantas transformações? 

Para a doutora em Direito de Família pela Universidade de Lyon, na França, e terapeuta familiar, Sylvia Nabinger, são muitos os desafios na atualidade e os pais, a escola e todo o entorno social da criança precisa ter em mente que os tempos mudaram. “Em termos bem simples: estamos diante das telas, diante da pressa, diante de inúmeros projetos pedagógicos, de muita, muita, muita informação e isso impacta em muito a vivência das crianças pequenas nos ambientes coletivos, mas também com seus genitores e família estendida”, afirma a terapeuta, que também é presidente da Associação Pikler Brasil. 

A abordagem Pikler, desenvolvida pela pediatra austríaca Emmi Pikler (1902-1984) consiste em um conjunto de princípios ligados à educação de bebês até os três anos de idade, defendendo o brincar livre, onde a criança desenvolve capacidades como engatinhar e andar sem o auxílio dos adultos e respeitando o tempo próprio de cada indivíduo, além de valorizar o vínculo afetivo entre o bebê e seus cuidadores. Nas redes sociais, é comum perfis de pediatras, educadores e psicólogos que difundem a filosofia Pikler e até oferecem treinamentos para pais e professores sobre o assunto. 

Sylvia vê com bons olhos essa difusão, já que há décadas ela viaja o Brasil e o mundo fazendo da abordagem o seu pilar de trabalho. “É claro que pode ser que alguém aqui ou ali deturpe ao seu gosto os princípios fundamentais da abordagem. Mas, em linhas gerais, eu fico muito feliz que mais e mais pessoas estejam tendo acesso aos ensinamentos tão primordiais desta mulher tão fantástica, tão vanguardista, tão única”, avalia. Mesmo que tenha havido uma mudança de paradigma na educação, na criação e nos valores transmitidos para as crianças, Sylvia é enfática em esclarecer o que não deve mudar: a troca e o oferecimento de possibilidades para descobrir o mundo. “Olhar, escutar, tocar, dar tempo, previsibilidade, espaço, arte, música, terra, chuva, isso sempre será importante no desenvolvimento”, conclui. 

Essa valorização da troca entre adultos e crianças, tão importante para o desenvolvimento, sofreu um baque com a pandemia de COVID-19. Escolas tiveram que se reinventar dentro do ensino remoto e muitas famílias tiveram que intensificar o uso de telas para dar conta de todas as demandas que o isolamento exigiu. Com o retorno ao formato presencial, professores e gestores encontraram um cenário preocupante, que também foi percebido pela área médica. Membro do setor de Neurologia Infantil do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, o neuropediatra Felipe Kalil explica que há inúmeros estudos mostrando que o uso excessivo de telas nos primeiros anos de vida afeta não apenas a interação social, mas também a aprendizagem escolar. 

“Estamos vendo uma pandemia paralela de crianças com atraso na aquisição da linguagem, que não foram expostas à socialização, não viram rostos e nem expressões faciais, e também transtornos de aprendizagem, como dificuldades na aquisição da matemática básica e na leitura, pois muitos tiveram esses aprendizados em casa, sendo fundamental a presença de um professor e o ‘estar’ em sala de aula para uma aprendizagem adequada ”. 

O médico também destaca a presença de transtornos comportamentais, como ansiedade e dificuldade de socialização, que se tornam um desafio extra também para a escola que, segundo ele, deve trabalhar próximo das famílias para analisar possíveis sinais de alerta e encontrar o melhor caminho para a solução destes problemas. “Por tratar-se de um ser em crescimento, a presença dos pais e cuidadores é fundamental para aliviar essa pressão e poder guiar o retorno adequado da criança à sua vida escolar e sobretudo social”, esclarece Felipe. 

O neuropediatra indica que esse trabalho conjunto entre pais e escola deve envolver atividades que prezem ao máximo as interações entre adultos e crianças por meio de brincadeiras no chão e contação de histórias, para estimular o lúdico e o brincar simbólico dos pequenos. Se o uso de telas for inevitável, seja no ambiente familiar ou escolar, é preciso haver participação de quem está assistindo, estimulando as trocas. “E, independentemente da idade, sempre evitar exposição às telas cerca de uma ou duas horas antes do sono, a fim de não atrapalhar a qualidade deste”, acrescenta. 

Ao lado da neurologia, a psiquiatria é outra área da saúde que vem se dedicando cada vez mais a entender os desejos e angústias das crianças em meio a um mundo de possibilidades digitais. Estudos apontam que a evolução do cérebro nos primeiros anos de vida ocorre de forma muito rápida, chegando a 1 milhão de conexões entre neurônios por segundo. O psiquiatra Thiago Rocha acredita que diante do desafio de incorporar a tecnologia no cotidiano, as crianças são as que se adaptam com mais rapidez. Isso faz com que, muitas vezes, elas passem pelo processo de descoberta do mundo com pouco amparo e orientação. 

A imagem de uma criança orientando um adulto como se utiliza um celular ou um computador tornou-se comum, mas os pequenos especialistas no mundo digital precisam, e muito, serem guiados. “Esse cenário acaba colocando as crianças numa posição complexa e perigosa, onde elas vão sendo inundadas de diferentes estímulos, nem sempre adequados para seu grau de maturidade, sem a devida curadoria, supervisão e auxílio para a contextualização e entendimento do que chega a ela ”, aponta Thiago. 

Neste contexto, o conhecimento sobre as fases do desenvolvimento infantil é cada vez mais importante, pois auxilia escolas e famílias em momentos de maiores desafios para a aprendizagem e a comunicação. De acordo com Thiago, ao compreender melhor o que é esperado para cada momento do crescimento da criança, pais e educadores irão se sentir em melhores condições para promover momentos de estímulo e orientação que auxiliem um desenvolvimento mais saudável para as crianças. “Essa abordagem tem potencial de reduzir os momentos de angústia e conflito no dia a dia e melhora na conexão e relacionamento entre pais e filhos. ”, pontua o psiquiatra. 

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@pediatriaintegralbr: O pediatra Daniel Becker constrói um feed com orientações que vão de como lidar com a febre até a importância do olho no olho na educação das crianças. Com uma linguagem acessível e sempre pautado por evidências científicas, o perfil pode ser um bom guia para professores e pais interessados numa infância mais livre e autônoma, seja no brincar ou no aprender. 

@brincacomigo.pt: A portuguesa Célia é criadora de um blog com dicas de brincadeiras simples e que proporcionam um forte envolvimento entre adultos e crianças. O perfil é repleto de propostas que podem ser usadas em sala de aula. 

@maya_eigenmann: Criado pela pedagoga e orientadora parental Maya Eigenmann, as postagens são focadas na educação respeitosa e positiva, com orientações que podem ser adaptadas ao ambiente escolar, além de ótimas dicas de livros sobre educação. 

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